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Desumidificador

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Unidos como os dedos do pé

Uma palavra imediatamente associada ao futebol português actual é “conflito”. Claques, blogues, dirigentes, televisões, todos incentivam o choque entre adeptos de diferentes clubes e apelam à luta “em defesa” das cores de cada emblema contra inimigos reais ou imaginários, num crescendo de conflitualidade que, infelizmente, já teve consequências fatais. Todavia, para lá das divisões, o desporto-rei tem constituído, a vários níveis, um factor de união entre os portugueses ao longo de mais de um século de história.

 

O futebol, a mais inter-classista e inter-geracional das formas de entretenimento, tem aproximado grupos sociais aparentemente longínquos. É certo que, no início do século XX, existiam nítidas diferenças entre a maioria dos sócios, atletas e adeptos de colectividades como o Benfica, baseado na iniciativa de casapianos e outros homens oriundos de sectores desfavorecidos (o “povo” de Lisboa), e os membros da elite reunidos no Sporting e dedicados ao ideal do sportman amador e ecléctico. Mais a Norte, José Monteiro da Costa e outros fundadores do FCP, ligados à média burguesia, passaram a contar logo em 1907 com a colaboração de desportistas mais velhos, pertencentes à colónia luso-britânica envolvida no comércio do vinho do Porto. Essa marca genética dos três “grandes” diluiu-se progressivamente, contudo, à medida que, nas décadas de 10 e 20, o futebol se popularizava e os jornais deixavam de publicar os nomes das figuras do high-life presentes nos desafios. As identidades de classe foram subalternizadas pela ligação afectiva dos adeptos a clubes abertos a ricos e pobres, patrões e empregados.

 

Claro que as associações desportivas não constituíam um mundo à parte, tendo-se acentuado durante a ditadura o fosso social entre os dirigentes, próximos do poder político e económico local ou nacional, e os jogadores, frequentemente nascidos em famílias carenciadas e dotados de escassa formação escolar. No entanto, a democracia interna dos clubes, os avanços do pós-25 de Abril quanto aos direitos laborais dos futebolistas e os apelos contínuos à união dos sócios com vista ao apoio às equipas e à oposição aos adversários contribuíram para afastar a luta de classes do futebol. De facto, um homem da burguesia portuense como Pinto da Costa tornou-se um ídolo nos bairros mais pobres da Invicta. Aliás, o próprio Jorge Nuno justifica a sua manutenção na presidência do FC Porto com o prazer que sente em dar motivos de alegria, através das vitórias do clube, a pessoas sem outras razões para sorrir. Noutras paragens, Bruno de Carvalho faz apelos populistas à luta contra a elite do “croquete” que dominaria o SCP antes da sua chegada ao poder.

 

Para lá do inter-classismo presente no sentimento clubista, o futebol fornece ainda o exemplo da união nacional criada em torno da selecção. Não me parece exagerado afirmar que, num país no qual, tradicionalmente, os horizontes e o sentimento de pertença de cada cidadão não iam além da sua aldeia ou vila, a escola, a televisão e o futebol foram no último meio século os três meios principais de construção da Nação lusa. A escola massificada difundiu o conceito de “Portugal”, tal como a noção elementar da História e do espaço geográfico do país, enquanto a televisão contribuiu para uniformizar a maneira de falar e vestir e as mentalidades dos habitantes das diferentes regiões. Por seu turno, o desporto-rei conferiu, bem mais que a política, um conteúdo emocional ao discurso patriótico e popularizou os símbolos nacionais (o hino e a bandeira da República) a uma escala surpreendente. Na actualidade, os jogos do misto masculino da FPF são praticamente os únicos programas televisivos que quase todos os espectadores vêem ao mesmo tempo e o ambiente gerado em torno das fases finais do Europeu e do Mundial cria uma atmosfera de mobilização colectiva difícil de igualar. Numa época de crise, nenhum outro acontecimento despertou tamanho entusiasmo e exclamações sobre o “orgulho de ser português” quanto a vitória da equipa das quinas na final do Euro 2016 e ninguém assumiu tanto o estatuto de “herói nacional” como Cristiano Ronaldo.

 

Se o futebol cria por demasiadas vezes um “eles”, alvo de ódio incondicional, a verdade é que o “nós” futebolístico gera laços de solidariedade raros numa sociedade atomizada. De certo modo, todos os adeptos se sentem como António Lobo Antunes na guerra em Angola: não faz sentido disparar sobre alguém que torce pela mesma equipa que nós.

 

 

 

Um crítico frustrado

Uma das áreas onde a democratização da opinião, trazida pela Internet, se fez sentir foi o cinema, tendo muitos espectadores passado a comentar publicamente os filmes a que assistiam. Em Portugal, o aparecimento online de novos críticos iniciou-se em fóruns de discussão como os dos sites 7.ª Arte e Cinema 2000. Foi precisamente em 2000 que, embora eu fosse adolescente e não conhecesse praticamente nada de cinema além dos hilariantes desenhos animados do realizador Tex Avery, comecei a escrever breves comentários àquilo que via nas salas ou em VHS (mais tarde DVD). Salvo erro, o primeiro filme que critiquei foi “Gladiador”, de Ridley Scott (é bom, mas não deveriam ter usado personagens reais numa história totalmente ficcional). A leitura dos textos de outros cibernautas permitia-me apreender o vocabulário da crítica cinematográfica e disfarçar como podia a minha ignorância.

