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Gugu, dadá

A Liga de Clubes marcou várias partidas do principal campeonato português, entre elas o Sporting-FC Porto e o Marítimo-Benfica, para o dia 1 de Outubro, o mesmo em que se realizam as próximas eleições autárquicas. O embate entre “leões” e “dragões” terá início em Alvalade às 18.00, enquanto o jogo do Funchal começará pouco depois do final do clássico. Apesar do desconforto da Comissão Nacional de Eleições com a situação, semelhante à ocorrida aquando das legislativas de 2015, a Liga reafirmou não existir mais nenhum dia disponível num calendário futebolístico apertado, entre a Champions, a Liga portuguesa e o regresso à actividade das selecções nacionais.

 

O Público de 12 de Setembro noticia estes factos num artigo que deixa os leitores confusos, ao apontar quer Alvalade quer o Dragão como palco do SCP-FCP e localizar o “Benfica-Marítimo” nos Barreiros, além de proceder ao levantamento das escassas reacções dos partidos. Apenas o Bloco de Esquerda condenou a realização da jornada futebolística no dia do sufrágio, enquanto o presidente do PS, Carlos César, não vê onde está o problema. A informação recolhida pelo diário serve de base ao editorial do director do Público, David Dinis (DD), intitulado “O futebol entra a pés juntos sobre a democracia”. Depois de enumerar os próximos compromissos do desporto-rei, DD afirma que “os senhores do futebol fingiram nem saber” da marcação das autárquicas para 1 de Outubro e lamenta o silêncio dos políticos quanto ao assunto, antecipando uma noite televisiva e radiofónica de “emissão esquizofrénica”, dividida entre a I Liga e os resultados da votação, com a consequência de afastar ainda mais os cidadãos do acto eleitoral. Assim, para os dirigentes políticos e futebolísticos, “no dia 1 de Outubro é mais importante a frescura física de Pizzi ou de William Carvalho do que a consciência democrática dos portugueses”.

 

 

O texto de David Dinis faz pensar que, se tratarmos os eleitores como se fossem crianças, eles comportam-se realmente como crianças. A ideia de que a disputa de um clássico do futebol com apito inicial marcado para dez horas depois da abertura das mesas de voto dissuadirá a maioria do eleitorado de participar na escolha dos seus representantes nos órgãos autárquicos roça o absurdo. DD parece encarar como normal e inevitável aquilo que não devia ser. Quer dizer, se há bola, é lógico que ninguém vai ligar puto às eleições, não é? E se depois das oito joga o Benfica, obviamente as televisões vão interessar-se apenas pelo Benfica e ignorar a política. Afinal, os portugueses são burros e os media ainda mais burros. O facto de em Outubro de 2015 não ter havido “consequências de maior” dos jogos em dia eleitoral, como o Público assinala, pouco interessa para o caso. O futebol é aqui utilizado, mais uma vez, como bode expiatório e desculpa preguiçosa para a despolitização dos eleitores. Claro que há muita gente para quem o seu clube é mais importante que as autárquicas, mas, ao assumir que esse é o comportamento natural num cenário destes, DD faz aqueles que votam sentirem-se uns tansos. Para certas pessoas, os portugueses só votam em dias sem frio nem chuva, mas com nuvens e temperaturas amenas dissuasoras da ida à praia, e caso não haja futebol nem concertos da família Carreira em nenhum ponto do país. Na verdade, o melhor seria acabar com as mesas de voto e dar ao eleitor a possibilidade de votar com um simples toque no seu telemóvel, evitando assim qualquer canseira ou incómodo. Acho que expectativas tão baixas quanto ao empenhamento cívico dos cidadãos acabam por convencê-los definitivamente de que votar não é importante.

 

O voto obrigatório, proposto por alguns como meio de combater a abstenção, constitui a expressão política da frase “Se não comes a sopa, levas uma palmada”. O direito de votar implica o direito de não votar e parece estranho transformar uma regalia numa obrigação legal. A abstenção pode, de resto, ter múltiplas justificações. Além do estereótipo do abstencionista bronco que só olha para o seu umbigo, há quem não se identifique com nenhum partido ou candidato, quem ache que o sistema não funciona e defenda outro modelo de democracia, quem se abstenha para protestar contra a situação do país, quem considere o seu voto irrelevante para mudar o que quer que seja ou ainda quem esteja morto, apesar do seu nome permanecer nos cadernos eleitorais e engrossar artificialmente a abstenção. Obrigar os cidadãos a votar constitui, paradoxalmente, uma limitação da sua liberdade.

 

Os portugueses participariam mais nas eleições se sentissem que o seu voto influenciaria realmente a sociedade e acreditassem que os políticos não são todos iguais, existindo diferenças entre as consequências de votar num ou noutro partido. A divulgação, sobretudo entre os mais jovens, da história do Estado Novo, daquilo que estava associado à inexistência de eleições livres e da dureza do combate que foi necessário para assegurar o sistema de que dispomos hoje poderia igualmente contribuir para uma maior valorização da democracia. A baixa qualidade da classe política e as limitações de soberania existentes no contexto actual não estimulam, de facto, o entusiasmo dos eleitores, mas parece-me que já se desistiu há muito, e cedo demais, da mobilização daqueles que são supostamente os verdadeiros detentores do poder, ou seja, todos nós. As imagens das filas enormes de pessoas reunidas para votar nas primeiras eleições democráticas, em 1975 e 1976 (quando, imagine-se, o futebol já era praticado em Portugal), avivam a crença de que não somos tão passivos e infantis quanto nos querem fazer crer.

 

 

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