Ao longo das últimas seis décadas, a história da televisão em Portugal tem sido marcada não só por processos de evolução lenta, mas sobretudo por momentos de ruptura que originaram novos géneros televisivos ou alteraram a influência do pequeno ecrã na sociedade lusa. É, inclusive, possível destacar um conjunto restrito de programas ou acontecimentos cujos efeitos se fizeram sentir nos anos seguintes, por vezes até à actualidade. Por motivos óbvios, as referências a factos anteriores a 1984 baseiam-se mais em bibliografia e documentários posteriores que na minha memória.
“Zip-Zip” (1969): Durante a breve “Primavera Marcelista”, o projecto criado e apresentado por Carlos Cruz, Raul Solnado e Fialho Gouveia introduziu na RTP o formato clássico do talk-show (uma combinação de música, entrevistas e sketches humorísticos) e abanou a televisão monótona e monolítica do Estado Novo. Apesar da vigilância censória, o “Zip” fez entrar em casa dos (ainda poucos) portugueses que já tinham televisor artistas da “música de intervenção” e outras personalidades desconfortáveis para a ditadura, sendo recordado como uma rápida lufada de ar fresco. Foi talvez o primeiro programa televisivo português a tornar-se um fenómeno de popularidade e um símbolo do tempo em que apareceu.
25 de Abril (1974): Entre o anúncio feito por Fialho Gouveia e Fernando Balsinha de que o MFA dominava o país e o momento em que Duran Clemente saiu do ar para dar lugar a uma comédia com Danny Kaye emitida a partir do Porto, a RTP surgiu quer como um espelho quer como um terreno de batalha das forças despoletadas pela Revolução. Dominada pela preocupação em acompanhar o processo revolucionário e mostrar o povo trabalhador até aí ausente do ecrã, a estação pública, controlada por militares, viveu uma fase instável e recebeu acusações de parcialidade. A estabilização da democracia contribuiu para despolitizar a RTP, mas esteve longe de anular o apetite dos sucessivos governos pelo controlo da informação televisiva, na origem de múltiplas interferências (“truques”, dir-se-ia actualmente) que só a fundação dos canais privados viria tornar supérfluas.
“Gabriela” (1977): Baseada num romance de Jorge Amado e protagonizada pela actriz Sónia Braga, a primeira produção da Globo exibida em Portugal conquistou fãs da esquerda à direita e simbolizou a primazia do entretenimento após os esforços político-pedagógicos do PREC. As telenovelas brasileiras tiveram um forte impacto social e cultural entre nós e estabeleceram a fasquia elevada perseguida pelos cultores locais do género. Uma situação idêntica verificou-se, de forma menos evidente, com as séries anglo-saxónicas de sucesso internacional.
Televisão a cores (1980): A vitória de José Cid no Festival da Canção marcou o início tardio das emissões regulares a cores da RTP, uma evolução técnica que modificou a experiência de ver televisão. Posteriormente, surgiriam outras mudanças relevantes, como a possibilidade de gravar programas (em VHS e, mais tarde, na box), o aparecimento do controlo remoto, facilitador do zapping, a disponibilização de conteúdos televisivos na Internet ou os videoclubes das operadoras, um dos factores na origem do declínio do cinema nos canais generalistas. O telespectador ganhou uma crescente independência em relação aos caprichos dos anunciantes e programadores.
“Vila Faia” (1982): Nicolau Breyner e Francisco Nicholson, entre outros, criaram a primeira telenovela feita em Portugal por portugueses. Apesar do valor do pioneirismo, as novelas lusas permaneceram, durante um longo período, muito aquém das brasileiras ao nível de histórias, meios técnicos ou sucesso junto do público. A situação mudou a partir da transição do milénio, quando José Eduardo Moniz, à frente da TVI, lançou as bases da “indústria” da novela em Portugal e conquistou para esta audiências superiores às dos folhetins importados. O êxito das fábricas de Queluz e Carnaxide conduziu à “monocultura” do género, em prejuízo de outras formas de ficção televisiva.
“O Tal Canal” (1983): Um dos discípulos de Herman José, Nuno Artur Silva, classificou as 12 “emissões” do canal de Oliveira Casca como o 25 de Abril do humor português. De facto, além de parodiar o próprio meio de comunicação onde aparecia e romper com o estilo tradicional do teatro de revista, Herman estilhaçou o país do “respeitinho”, cheio de coisas sagradas com que não se podia brincar. Enfrentando ao longo da sua carreira as pressões políticas e eclesiásticas, o humorista subversivo desbravou o caminho trilhado por quem veio depois. A pouco e pouco, o inaceitável tornou-se banal.