 

Nos idos de 2001, quando o webmaster do site Filmes Desancados, preenchido por críticas irreverentes e descontraídas (às vezes até demais) a longas-metragens, alargou a equipa para fora do seu núcleo de amigos, acabei por ocupar uma vaga e tornar-me o crítico “Pedrocas”. Foi uma experiência divertida, mas a página veio a desaparecer em resultado do desinteresse da maioria dos autores. Assim, a vida cinéfila foi seguindo o seu caminho, até que em 2003 os blogues sobre cinema (a “cineblogosfera”) emergiram como um sector em plena expansão. Outro frequentador dos fóruns, o argumentista Fernando Dordio, convidou-me então para escrever no blogue Pipoca Rasca, no qual eu colaboraria até 2008. Nesses anos, a interactividade e a busca do debate estimularam a aproximação entre bloggers espalhados pelo país, alguns dos quais produziam críticas e textos noticiosos de grande qualidade. O semi-anónimo JB Martins, ainda hoje responsável pelo Cineblog e co-autor da webcomic “A Garagem de Kubrick”, e o jornalista Miguel Lourenço Pereira (actualmente radicado em Madrid e entregue a uma paixão ainda maior, o futebol) foram os principais dinamizadores da Academia de Blogs de Cinema (ABCine), com várias dezenas de membros e dotada de um fórum próprio. A votação sobre os melhores filmes de 2004 foi a iniciativa mais visível da ABCine, infelizmente sem continuidade. Numa fase posterior, vários bloggers uniram-se para criar a revista online de cinema Take, fonte de conteúdos por vezes superiores aos das publicações especializadas então existentes nas bancas.

 

Os meus anos como crítico de cinema revelaram-se interessantes, mas a verdade é que não tinha grandes qualidades para a função. A nível geográfico, consumia praticamente apenas a produção cinematográfica oriunda dos EUA e, em menor dimensão, de Portugal. Alguns géneros, em particular o terror, o musical e a ficção científica, estavam longe de me serem familiares. Da mesma forma, tinha dificuldade em analisar a qualidade de aspectos dos filmes como a fotografia e o trabalho dos actores (à excepção de Charlie Sheen e Jennifer Lopez, toda a gente me parecia pelo menos razoável). Geralmente, não conseguia escrever mais de quatro breves parágrafos sobre um filme (ou uma “fita”, ou uma “película”, ou uma “longa-metragem”), seguidos da escolha da melhor e pior cena e da classificação da obra numa escala 1-10. Com o passar do tempo, percebi que gostava mais de classificar e escrever sobre os filmes do que propriamente de vê-los, e o facto de (por razões que não vêm agora ao caso) ter passado a ir menos vezes ao cinema na actual década contribuiu para o meu distanciamento do universo cinéfilo. Só ocasionalmente, noutras incursões mais generalistas pela blogosfera, voltei a comentar fitas.

 

A parte boa desta história é que o estímulo da redacção do Pipoca Rasca me levou a conhecer realizadores como Leone, Kubrick, Eastwood, Hitchcock, Almodóvar ou Soderbergh, tal como a gozar filmes deliciosamente maus, ao nível 3/10 de um “Date Movie” ou um “Desaparecido em Combate 3”. Aprendi, no entanto, que, para uma crítica negativa ser eficaz, não basta escrever que determinado filme é uma bosta, sendo necessário manejar de forma criativa a ironia e o humor para desmascarar a falta de qualidade do objecto artístico. Blogues como o Cinema Xunga e o Royale With Cheese constituem referências na área do desanque com estilo.

 

 

O desaparecimento das edições portuguesas das principais revistas de cinema (Empire, Premiere, Total Film), além da vida curta de projectos mais modestos como Cinemania e Primeiras Imagens, criou um vazio na imprensa nacional. A crítica continua a ser feita sobretudo por figuras do “meu tempo”, entre o snobismo de Vasco Câmara e Luís Miguel Oliveira e a simpatia indulgente de Rui Pedro Tendinha. Excepto aquando de estreias vistosas como as dos novos episódios das séries 007, Star Wars ou 50 Sombras de Grey, o cinema ocupa pouco espaço nos jornais lusos, enquanto os canais televisivos generalistas, ultrapassados pelo cabo e pelos videoclubes das distribuidoras, investem na 7.ª Arte apenas durante o Natal e a Páscoa. Quanto à bibliografia cinéfila, para lá do valor informativo dos três volumes do “Dicionário do Cinema Português” de Jorge Leitão Ramos, escasseiam livros que não constituam estudos académicos, chegando ao grande público através de um tom ligeiro mas rigoroso. A esse nível, pouco existe além de títulos como os anuários de Pedro Garcia Rosado (“Vídeo 89-93”) e Miguel Lourenço Pereira (“Cine Guia 2007”), o “Guia Terapêutico de Cinema” de Pedro Marta Santos ou “100 Filmes que Podem Mudar a sua Vida”, de Rui Pedro Tendinha. Entretanto, os blogues dedicados ao cinema sofrem os efeitos erosivos das redes sociais, cujas limitações de caracteres dificultam críticas fundamentadas aos (muitos) filmes estreados todas as semanas. Não desanimemos, porém. O mercado do cinema em Portugal parece estar a recuperar da crise e, enquanto houver espectadores lúcidos e curiosos, a escrita sobre as imagens em movimento pode manter-se dinâmica, com ou sem o meu contributo.

Fascismo nunca mais?

Vários analistas têm salientado o contraste entre a estabilidade vivida no Portugal de António Costa, líder de um Governo invulgarmente à esquerda para os padrões da União Europeia, e a crescente agitação internacional, marcada pelo terrorismo, pelas vitórias da extrema-direita e por novas formas de autoritarismo. Esta situação excepcional motiva os cientistas sociais a tentar esclarecer as razões do fracasso do radicalismo de direita entre nós. Vou tentar resumir as hipóteses apresentadas por vários autores, como o prof. António Costa Pinto e o historiador italiano Riccardo Marchi, investigador da evolução da extrema-direita portuguesa.

 

1. A memória das ditaduras funciona, em Portugal e Espanha, como um obstáculo à atracção popular por projectos de extrema-direita. Os saudosistas do Estado Novo continuam a ser minoritários e o 25 de Abril, apesar das polémicas sobre o PREC, é considerado um marco libertador pela generalidade da população portuguesa. Para os jovens, os eventos dos anos 60-70 tornam-se cada vez mais distantes, mas o sistema educativo, a historiografia e o Museu do Aljube têm divulgado abundantemente o “antes” e o “depois” da Revolução.

