A iniciativa de Herman José ao reunir no seu talk-show “Cá por Casa” o elenco de “O Tal Canal”, do qual apenas Margarida Carpinteiro não compareceu, veio recordar o génio e a importância histórica do programa estreado na RTP entre 1983 e 1984. Mesmo os indivíduos nascidos depois desses anos, ao verem “O Tal Canal” nas reposições, em DVD ou no You Tube, vão além da curiosidade pelas cores insólitas, pelo lettering antiquado e pela canção do genérico (a letra é de António Avelar Pinho e a música de Ramón Galarza) e sentem o brilhantismo do projecto, com uma durabilidade muito superior à dos formatos televisivos satirizados no canal de Oliveira Casca.
A ousadia e irreverência dos 12 episódios (hoje, o programa seria esticado até aos 120) realizados por Nuno Teixeira tornam-se ainda mais notáveis se recordarmos o contexto de 1983, quando a democracia portuguesa era recente, os conservadores mostravam-se muito susceptíveis e a noção de que “com a autoridade não se brinca” ainda se mantinha firme. Havia no jovem Herman José, além de uma autoconfiança de visionário, a pura falta de noção do puto que faz caricaturas dos professores e leva na brincadeira aquilo que todos levam ou fingem levar a sério. Também existia a influência do nonsense dos Monty Python, então pouco conhecidos em Portugal, apesar de “Os Malucos do Circo” ter passado pela RTP, apropriadamente, no Outono de 1975. Além das piadas sobre política e religião (neste caso, sobretudo no episódio de Natal), as abundantes referências à cópula, tratada de forma atrevida mas sem a falta de subtileza do teatro de revista, marcaram a diferença no seu tempo. Sem nunca armar em intelectual, Herman não partiu do pressuposto, generalizado na televisão actual, de que o público é estúpido. A qualidade dos actores, a consistência das personagens e o talento e imaginação dos sketches contribuíram para criar um clássico ao mesmo tempo datado e intemporal.
Quanto a tratar-se do melhor programa de Herman José, é difícil optar entre “O Tal Canal” e projectos feitos em condições diferentes, como a “tese de mestrado” do humorista, “Crime na Pensão Estrelinha” (1990), ou “Herman Enciclopédia” (1996-1997), criado com os argumentistas das Produções Fictícias quando o dinheiro jorrava na televisão portuguesa. A partir daí, Herman mostrou por muitas vezes que as notícias da sua morte eram ligeiramente exageradas. Veja-se, por exemplo, a recente sitcom “Nelo & Idália”, com um toque muito pessoal do luso-alemão e uma qualidade de argumento rara na nossa TV, dentro ou fora do humor.
No entanto, o novo século trouxe uma crescente fragmentação do público e discípulos que, sem fazerem necessariamente melhor comédia que o mestre, apresentam estilos diferentes. Se no início dos anos 90 Herman fazia parar o país, agora poucos reparam quando está no ar. Seja como for, o criador do “insecticida da mosquinha atrevida”, cujo sustento provém agora do êxito dos seus espectáculos ao vivo, ganhou um estatuto ímpar em Portugal desde que, há 33 anos, começou a destruir cenários.
O mercado editorial português não fica indiferente aos fenómenos internacionais e a vitória eleitoral de Donald Trump gerou o aparecimento de numerosos livros em torno do “Pacto Donald” (Nuno Rogeiro) ou, de forma mais abrangente, da corrente política do populismo. Um dos títulos inseridos neste contexto, “A Explosão do Populismo”, do jornalista americano John B. Judis, foi traduzido por Ana Saldanha e publicado pela Presença. Numa altura em que a palavra “populismo” se banalizou até o seu significado se tornar difícil de delimitar, Judis começa por esclarecer que não existem “características exclusivas” dos partidos populistas, mas estes partilham “um antagonismo básico entre o povo e uma elite no âmago da sua política” (p. 16). A partir desse traço discursivo, é possível encontrar populistas de esquerda e direita. Neste último caso, são frequentes, além dos ataques ao establishment, a denúncia de um “grupo marginal” (imigrantes, comunistas, muçulmanos, etc.) como inimigo protegido pela elite corrupta.
