Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Desumidificador

Desumidificador

O nosso tio Cid

Ser fã de José Cid assemelha-se a ser portista, na medida em que nos dá a sensação de pertencer a uma imensa minoria. Apesar de dar inúmeros concertos cheios de gente (o que não é sinónimo de qualidade, eu sei), Cid é frequentemente desvalorizado e colocado no mesmo campeonato do seu ex-amigo Tony Carreira ou considerado um mero cromo de uma caderneta antiga, recordado em devaneios nostálgicos. Muitos portugueses conhecem apenas hits como “Vinte Anos”, “Na Cabana Junto à Praia” ou as canções feitas por Cid a pisar o risco da foleirice (a propósito, “Como o Macaco Gosta de Banana” é um tema divertido, ideal para ocasiões como o Carnaval), ignorando que a obra do homem da Chamusca constitui uma vasta galáxia, sempre com planetas desconhecidos para explorar, fruto do talento de um artista que se move com o mesmo à-vontade em todos os géneros musicais imagináveis.

 

Como é sabido, José Cid começou a tocar “o jazz, a bossa nova, os blues e o rock and roll” na década de 50, mas só fez as primeiras gravações em 1967, na qualidade de teclista e vocalista do Quarteto 1111. A partir desse ano, a banda criou sucessivos discos de rock arrojados e diferentes de tudo o que se fazia em Portugal nessa época. Contudo, o Quarteto 1111 tinha de enfrentar a perseguição da Censura e o reduzido espaço comercial então disponível para o pop/rock português. Só através de um projecto paralelo, os Green Windows, Cid e outros membros do 1111 obteriam tremendos êxitos de vendas como “Vinte Anos” e “No Dia em que o Rei Fez Anos”. Depois do 25 de Abril, José Cid teve alguns problemas por não integrar a “esquerda musical” (na altura, Cid era sobretudo um admirador de Sá Carneiro) então predominante nas rádios e discotecas. Em 1976, já dedicado a uma carreira a solo, Cid aproveitou o cansaço do público com a politização para lançar temas ligeiros e alegres (“Ontem, Hoje e Amanhã”, “A Anita Não É Bonita”, etc.), enquanto prosseguia as experiências no rock progressivo iniciadas no Quarteto 1111, compondo e gravando o EP Vida (Sons do Quotidiano) e o LP 10.000 Anos Depois Entre Vénus e Marte. Ambos os trabalhos passaram despercebidos em Portugal, mas o álbum de “rock espacial” tornar-se-ia uma referência internacional do género. No conjunto da década de 70, Cid tornou-se autor de uma discografia espantosa quer pela quantidade quer pela qualidade.

 

 

Em pleno boom do rock português, no início dos anos 80, José Cid foi à Eurovisão com “Um Grande, Grande Amor” e seguiu um rumo mais comercial, mas, a pouco e pouco, o dono do palacete de Mogofores foi ficando para trás no meio da onda de novidades surgidas na música nacional, até porque ninguém consegue permanecer sempre no topo. Sem parar de tocar, Cid conheceu uma fase de maior discrição até ao ano de 2006, quando os concertos no Maxime e a edição do álbum Baladas da Minha Vida deram origem a um surpreendente comeback, à medida que o músico fazia regressar os seguidores antigos e ganhava muitos fãs entre os jovens. Cid voltou a actuar em grandes salas como o Campo Pequeno ou o Coliseu do Porto e a percorrer o país para realizar concertos de mais de duas horas, durante as quais mostra uma voz sem falhas e um fôlego inesgotável. As actuações de Cid e da sua Big Band são sempre iguais e sempre diferentes, ao combinarem os clássicos do pianista com temas inéditos ou pouco conhecidos e estabelecerem uma relação especial entre o cantor e a assistência. Cid tem também feito espectáculos só com voz e piano/órgão ou centrados no jazz, para além dos concertos baseados na sua ainda inacabada obra de rock progressivo (o compositor vem adiando há anos uma espécie de despedida, o anunciado projecto Vozes do Além), já registados em DVD e marcados, entre outros momentos, pela parte impressionante em que o público entoa sozinho o tema-título de 10.000 Anos

 

O novo álbum do ribatejano, Clube dos Corações Solitários do Capitão Cid, editado pela Acid Records em CD e vinil, contém várias referências ao passado, a começar pelos Beatles, banda da qual provém a inspiração para o título, a capa onde José Cid reúne personagens do seu universo pessoal e o tema “The Fab 4”, uma nova versão da “Ode to the Beatles” do Quarteto 1111. As evocações de Cid passam também pelas memórias do Botequim de Natália Correia, por Marilyn Monroe ou pelas aventuras de juventude recordadas num dueto com Tozé Brito, mas o disco não deixa de lado aspectos do presente como o e-mail, a Wikipedia, a Nova Gente ou os Capitão Fausto, a quem o cantor retribui a homenagem prestada em “Zecid”. Juntamente com vários dos músicos que o têm acompanhado nos últimos anos (Xico Martins, Gonçalo Tavares, Amadeu Magalhães) e velhos parceiros como Ramón Galarza, José Cid toca inéditos de sua autoria e pega em criações de outros poetas e compositores para formar um álbum onde encontramos um pouco de tudo, entre humor desconcertante e histórias de fazer chorar as pedras da calçada, sem que no meio de tanta heterogeneidade se perca a unidade associada ao estilo próprio de Cid, dotado de uma capacidade de reinvenção assinalável num jovem de 76 anos. Meio século depois do aparecimento de “A Lenda de El-Rei D. Sebastião”, José Cid mantém a torrente criativa de sempre e, longe de ficar preso ao passado, afirma-se novamente como uma figura incontornável da história da música portuguesa.

 

 

 

 

1 comentário

Comentar post