 

2. Portugal encontra-se hoje muito mais aberto ao exterior que no tempo de Salazar. As décadas de democracia e integração europeia fizeram recuar o país do patrão e do senhor padre e favoreceram a mudança e laicização das mentalidades, tal como uma maior tolerância para com os estrangeiros e as novidades vindas de fora. Quase ninguém quer ficar orgulhosamente só.

 

3. A islamofobia possui um mecanismo semelhante ao do anticomunismo do tempo da Guerra Fria, baseando-se igualmente numa ameaça real, mas encontra reduzido eco em Portugal, quer por motivos históricos (as marcas da presença medieval islâmica permanecem, sobretudo no Sul do país) quer pelo escasso número e sucesso na integração da comunidade muçulmana. Os refugiados do Médio Oriente acolhidos por cá desde 2015, apesar dos receios iniciais, passam hoje despercebidos. Obviamente, se chegassem sucessivas embarcações de migrantes à costa do Algarve, a situação poderia alterar-se.

 

4. A extrema-direita lusa não possui uma clara base social de apoio, como largos contingentes de operários desempregados ou pequenos proprietários agrícolas ameaçados pela globalização. Ao invés de vir para a rua partir tudo ou apoiar novos partidos, o português comum manifesta o seu descontentamento com o sistema através da abstenção e do desinteresse total pela política e pelos políticos, fenómeno que acaba por reforçar a influência dos eleitores fiéis aos partidos tradicionais. Por sua vez, as elites económicas, beneficiárias das ligações ao “centrão” e de uma relativa paz social, não vêem razões para financiar grupos extremistas.

 

5. Depois do 25 de Abril, os nacionalistas, desprovidos de uma liderança unificadora, conheceram disputas internas e divisões em grupúsculos semelhantes às que afectavam a extrema-esquerda. Ao mesmo tempo, o fim do Império e, após o 25 de Novembro e as vitórias eleitorais da AD, o afastamento dos receios de uma tomada do poder pelos comunistas deixaram a extrema-direita sem causas por que lutar. Boa parte das bases radicais entrou para o PSD (que acolheu “democratas” da craveira de Alberto João Jardim) ou para o CDS, enquanto Jaime Nogueira Pinto e outros intelectuais se dedicavam apenas ao combate cultural, em jornais e revistas de circulação reduzida. O PNR surgiu na transição do milénio como uma nova força partidária anti-sistémica, mas José Pinto Coelho revelou-se inepto na liderança, limitando-se a importar o discurso anti-imigração que via ter sucesso em França e na Holanda, sem alcançar um efeito semelhante em Portugal. Embora tenha aumentado lentamente a sua votação, o PNR nunca esteve próximo de eleger um deputado e a sua associação aos grupos de skinheads prejudica-o. A direita liberal é maioritariamente europeísta e recusa o proteccionismo dos radicais, embora algumas reacções ao fenómeno Trump indiquem que entre “moderados” e nacionalistas existe uma fronteira Schengen e não um muro.

 

Tudo isto significa que podemos ficar sossegados porque o fascismo nunca mais volta? Nem por isso. Uma rápida vista de olhos pela Internet detecta a vasta difusão de um populismo larvar, perigoso a médio prazo, embora ainda sem ninguém que o encabece (além do jornal Correio da Manhã). O Diabo mantém assinantes em número suficiente para prosseguir a sua publicação. Entretanto, o caso da Nova Portugalidade veio demonstrar um dilema: se for concedido tempo de antena à extrema-direita, ela aproveita-o bem para a sua propaganda, mas, caso lhes sejam impostas limitações, os fascistas armam-se em mártires da liberdade de expressão. O discurso contra o “politicamente correcto” alastra e os êxitos dos correligionários nos EUA e na Europa fazem os radicais portugueses acreditar que podem sair do gueto. Embora Portugal pareça imune à vaga de crescimento da extrema-direita, o vírus ressurgirá se descurarmos a prevenção. Por isso, viva o 25 de Abril!

 

 

 

 

Febre da bola

Os media falam tanto de futebol porque os portugueses adoram-no ou os portugueses adoram futebol porque os media falam tanto dele? Dito de outra forma, a omnipresença mediática do desporto-rei resulta de uma exigência do público ou este é condicionado para consumir futebol em doses maciças?

 

O historiador Ricardo Serrado costuma defender a primeira hipótese, a partir das circunstâncias do início do futebol português, que, na primeira década do século XX, evoluiu das suas origens elitistas para uma fase de popularização. Por volta de 1908, os jogos oficiais de futebol disputados em Lisboa contavam já com milhares de espectadores, muitos dos quais afectivamente ligados a um determinado clube. A grande maioria dos adeptos e praticantes do football association na capital era formada por analfabetos, introduzidos no novo desporto através da presença deste no quotidiano e não por influência da imprensa. Vinte anos depois, dezenas de milhares de pessoas (as fotografias e os raros filmes das multidões são impressionantes) aglomeravam-se nas cidades portuguesas para acompanharem, através dos painéis montados pelos jornais O Século e Diário de Notícias, a reprodução das incidências dos desafios da selecção nacional de futebol no torneio dos Jogos Olímpicos de Amesterdão, onde a equipa das quinas atingiu os quartos-de-final. A selecção constituía um fenómeno de popularidade que abrangia um universo muito superior ao dos leitores da imprensa desportiva (composta por títulos geralmente semanais ou bissemanais) e generalista.