Ao escrever durante a campanha presidencial no seu país, John B. Judis procura demonstrar que Donald Trump e Bernie Sanders são descendentes ideológicos de movimentos populistas surgidos nos EUA, em períodos de crise, durante os séculos XIX e XX e exploram o radicalismo da classe média americana. Passando à Europa, o jornalista expõe as perturbações na UE e as respostas populistas à crise. Sem mencionar Portugal (o que, neste caso, é um sinal positivo), Judis descreve a ascensão de movimentos como o Syriza, o Podemos ou a Frente Nacional. Apesar do autor simplificar demasiado a história da extrema-esquerda e da extrema-direita europeias, produz uma boa síntese do actual quadro político e destaca que os populistas aproveitam problemas ignorados ou não resolvidos pelos partidos do “neoliberalismo”, constituindo sintomas de uma doença real.
Informado acerca do Brexit, Judis aponta os riscos para a sobrevivência da União Europeia, mas parece subestimar o impacto do fenómeno Trump. De facto, no final do Verão passado, parecia impossível que um homem tão malcriado pudesse ser eleito presidente dos Estados Unidos. De qualquer maneira, promessas como construir um muro na fronteira mexicana ou perseguir os muçulmanos “não se destinavam a serem levadas a sério” (p. 74), visando apenas chamar a atenção e mobilizar o “povo” americano através da recusa de negociações com as elites. Quer dizer, era óbvio, não era?
A entrevista dada por Aníbal Cavaco Silva à RTP para promover o seu novo livro (cuja escrita começou quando ainda era Presidente, ao contrário do que anunciara antes) sofreu devido às restrições de tempo, limitativas do número de questões. Seria bom se o jornalista Vítor Gonçalves tivesse feito a seguinte pergunta a Cavaco: “Que filósofo grego do século V a.C. criou a máxima “Só sei que nada sei”?” Talvez assim o entrevistado conseguisse dizer “Sócrates” e não “o primeiro-ministro do XVII e do XVIII Governo Constitucional”.
Embora se recuse a comentar o trabalho do actual Governo, Cavaco Silva admitiu ter sido, após as eleições legislativas de 4 de Outubro de 2015, ultrapassado e surpreendido pela realidade. No entanto, Cavaco afirmou, antes do sufrágio, ter previsto “todos os cenários” possíveis em função dos eventuais resultados. Parece que, de facto, o então chefe de Estado previu todos os cenários, mas não esperava uma mudança no elenco que lhe retirasse o papel principal e fizesse a actriz Catarina Martins subir ao palco. Cavaco também não antecipou uma alteração do texto da peça no sentido de uma dramaturgia inspirada em Brecht.
É algo bizarra a gratidão que Aníbal manifesta aos portugueses por lhe terem permitido ser Presidente da República. Parece uma criança a agradecer um brinquedo recebido de presente. Já se sabe, há miúdos que partem tudo o que lhes passa pelas mãos.
Na qualidade de subúrbio encostado a Lisboa, Odivelas dispunha durante os anos 80 e 90 de uma oferta cinematográfica reduzida. O centro comercial Oceano (inaugurado em 1984), então o maior da localidade, incluía um cinema amplo, no qual nunca cheguei a entrar, embora me recorde de ver o Batman de Tim Burton anunciado no letreiro exterior do prédio, cujas letras eram trocadas manualmente. Após o encerramento em 1992 da sala do Oceano, manteve-se aberto na cidade apenas um espaço, o Cine Odivel, conhecido simplesmente como o cinema do Kaué, um dos centros comerciais antigos e minúsculos, de apenas dois pisos, espalhados por Odivelas.
Foi no Cine Odivel que vi pela primeira vez um filme (Forrest Gump) no cinema. É curioso recordar agora como tudo era pequeno no Kaué, incluindo o ecrã, a sala, o hall, os cartazes, a bilheteira, o corredor (visível numa fotografia actual abaixo), a casa de banho, os bilhetes (com os números dos lugares escritos à mão) e os recipientes para pipocas. Os títulos das longas-metragens exibidas eram divulgados através de cartões publicitários colocados em padarias e outras lojas. A programação baseava-se em produções de Hollywood (vi obras como Apollo 13, Tempo de Matar, Jerry Maguire, Michael Collins ou O Advogado do Diabo), além de raras excepções como o luso-holandês Mortinho por Chegar a Casa. Habitualmente, os filmes surgiam no Cine Odivel após terem estreado há muito nas salas lisboetas e permaneciam apenas uma semana em cartaz, com duas sessões diárias. No entanto, houve um caso ímpar: Titanic. O filme de James Cameron estreou em Odivelas no seu primeiro dia em solo português e teve sessões esgotadas no Kaué durante seis semanas consecutivas.
Na época de expansão dos multiplexes, manter em funcionamento um cinema assim era difícil, e tornou-se impossível a partir da inauguração em 2003 do Odivelas Parque (o actual Strada), um centro comercial digno desse nome que apresentava nada menos de oito salas de cinema. Pouco depois de eu lá ir pela última vez e ver O Regresso do Rei, o Cine Odivel fechou portas. Actualmente, a antiga sala de projecção é utilizada para as reuniões de uma seita religiosa. Não me sinto particularmente nostálgico, até porque comecei ainda no século XX a frequentar cinemas muito melhores na capital. No entanto, foi na sala acanhada do Kaué que conheci a magia do cinema e o prazer de viajar para muito longe sem sair da cadeira.
Ainda a propósito dos raros livros de memórias escritos por políticos portugueses, recorda-se o exemplo de “Percepções e Realidade – 2004” (Alêtheia, 2006), a obra na qual Pedro Santana Lopes narra detalhadamente o seu semestre como primeiro-ministro e ajusta contas com Jorge Sampaio e outras figuras por quem considera ter sido tramado. Depois de perder as eleições legislativas, há exactamente 12 anos, Santana andou por aí, deputou, escreveu o livro, empreendeu tentativas falhadas de regressar à liderança do PSD e à presidência da Câmara de Lisboa e, após quase duas décadas de contínuo mediatismo, acabou por remeter-se à discrição da provedoria da Santa Casa da Misericórdia. Também tem feito comentário político, mas são tantos os políticos/comentadores que as intervenções do antigo presidente do Sporting passam despercebidas.
Com o passar do tempo e a menor visibilidade, Santana Lopes beneficiou daquilo a que os politólogos chamam “efeito Eanes”: as polémicas em que se viu envolvido nos seus tempos de ribalta foram esquecidas e a sua imagem tornou-se mais séria e respeitável. Afinal, todas as “trapalhadas” do breve consulado santanista (a sesta desmentida, a expulsão do “barco do aborto”, a contratação de dúzias de secretárias e seguranças, os ministros da craveira intelectual de um Rui Gomes da Silva, etc.) parecem hoje risíveis e irrelevantes, comparadas com o que aconteceu em Portugal depois de Santana sair de S. Bento. De facto, em 2004 a clivagem esquerda-direita era menos acentuada, com muitos sociais-democratas a salientarem-se no desgaste do então líder e jornalistas como José Manuel Fernandes a escreverem crónicas contra o executivo PSD-CDS. Muita gente achava PSL ridículo, estouvado e desadequado ao cargo de primeiro-ministro, mas poucos o detestavam com os níveis de ódio reservados aos seus sucessores. Sem casos suspeitos a envolvê-lo, Santana Lopes possuía, inclusive, alguma gravitas quando discursava. Até mesmo a tentativa de fazer Marcelo Rebelo de Sousa calar-se parece hoje compreensível.