 

A paixão pelo futebol ainda era, no entanto, uma realidade apenas urbana. Quando António Roquete, o guarda-redes da selecção que brilhara na Holanda, chegou em 1931 a Marvão para trabalhar no posto fronteiriço da PIP (Polícia Internacional Portuguesa), os habitantes da vila alentejana conheciam vagamente o nome de Roquete, mas não se mostravam interessados nos feitos desportivos do atleta. Já na década de 50, quem vivia numa aldeia do interior, como os meus avós e pais, podia passar anos sem ouvir falar de futebol, algo literalmente impossível na actualidade. Neste cenário, a adesão dos portugueses ao beautiful game parecia ser espontânea, limitando-se a imprensa, a rádio (envolvida a partir dos anos 30 na transmissão de relatos em directo de eventos desportivos) e a televisão, surgida em 1957, a tentar acompanhar a crescente procura de informação sobre futebol.

 

Durante o Estado Novo, contudo, os meios oposicionistas começaram a relacionar o fenómeno futebolístico com a acção do regime, que estimularia o crescimento do futebol e o seu acompanhamento pelos media de modo a distrair a população dos problemas sociais que esta vivia e evitar a mobilização contra o salazarismo. A fórmula dos “3 efes”, Fado, Futebol e Fátima, serviu para explicar a apatia dos portugueses e salientou a natureza artificial do culto gerado por uma modalidade ligada a numerosos interesses materiais. O 25 de Abril contribuiu para a difusão da crítica ao carácter “alienante” do futebol profissional, combatido pela política da Direcção-Geral dos Desportos, organismo alvo da influência do PCP entre 1974 e 1976. Os ataques ao desporto-rei reduziram a exposição mediática deste, o que não impediu os adeptos de continuarem a afluir em massa aos estádios.

 

A transmissão televisiva de partidas de futebol, iniciada em força apenas na década de 80, devido ao receio dos clubes da perda de receitas de bilheteira, veio alterar a relação dos espectadores com a modalidade e fazer crescer a mediatização. Os anos 90 trouxeram as estações generalistas privadas, a Sport TV e outros projectos que ampliaram o conhecimento luso sobre o futebol internacional, enquanto os velhos jornais A Bola e Record juntaram-se a O Jogo no ritmo diário de publicação. Desde então, os números de bilhetes vendidos nos estádios caíram, mas o futebol tornou-se omnipresente no discurso mediático. Muitas empresas associaram a sua publicidade aos êxitos da selecção e favoreceram o entusiasmo generalizado em torno dos Europeus e Mundiais. Além das tiragens altas das publicações especializadas, os media generalistas reforçaram os espaços dedicados ao desporto (leia-se futebol) e a Internet acelerou a transmissão de opiniões e notícias futebolísticas. Os debates acesos entre adeptos dos três “grandes” espalharam-se pelos canais do cabo (a CMTV emite todas as noites discussões sobre futebol), um mercado no qual os próprios clubes investiram. Esta atmosfera quase sufocante deve-se a um facto simples: o futebol vende. Aliás, numa época em que o público está cada vez mais fragmentado e individualizado, o jogo do pontapé na bola é o único produto cultural a atrair os portugueses sem distinções de idade, classe, educação e (até) género.

 

É possível responder das duas formas às perguntas do primeiro parágrafo. O futebol possui um apelo básico e irracional que atinge quase todos os países e precede qualquer aproveitamento político ou económico. No entanto, seria no mínimo ingénuo não compreender como a modalidade regulada em 1863 se tornou um dos maiores negócios do mundo, cujos agentes aproveitam na perfeição os media para mobilizar os adeptos/consumidores, fonte de receitas também para a comunicação social. Contestar a mediatização do futebol é tão inútil como as queixas contra o calor ou a chuva. Seja como for, não se justifica achar que a atenção concedida ao fenómeno futebolístico impede a população (implicitamente considerada burra e infantil) de se interessar pela política. Apesar de se tratar de um discurso mais comum à esquerda, Alberto Gonçalves associou recentemente a cobertura exaustiva dos meandros da bola à popularidade da Geringonça. Afinal, o futebol é como os árbitros: quem está a perder queixa-se sempre dele.

 

 

O PREC 1 e o PREC 2

A formação da “geringonça” e a governação de António Costa fizeram muitos escribas recordar o Processo Revolucionário em Curso (PREC), quer pela efeméride das quatro décadas passadas desde esse período quer pela aliança aparentemente contra-natura do PS com partidos que combateu nos primeiros anos de democracia. No entanto, faz mais sentido estabelecer uma analogia entre 1974-1975 e outro “processo revolucionário”, o de 2011-2015, devido ao surpreendente paralelismo entre as duas tentativas políticas de transformar radicalmente o país. Claro que as diferenças são inúmeras, mas a dinâmica dos processos revela-se bastante semelhante. No texto seguinte (que não deve ser levado muito a sério), apresentamos uma narrativa comum aos dois PRECs, separando por barras os conteúdos opostos do PREC 1/PREC 2.

 

O campo revolucionário

 

Numa fase histórica bastante singular, ganhou protagonismo em Portugal um sector político defensor de mudanças profundas e desdenhoso dos moderados que se contentavam com tímidas reformas. Tratava-se de um conjunto heterogéneo, onde se destacava um partido dominante, o PCP/PSD, liderado por um homem popular entre as mulheres, Álvaro Cunhal/Pedro Passos Coelho, que se tornou o rosto principal do projecto de ruptura. Verificavam-se por vezes confrontos acesos entre as restantes formações da mesma área política e o partido hegemónico, mas todos partilhavam um objectivo, uma ideologia e um vocabulário comuns. Alguns políticos oriundos do campo revolucionário que atacavam o líder deste, como Arnaldo Matos/Manuela Ferreira Leite, eram considerados traidores e provocadores ao serviço do adversário.