Ultimamente, Pedro Santana Lopes tem sido notícia não pelo que faz, mas pelo que não faz, ao rejeitar lançar candidaturas às presidenciais e às autárquicas (o que revela prudência e bom senso). Os santanistas ainda existentes na redacção do i e do Sol especulam sobre uma futura ascensão de PSL ao cume “laranja” no pós-Passos e, se quase ninguém leva essa hipótese a sério, também não se ouve o rasgar de vestes pelo eventual regresso de Santana, um produto “retro” interessante para os coleccionadores de antiguidades. Parafraseando “Os Maias”, podemos dizer que não há nada, com efeito, que caracterize melhor a pavorosa decadência de Portugal, nos últimos dez anos, do que este simples facto: tão profundamente tem baixado o carácter e o talento, que de repente o nosso velho Pedro, o homem do lenço na cabeça, o “menino guerreiro”, aparece com as proporções de um génio e de um justo.
O lançamento de “Quinta-Feira e Outros Dias”, de Aníbal Cavaco Silva, cuja primeira edição já esgotou, veio lembrar que, apesar do desenvolvimento conhecido neste século pela memorialística portuguesa, são ainda escassos os livros autobiográficos escritos por políticos, a maior parte dos quais preocupam-se mais com as disputas do presente que com o seu legado para a posteridade. Neste cenário, os livros de memórias de Diogo Freitas do Amaral, autor de “O Antigo Regime e a Revolução” (1995), “15 Meses no Ministério dos Negócios Estrangeiros” (2006) e “A Transição para a Democracia” (2008), tal como de “Ao Correr da Memória” (2003), uma compilação de pequenas histórias e apontamentos, destacam-se pela forma e pelo conteúdo.
Ao nível da escrita, o fundador do CDS utiliza uma linguagem simples e fluente, de leitura agradável. A sua vertente de dramaturgo leva Freitas do Amaral a apresentar diálogos com marcas de oralidade e acompanhados por descrições curtas e precisas das circunstâncias que rodearam as conversas. Os episódios narrados possuem nítido interesse histórico, valorizado pela atenção de Freitas aos pormenores mais curiosos ou risíveis dos eventos. Apesar das frequentes alusões aos sentimentos do protagonista, a actividade política deste é enquadrada num contexto mais geral, sem excessos de egocentrismo.
Como todas as autobiografias de políticos, os livros de Freitas do Amaral procuram melhorar a imagem pública do autor e rebater críticas por ele sofridas. De resto, os relatos do catedrático de Direito indiciam uma ampla vaidade. No entanto, contrariamente à obsessão de Cavaco Silva por parecer sempre perfeito e imaculado, Freitas apresenta-se como uma pessoa comum e estabelece empatia com o leitor. É necessário ser-se muito homem para confessar momentos de fraqueza como o descrito no final de “A Transição para a Democracia”.
Convidado para a apresentação da nova imagem da TVI, Marcelo Rebelo de Sousa contracenou ontem no “Jornal das 8” com os pivôs Pedro Pinto, Judite de Sousa e José Alberto Carvalho, numa emissão onde ouviu as opiniões de quatro comentadores sobre o primeiro ano marcelista em Belém. Obviamente, o Presidente da República jogou em casa (só faltou o cântico “Ninguém pára o Marcelo”), no seu antigo canal, e seria difícil surgirem momentos de tensão num programa que acabou com o entrevistado a dar apertões de mão aos jornalistas e beijos afectuosos na jornalista. Os comentadores, nenhum deles demasiado à direita ou à esquerda, de modo a não estragar o momento, coincidiram na mensagem “O Presidente é do caraças, só é pena falar demais”. Sempre no comando das operações, Marcelo falou com a habilidade tradicional, entre a explicação das suas funções (assegurar que o Governo se mantém ao centro), a surpresa positiva com o sucesso da Geringonça e, para temperar, alguns elogios a Cavaco Silva. Tudo na mesma, portanto, enquanto se ouviam os urros de Eduardo Cintra Torres e dos colunistas do Observador.
Mais que os diferentes estilos de exercício do cargo, a verdadeira distinção entre Marcelo Rebelo de Sousa e os seus predecessores reside no facto do actual chefe de Estado ter sido comentador televisivo em horário nobre durante muitos anos. Marcelo é televisão dos pés à cabeça. Domina a linguagem televisiva como nenhum outro político português e possui uma relação com as câmaras semelhante à das outras estrelas da TVI. No fundo, dizer que Marcelo fala demais é tão ilógico como fazer a mesma acusação a Cristina Ferreira. Afinal, em televisão, pode haver tudo menos pausas e silêncio.
No final de uma crónica acerca do crescente domínio do aparelho de Estado pelos comunistas, Helena Matos escreve: “Curiosamente quanto menos sei sobre um futuro governo mais claro se me afigura o que pode acontecer na Presidência da República: caso se consiga demitir a tempo – ou seja antes de se tornar óbvia a factura da reposição e das reversões – e com uma boa desculpa, muito provavelmente António Costa será candidato nas próximas presidenciais e ainda mais provavelmente ganhará pois Marcelo, mesmo que conte com a indiferença do PSD, dificilmente contará com o voto dos eleitores do PSD ou do CDS.”
Quando isso acontecer, em 2021, não se preocupem. Nessa altura, muito provavelmente Helena Matos será a primeira portuguesa a ter super-poderes e sobrevoará os jardins do Palácio de Belém para despejar os seus dejectos sobre a cabeça de António Costa.
Uma boa maneira do Ministério das Finanças obter mais receitas extraordinárias seria cobrar aos comentadores políticos 10 euros por cada previsão falhada que façam. Só as taxas sobre Marques Mendes seriam suficientes para transformar o défice em superavit.
No seguimento de outros livros de João César das Neves editados pela D. Quixote e dedicados à exposição, numa linguagem acessível, da situação económica nacional, “As 10 Questões do Colapso”, escrito em Agosto e publicado em Outubro de 2016, analisa as fragilidades do país, como a dívida pública, os abalos na banca ou o baixo crescimento. Num exercício de futurologia, César das Neves prevê para breve (de acordo com a capa do livro, será provavelmente em 2016 ou 2017) uma emergência financeira semelhante à de 2011 e enumera as condições internas e externas do cenário popularizado por Pedro Passos Coelho na expressão “Vem aí o diabo”. O professor da Universidade Católica abre os vários capítulos com citações do Papa Francisco, mas, para lá dos aspectos técnicos, “As 10 Questões do Colapso” também pode ser resumido em frases curtas como as seguintes (à excepção da primeira, o autor não as utiliza textualmente no livro).
“Não há almoços grátis”. É a frase preferida de César das Neves, que a repete sucessivamente (e nos leva a imaginar que, quando recebe familiares em casa no dia de Natal, o economista cobra 20 euros a cada um para pagar o almoço) de modo a explicar a inevitabilidade das consequências negativas de fenómenos positivos. Assim, as dificuldades vividas actualmente nos EUA e na Europa são o resultado da globalização, responsável por retirar milhões de pessoas da pobreza em todo o mundo. A evolução tecnológica implica também o desaparecimento de determinadas actividades económicas, de nada servindo protestos de grupos ameaçados como os taxistas. Da mesma forma, a crescente desigualdade é aborrecida, sim senhor, mas o capitalismo constitui o único sistema capaz de aumentar a riqueza disponível para o conjunto da sociedade.
“Chega de escarcéu”. Ao ver como “a nossa cultura promove desilusão, censura, quase subversão” (p. 296), César das Neves rejeita o protesto e considera que “fazemos um drama por coisas que não impressionariam os nossos bisavós” (p. 116). A situação internacional está longe, na opinião do economista católico, de ser tão má como a pintam e, embora o “extremismo” político represente um risco, o cenário difere do vivido nos anos 20 e 30. César não acredita no triunfo da extrema-direita (recorde-se que “As 10 Questões do Colapso” foi escrito antes de Trump chegar ao poder), uma vez que cerca de metade da população mundial pertence à classe média, e esta “gosta de paz e sossego” (p. 137). A tendência dos seus contemporâneos para dirigirem a raiva contra os políticos desgosta César, segundo o qual “não faz qualquer sentido explicar problemas vastos e dramáticos por caprichos, manias ou erros individuais” de quem está no poder (p. 125).