 

A esquerda/direita radical enalteceu um grupo profissional específico, os proletários/empresários, elogiados e destacados ao ponto de deixarem na sombra o resto da população. Curiosamente, os dirigentes revolucionários, políticos profissionais há muitos anos, não constituíam exemplos do modelo ideal proposto. Em contraste com os grupos louvados, outros sectores, nomeadamente os capitalistas/funcionários públicos, eram considerados parasitas e acusados de sugar a riqueza nacional e contribuir com os seus privilégios injustificados para a manutenção do atraso e da pobreza. O discurso de ruptura dirigiu-se em particular aos jovens, incentivando-os a destruir o sistema caduco construído pelos mais velhos e benéfico apenas para estes. A luta contra o imobilismo e a promiscuidade entre política e negócios era o mote da actividade revolucionária, beneficiária de um forte apoio entre os intelectuais/economistas, os quais dispunham de grande espaço mediático e influência na opinião pública. José Gomes Ferreira foi um dos autores mais empenhados na defesa do ideal transformador, cujos adeptos retiravam a sua certeza da crença de que o modelo por eles proposto não era uma simples opção, mas sim o resultado obrigatório da realidade das coisas e do sentido da História.

 

Mais do que mudar o país, os grupos radicais pretendiam mudar os portugueses, cujas características não lhes agradavam. A maioria da população parecia-lhes demasiado apegada a hábitos antigos, como ir à missa/receber subsídios, e preocupada apenas com os seus interesses particulares. Os cidadãos deveriam assumir uma postura mais activa e criativa, em vez de se limitarem a queixar-se, e unir-se-iam em grandes esforços colectivos visando o sucesso nacional e nos quais os inevitáveis sacrifícios seriam recompensados por um futuro radioso. Um dos objectivos finais da Revolução seria a criação de um Homem Novo, apto a viver na sociedade transformada. Os revolucionários estimularam a luta das massas/dos indivíduos contra o sistema opressor, mas, após chegarem ao poder, passaram a apelar à paz social e à contenção das reivindicações, em nome da “batalha da produção”/do “ajustamento”.

 

 

O radicalismo no poder

 

O irrealismo e a imprudência de Spínola/Sócrates contribuíram para o controlo do Governo pelos radicais e o início de um processo revolucionário, simbolizado pela guinada do país à esquerda/direita verificada após o 11 de Março/o memorando da troika. A nova política económica assentou num vasto programa de nacionalizações/privatizações e no aumento/corte brusco das despesas do Estado, enquanto a distribuição do rendimento nacional foi alterada a favor do trabalho/capital. As medidas tomadas e a crise económica mundial agravaram a recessão e conduziram a uma subida acentuada do desemprego. Um grande número de técnicos qualificados abandonou o país, enquanto numerosas empresas enfrentavam sérias dificuldades ou fechavam as portas. O movimento revolucionário não obtinha o desenvolvimento que prometera. No entanto, o executivo liderado por um elemento do PCP/PSD manteve-se em funções, graças à tolerância e solidariedade do Presidente da República (curiosamente, o mesmo que sancionaria mais tarde o final da Revolução).

 

Acerca do contexto internacional, os sectores radicais disseram aos portugueses que estes eram independentes/estavam totalmente reféns do estrangeiro. No discurso comunista/liberal, vários países, como o Chile/a Grécia, serviam de exemplos daquilo em que Portugal não podia tornar-se, enquanto, entre as opções económico-sociais disponíveis na Europa, os sistemas albanês e soviético/irlandês e alemão tornavam-se modelos a copiar acriticamente. Inspirados pelo recuo global do liberalismo/da social-democracia, os revolucionários lusos sentiam-se apoiados por um poder externo, mostrando tamanha submissão a Moscovo/Berlim que eram acusados de colaboracionistas, apesar do seu discurso patriótico.

 

Com vista a doutrinar o povo de acordo com a ideologia oficial, os detentores do poder tornaram-se predominantes nos media, cujos jornalistas se viram pressionados pela ameaça de saneamento/despedimento. Inundadas por conteúdos parciais e técnicas de manipulação, a rádio, a imprensa e a televisão entraram numa espiral de descrédito e viram o público afastar-se. A educação, apesar da desconfiança da Revolução quanto aos professores, alguns dos quais tinham estado ligados ao antigo regime, foi outro meio de difusão do marxismo/empreendedorismo entre os jovens. A revisão dos programas e métodos de avaliação tornaria a escola, preferencialmente pública/privada, um espaço de formação dos novos portugueses. No entanto, viveu-se uma fase agitada nos estabelecimentos de ensino, onde muitas aulas não se realizavam devido à falta de autoridade/professores colocados.

 

Perante as dificuldades em converter toda a população ao seu ideário e os obstáculos levantados pela Constituição em elaboração/vigor, os esquerdistas/liberais apelaram sobretudo ao medo, transmitindo a ideia de que, se a política então em curso fosse abandonada, os responsáveis pela decadência passada voltariam a destruir o país e a ditadura/troika regressaria, ainda mais violenta. Com o passar do tempo e a resistência às manifestações de larga dimensão, os revolucionários acreditaram na vitória final a curto prazo. No Outono de 1975/2015, jogou-se o desenlace do processo e acontecimentos como o cerco à Constituinte/a vitória da PAF pareciam indicar o sucesso dos radicais, que surgiram triunfantes na televisão. De repente, contudo, Duran Clemente/Nuno Melo desapareceu do ecrã.

 

 Derrota e refluxo

 

Há muito que o PCP/PSD desejava neutralizar o PS através de um acordo que colocaria os socialistas numa posição subalterna e tornaria a Revolução irreversível. Um sector do PS estava, de facto, disponível para ceder, à semelhança do que já acontecera noutros países europeus, mas, após uma dura luta interna, o líder socialista compreendeu que, sem meios para extinguir sozinho o processo revolucionário, necessitava de se aliar a outros partidos com o mesmo objectivo. As divergências dos socialistas com o PPD e o CDS/o PCP e o BE eram muitas e levariam a conflitos futuros, mas os três partidos, seguindo a opinião maioritária nos seus eleitorados e os esforços unitários de Mário Soares, valorizavam mais as semelhanças entre si e sentiam que, se não se unissem para travar os revolucionários, dificilmente sobreviveriam. E assim, em Novembro de 1975/2015, o “arco da governação”/a “geringonça”, aproveitando o facto de controlar a maioria das unidades militares/dos lugares no Parlamento, derrotou e afastou do poder a esquerda/direita.

 

A tendência para a radicalização conheceu uma inversão súbita, acentuada após a eleição de um novo Presidente da República, célebre pela sua expressão facial permanentemente séria/sorridente e empenhado em reduzir a crispação política através de um discurso de união. O novo Governo, chefiado pelo secretário-geral do PS, começou progressivamente (embora não tão depressa como alguns pediam) a reverter as medidas tomadas durante o PREC. Cansada por um longo período de tensão social e mobilização permanente, a maioria da população apreciou a tranquilidade vivida na fase pós-revolucionária. Os defensores da Revolução denunciavam num tom indignado o avanço dos fascistas/comunistas, mas, apesar de manterem o domínio de jornais como O Diário e Diário de Lisboa/i e Observador, o seu discurso parecia cada vez mais exagerado e serôdio.

 

Entre activistas como José Manuel Fernandes, a sensação de que a revolução ficou inacabada, devido ao desperdício de uma oportunidade única, e a revolta com a forma como a burguesia/oligarquia conseguiu anular as conquistas alcançadas cresceram à medida que a “normalização” avançava e a sua ideologia perdia adeptos. Mais tarde, alguns autores de esquerda/direita apontaram o que consideravam ser a causa do fracasso: o PCP/PSD nunca fora um partido verdadeiramente revolucionário e contentara-se com um capitalismo/socialismo regulado. No entanto, para os revolucionários, a derrota sofrida não significava o fim da História. Embora longínquos, o desaparecimento do Estado e o fim da exploração do homem pelo homem/pela feminista aconteceriam um dia.

 

 

A América roubou a Lua?

Os ziguezagues de Donald Trump têm deixado os comentadores de política internacional aos papéis. Muitos deles parecem críticos a analisar uma telenovela como se fosse um filme de Manoel de Oliveira. Na verdade, o curso dos eventos tem-se assemelhado mais a uma farsa representada por péssimos actores. Quanto ao que se passa nos bastidores do teatro, a única certeza é que tudo é mais sujo, ridículo e irracional do que possamos imaginar (um pouco como as reuniões do Eurogrupo).

 

De certa forma, tudo isto estava anunciado no livro de campanha de Trump, “Grande Outra Vez”. Por um lado, a obsessão de Donald pela grandeza: construir o edifício mais alto, erguer um mastro gigantesco para colocar uma bandeira enorme, usar a bomba convencional mais potente, etc. Por outro, a crítica aos anteriores presidentes americanos por anunciarem tudo o que iam fazer, ao invés da técnica aprendida nos negócios (como tudo o resto) por Trump de surpreender o adversário e deixá-lo numa dúvida permanente sobre o passo seguinte. E, acima de tudo, uma profunda ignorância sobre o mundo. Trump confessou numa entrevista ao Wall Street Journal a sua surpresa com as coisas que aprendeu durante os 10 minutos em que o presidente chinês lhe explicou a situação na Coreia. É natural que o construtor desconheça a história das relações sino-coreanas, mas o facto de Trump admitir isto, sem compreender a imagem que transmite acerca de si próprio e da corte que o rodeia na Casa Branca, é significativo quanto à profundidade intelectual do presidente dos Estados Unidos.

 

Nunca subestimem o poder da estupidez humana.

 

 

P.S. Algumas pessoas têm oposto os bombardeamentos trumpistas à alegada passividade da Administração Obama, cuja contenção teria fomentado o caos no Médio Oriente. Na verdade, os EUA conheceram nos últimos anos a “síndrome do Iraque”, já que a ideia tão difundida em 2003 de enviar tropas em força para salvar o mundo e promover a liberdade foi completamente desprestigiada pelo atoleiro iraquiano. A atitude cautelosa de Obama deveu-se não a cobardia ou indiferença, mas à prudência perante o risco de recorrer à força militar sem um plano bem definido para o futuro. Agora, o dicionário de Trump inclui palavras como “copos” e “gajas”, mas “prudência” é algo que dele não consta.

Justiça CM

Há duas coisas que é fácil e popular dizer em Portugal. A primeira é defender que os deputados deveriam ser em menor número e eleitos por círculos uninominais. A segunda é reclamar uma justiça mais dura. Neste último caso, quem nunca contactou, na Internet e fora dela, com opiniões, frequentemente emitidas por anónimos ou pessoas de aspecto pacato, segundo as quais os incendiários deviam ser metidos vivos no fogo, os pedófilos deviam ser castrados, os banqueiros deviam ser executados ou os reclusos deviam deixar de viver no bem-bom à nossa custa? Custa a crer que Portugal tenha abolido a pena de morte tão cedo.

 

Quem viola a lei deve ser punido, obviamente. No entanto, este discurso justicialista tão comum encerra vários aspectos perversos. Desde logo, serve para quem o profere se destacar como honesto, virtuoso e diferente “deles”, tal como acusar os outros de não trabalharem faz qualquer um parecer mais trabalhador. O muro imaginário construído entre as pessoas “normais” e os criminosos assenta numa superioridade moral nem sempre correspondente à realidade. Além disso, acreditar que penas severíssimas fazem o crime desaparecer é no mínimo polémico (veja-se o exemplo dos Estados Unidos). Da mesma forma, essa oratória deixa implícito um profundo desprezo por normas democráticas como a presunção de inocência, a necessidade de provas para fundamentar uma condenação, a proporcionalidade das penas, o direito de recurso ou o acesso a condições prisionais humanas. A defesa da “mão pesada” inclui também uma forte intolerância para com quem ousa dizer um tímido “mas” e assim se denuncia como amiguinho do bandido em questão, sobretudo se este tiver cor política diferente da nossa.