“A culpa é nossa”. A situação de Portugal, na visão césar-nevista, não resulta da incompetência dos governantes ou do euro e das pressões da União Europeia, mas sim do comportamento de todos nós. César não se isenta de culpas, como membro da geração, nascida em meados do século XX, que “endividou e bloqueou a economia, deixando um país doente” (p. 274) devido à falta de capital e ao excesso de regras e direitos. Um exemplo da responsabilidade colectiva é a taxa de poupança, que, após bater o recorde mundial no final do Estado Novo, foi-se reduzindo até atingir níveis mínimos em 2008. A partir desse ano, César sorriu ao ver que as famílias intensificavam a poupança num período de crise, mas bastou um ligeiro afrouxar do cinto em 2013 para o consumo voltar a subir de forma incompatível com os recursos do país. Embora negue a luta de classes, o professor catedrático considera existir um “Portugal dual” onde se assiste ao “combate entre aqueles que se julgam com direito ao dinheiro dos outros e esses outros” (p. 173). Quem são os parasitas? Todos aqueles que vivem à sombra do orçamento estatal, como artistas, trabalhadores dos transportes ou administradores de serviços públicos. A revolta dos cidadãos “produtivos” contra os privilegiados será essencial para reagir ao colapso.
“Com comunas no Governo, ninguém investe”. A obra identifica vários problemas económicos e sociais do país, mas os dados fornecidos por César das Neves indicam que esses riscos já vêm de trás, inclusive dos anos anteriores à crise, e agravaram-se durante o programa de ajustamento. O que aconteceu depois de Setembro de 2015 em Portugal para tornar o colapso iminente? Pois, foi isso mesmo. Para além de António Costa ter alterado o discurso oficial e contrariado a política de austeridade, o facto do seu Governo ser apoiado por BE e PCP constitui em si mesmo um factor nocivo, uma vez que os empresários nacionais e estrangeiros “não são estúpidos” e não têm confiança para investir num país onde, por mais moderados que os esquerdistas pareçam, “a sua origem genética” (p. 246) levá-los-á sempre a destruir a economia. A recuperação do investimento verificada nos últimos meses era considerada impossível por César no Verão passado.
Na situação precária e instável em que vivemos, ninguém pode garantir a 100% que nada de grave acontecerá até ao final da década. Este contexto, além de contribuir para o sucesso comercial do livro de João César das Neves, fornece à direita a esperança de que o futuro acabará por lhe dar razão. “Mais cedo ou mais tarde, a retórica e as promessas vão embater nas leis da aritmética” e os portugueses, depois da “negação”, “raiva” e “negociação” experimentadas ao longo da crise, vão entrar na fase de “depressão”, até finalmente chegar a “aceitação” da realidade (pp. 35-37). E quando isso acontecer, poderá enfim surgir o país novo sonhado por conservadores como César. Que é, afinal, o velho país injusto e miserável de sempre.
Marcelo Rebelo de Sousa propôs num discurso que o nome de Mário Soares fosse atribuído ao novo aeroporto a criar no Montijo. A ideia é boa (bem melhor do que foi a decisão de dar ao aeroporto portuense o nome de uma vítima da queda de um avião), até porque Soares foi um utilizador assíduo do transporte aéreo, mas, ao defendê-la publicamente, Marcelo colocou o Governo numa posição desconfortável. Se não atribuir o nome do fundador do PS à nova infra-estrutura, o executivo será acusado de desautorizar o Presidente da República ou de não gostar de Soares. Se o Aeroporto Mário Soares se tornar uma realidade, torna-se implícito que uma das funções constitucionais do Presidente é o baptismo de todos os portos, pontes, escolas, hospitais, aeroportos e filmes eróticos do país. Nenhuma das hipóteses é especialmente agradável para quem governa.
O chefe de Estado voltou a esquecer-se de que não é um mero comentador. Enquanto com Cavaco Silva passavam semanas ou meses sem que alguém notasse a existência do PR, agora temos Marcelo 24 horas por dia, num autêntico reality-show. Sr. Presidente, todos nós o amamos do fundo do coração, mas, por favor, cale-se um minuto.