 

Nenhum partido português conseguiu, por enquanto, explorar este populismo difuso, mas ele tem alimentado e sido alimentado pelo diário Correio da Manhã e pelo seu braço televisivo, a CMTV, ambos produtos jornalísticos (?) de grande sucesso comercial. Para lá da angariação de dinheiro, Octávio Ribeiro, director do CM e da CMTV, tem referido como motivação a necessidade de ir de encontro aos interesses do público e, supostamente em nome deste, denunciar sem reservas os “poderosos” protegidos pelos outros media. O pior é que o Correio da Manhã conta com o apoio de sectores do Ministério Público, na origem da divulgação de informações retiradas dos processos mais mediáticos, e vários acórdãos e sentenças emitidos nos últimos anos dão a entender que vários juízes estão a transformar-se em justiceiros, mesmo sem conduzirem um KITT (desculpem a piada seca, mas não resisti). Susceptíveis às acusações de excessiva benevolência para com o peixe graúdo, os meios judiciais sentir-se-iam impelidos a obedecer ao “Condenem-me alguém!” de João Miguel Tavares, independentemente das regras associadas à aplicação do direito.

 

 

Esta situação assemelha-se a uma revolução dirigida contra o poder corrupto e liderada não por políticos mas por juízes, além de fazer recordar o PREC, quando os sectores mais à esquerda recusavam a “justiça burguesa” e pretendiam ultrapassar formalismos de modo a punir os “fascistas”, com base não na legislação mas sim na “legitimidade revolucionária”. Em resumo, de acordo com a ideologia do Correio da Manhã, é preciso que a parte “boa” da sociedade esmague a parte “má” sem dó nem piedade. O problema é que esse é o princípio orientador da ditadura, não da democracia.

Os amigos do PCP

Os Kim, os Assad, os Castro, Putin, Kadhafi, Milosevic, Chávez/Maduro, José Eduardo dos Santos… a lista de ditadores ou aspirantes a tal que contam ou contaram com manifestações de apoio, simpatia e tolerância do PCP é vasta, mesmo sem recuarmos ao período anterior a 1989. A pontaria do partido ao escolher os seus “amigos”, vários dos quais enviam representantes aos congressos do PCP ou à Festa do Avante, tem sido exímia. Poder-se-ia também referir a China, mas o regime do PCC goza da tolerância de todos os sectores políticos, embora por motivos diferentes.

 

Sobrevivente da Guerra Fria, o pensamento dos comunistas portugueses em matéria de política internacional segue um mecanismo automático e irreflectido: se os americanos não gostam de alguém, esse alguém só pode ser um tipo porreiro. Na Soeiro Pereira Gomes, os piores assassinos têm sido convertidos em resistentes ao imperialismo, essa entidade ominosa e omnipresente por trás de todas as conspirações contra os líderes progressistas. Esta mundivisão é tão maniqueísta como confortável, já que fornece uma explicação simples e comum a todos os acontecimentos mundiais e esclarece de forma infalível quem são os bons e os maus da fita. No fundo, o partido de Jerónimo de Sousa encontra ingenuamente uma moral e um sentido num mundo que já os perdeu há muito.

 

Para lá da hostilidade em relação aos EUA e à União Europeia, outro factor que contribui para o sorriso mostrado pelo PCP aos regimes mais insólitos é o peso de uma história quase centenária. Ao contrário do Bloco de Esquerda, mais jovem e ligeiro (além de herdeiro da esquerda que condenou a repressão da Primavera de Praga em 1968), o PCP vê-se preso às posições assumidas ao longo de um passado que não pode renegar, uma vez que a propaganda comunista apresenta a história do partido como uma linha contínua e marcada por princípios inalteráveis, pelo menos desde a reorganização de 1940-41. Mantendo a flexibilidade táctica, o PCP evita rupturas demasiado visíveis ao nível programático. Uma tomada de posição que possa dar a entender que Álvaro Cunhal alguma vez se enganou está fora de questão para os seus sucessores. Além disso, para o bem e para o mal, os comunistas levam muito a sério a actividade política que desenvolvem (seria difícil que um hipotético ex-ministro comunista confessasse ter aprovado uma lei importante na praia e sem sequer ler o que assinou), numa atitude impeditiva do à-vontade na cambalhota e do prazer na incoerência demonstrados por outros partidos. Assim, o PCP continua a elogiar e proteger o MPLA, cuja ascensão ao poder apoiou em 1975, apesar do partido da família dos Santos ser hoje tão marxista como os seus amigos do CDS. Da mesma forma, a tendência do PCP para gostar da Rússia e das posições de força desta contra os países da NATO é incontrolável, por menos comunista que seja o actual czar.

 

Na verdade, a benevolência concedida pelo PCP aos ditadores sírio (recorde-se que a URSS era aliada da Síria de Hafez al-Assad), russo e norte-coreano é indiferente para estes e já não faz sentido acusar os comunistas lusos de protegerem os interesses de uma potência estrangeira. O carácter inofensivo dos textos publicados na secção internacional do Avante não invalida, porém, as situações humilhantes que envolvem frequentemente o único partido português a enviar condolências aos norte-coreanos pela morte de Kim Jong-il.

 

"Deus, Pátria, Autoridade"

Está a decorrer na FCSH-UNL o ciclo “Cinema É Liberdade”, promovido pelo Instituto de História Contemporânea e dedicado à obra do realizador Rui Simões, um dos principais nomes do cinema documental português. O evento iniciou-se em 6 de Abril com a exibição de “Deus, Pátria, Autoridade”, a primeira longa-metragem de Simões, estreada a 21 de Fevereiro de 1976 no cinema Universal (Lisboa) e na qual, a partir dos conceitos essenciais do Estado Novo, é feita uma panorâmica da evolução de Portugal entre a implantação da República e os meses da presidência de António de Spínola.

 

Apoiado pela RTP, “Deus, Pátria, Autoridade” só seria exibido na televisão muitos anos depois da estreia, facto compreensível se tivermos em conta que o apelo à luta de classes feito por Rui Simões tornou-se politicamente embaraçoso para a estação pública no pós-25 de Novembro. Tal não obstou a que o documentário se tornasse um surpreendente êxito comercial, quer durante os três meses em que permaneceu na sala lisboeta quer através de numerosas sessões realizadas por todo o país a pedido de comissões, associações ou grupos de trabalhadores. Um projector e uma parede suficientemente grande eram suficientes para permitir o visionamento de “Deus, Pátria, Autoridade” e debates em torno do conteúdo político da obra. Além de atrair a extrema-esquerda, esta conseguiu entrar nos círculos ligados ao PCP, apesar de uma referência do narrador, Rui Paulo da Cruz, aos “imperialismos”, quando, para os comunistas, imperialismo só havia um, o americano e mais nenhum. A estreia de Rui Simões (exilado na Bélgica, onde estudou cinema, antes do 25 de Abril) na realização era exactamente o filme que o país, ou parte dele, queria ver em 1976. Surgiu ainda nesse ano uma versão em livro de “Deus, Pátria, Autoridade”, publicada pela Contraeditora.

 

 

A longa-metragem apresenta um discurso simples e didáctico, orientado pela preocupação do realizador em alcançar e esclarecer a maioria da população, então dotada de conhecimentos muito fracos sobre política e economia. Esse esforço conduziu a cenas hoje consideradas infantis por Rui Simões, como a animação que explica o enriquecimento dos patrões à custa dos trabalhadores. De facto, “Deus, Pátria, Autoridade” está longe de pretender ser imparcial e apresenta uma visão engagé da História portuguesa em que o lado bom (o proletariado) se distingue claramente do lado mau (a burguesia). O simplismo não impede o documentário de abordar o período entre 1910 e 1974 de forma coesa e fluida, mantendo o interesse do espectador e inserindo-o sem dificuldade no universo do filme.

 

Apesar de tomar posição, o trabalho de Simões permite ouvir a voz do “inimigo”, seja através de imagens retiradas da propaganda do Estado Novo, em depoimentos recolhidos nas ruas de Lisboa já em democracia, com um antigo soldado a recusar a descolonização, ou numa entrevista feita pelo realizador a Silva Pais, o antigo director da PIDE/DGS então detido em Caxias. Ao manejar sons e imagens de significados contraditórios, Simões questiona habilmente a perspectiva salazarista, num tom mordaz presente na coabitação do discurso do cardeal Cerejeira com o tilintar das moedas doadas pelos fiéis em Fátima ou na coreografia da tomada de posse do I Governo Provisório. A qualidade da montagem é espantosa, tendo em conta a inexperiência da equipa do filme e a precariedade das condições técnicas nas quais o documentário foi criado (no debate verificado após a projecção na FCSH, Rui Simões contou algumas peripécias insólitas da produção, para a qual partiu sem um tostão no bolso). As imagens compiladas possuem em si mesmas um valor documental inestimável e levantam questões como o papel e representação das mulheres, entre a artificialidade das “madames” burguesas exibidas em festas e a rebeldia, misturada com sensatez, das operárias e trabalhadoras rurais cuja voz se fez ouvir a partir do derrube do regime.

 

Actualmente disponível em DVD e no You Tube, “Deus, Pátria, Autoridade” é um objecto cinematográfico filho da Revolução de 1974/75, com tudo o que ela teve de ingénuo e espontâneo, e apresenta Rui Simões, um cineasta não tão reconhecido como merece. No seu segundo filme, “Bom Povo Português” (1980), Simões aperfeiçoaria o seu estilo num retrato único do PREC.

 

 

 

Planeta do Macaco

De acordo com o depoimento de Fernando Madureira (Macaco) registado pelo jornalista Filipe Bastos no livro "Fernando Madureira, O Líder" (O Gaiense, 2005), a tarefa do chefe da claque Super Dragões (SD) é comparável à de “uma educadora de infância sempre a ver onde é que as crianças estavam a fazer asneiras” (p. 60). De facto, são inúmeras as situações referidas no livro em que Macaco tem de negociar com a polícia a libertação dos “ultras” detidos ou exigir que os “gaiatos” devolvam objectos roubados. No entanto, surgem como habituais e mesmo inevitáveis as “rapadelas” dos SD em estações de serviço ou free shops de aeroportos. Nem a megastore do Manchester United escapou em 1997 à perícia da claque portista. Eu pensava inicialmente que os SD poderiam constituir para vários jovens uma alternativa à heroína e ao crime organizado, mas a abundância de processos envolvendo membros da organização de Macaco e as notícias sobre os feitos do Canelas realçam o papel da claque como escola da ilegalidade.

 

Embora as memórias de Madureira incluam os anos dourados de José Mourinho, tal como a breve derrocada de 2004/05, o que se passa nos relvados é irrelevante (o livro fala muito pouco de futebol) perante a abundância de peripécias ligadas às deslocações dos SD. Entre estas incluem-se as batalhas, no sentido literal, contra os No Name Boys (as relações dos SD com os Diabos Vermelhos são mais pacíficas, enquanto Macaco dá ordens para que não se verifiquem agressões a “pessoas normais”, ou seja, benfiquistas civis). Nos recontros, além da supremacia pela força, a tomada de presas valiosas, como faixas e estandartes da claque rival, assume grande importância. 

 

O livro de Filipe Bastos acaba por demonstrar que o mundo do futebol inclui histórias pessoais que ultrapassam a imaginação dos ficcionistas. Pelo menos, as “aventuras” de Macaco e outras personagens dos SD como Futre, Bruno Pidá, Afurada, Cult, Trilho, Caveira, Teixeira, Pili, Terror, Leitinho e muitos mais registam experiências vividas por poucas pessoas, quanto mais não seja pelo descaramento dos intervenientes.

 

 

 

 

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