SIC (1992): O aparecimento das televisões privadas significou o início do fim dos tempos, recordados agora pelos nostálgicos, em que todos os espectadores viam e discutiam os mesmos programas. À maior fragmentação das audiências juntou-se uma atitude menos servil para com o poder, cujos efeitos Cavaco Silva depressa conheceu. Com o seu ar de génio maléfico, Emídio Rangel ditou, para o bem e para o mal, o futuro da televisão portuguesa. Se para uns o canal de Pinto Balsemão trouxe o reforço da criatividade e da interacção com o público, para outros 1992 foi o ano em que começou o longo caminho até ao fundo do poço. Provavelmente, ambas as opiniões estão correctas.
Sport TV (1998): O canal codificado no cabo lançado por Joaquim Oliveira fez definitivamente do futebol, ao fim de quatro décadas de avanços e recuos, o espectáculo televisivo por excelência em Portugal. O adepto contemporâneo vive o desporto-rei no sofá, bem mais que nos estádios, analisa as repetições dos lances polémicos, conhece as principais ligas europeias como a palma da mão e adora ver comentadores de clubes diferentes (os três “grandes” criaram, entretanto, os seus próprios canais) aos gritos por coisa nenhuma. As estações de sinal aberto, em particular a RTP, preservaram as transmissões das partidas da selecção nacional, que constituem hoje em dia os únicos momentos televisivos vividos em simultâneo por milhões de portugueses.
“Big Brother” (2000): A ideia de uma televisão dirigida pela Igreja Católica revelou-se em pouco tempo comercialmente inviável. A TVI andou à deriva durante anos até à chegada de José Eduardo Moniz, que, através da compra da “novela da vida real” produzida pela Endemol, alavancou a ascensão do quarto canal ao primeiro lugar. A verdade é que o programa de Teresa Guilherme arrebatou o país e transformou desconhecidos em celebridades de um dia para o outro. Nos anos seguintes, o entusiasmo popular esfriou e procurou-se introduzir variações de pormenor no modelo sempre igual dos reality-shows. O certo é que, apesar das incessantes críticas à abjecção, estes continuam por cá até hoje.
SIC Notícias (2001): Na esteira do sucesso da CNN, surgiram em Portugal canais a transmitir informação 24 horas por dia. Remetendo para o passado a espera paciente pelo telejornal das oito, os projectos noticiosos de SIC, RTP e TVI responderam ao ritmo cada vez mais frenético da actualidade e à ânsia pela “verdade” do directo (infelizmente, os terroristas souberam aproveitar as características do novo jornalismo). O muito tempo de emissão para preencher e a necessidade de reduzir custos criaram o habitat favorável à proliferação do comentador, essa espécie omnisciente e omnipresente. A informação acabou por se aproximar do entretenimento, numa situação explorada ao máximo pela CMTV, o canal perfeito para quem se masturba a olhar para o sofrimento alheio.
“Gato Fedorento” (2004): Este fenómeno de popularidade que surpreendeu todos, a começar pelos actores/argumentistas, possuiu dois sinais indicativos das tendências da televisão no século que então começava: o aparecimento do programa no cabo, supostamente dedicado a nichos, e a divulgação dos sketches através da Internet, essencial para fazer crescer o núcleo de fãs até dimensões espantosas. Mais de dez anos depois da “explosão” de Góis, Dores, Pereira e Quintela, é difícil aparecer algo de semelhante. Os novos humoristas produzem o seu material directamente para o You Tube, enquanto as televisões consideram demasiado arriscado investir em programas de humor.
Depois destes pontos de viragem, que novidades podem irromper no futuro próximo? O consumo de televisão tornou-se subjectivo, individualizado e repartido por vários meios e plataformas, mas, a nível de conteúdos, pouco se tem inovado em Portugal, quando os canais generalistas, bastante cautelosos, trabalham a pensar sobretudo em crianças e idosos, os únicos grupos etários fiéis aos modelos televisivos tradicionais. Mais do que criar o novo, a estratégia parece ser reciclar o velho, como aconteceu em 2017 com o Festival da Canção. No entanto, o dinamismo oriundo do estrangeiro, especialmente ao nível das séries, pode alastrar ao território verde-rubro, onde ainda resta muito por inventar.
A história de Portugal pode ser acompanhada através da evolução do discurso público (produzido por entidades como o poder político, os comentadores, a literatura ou a televisão) sobre os jovens, sobretudo a partir da década de 60 do século XX, quando a “juventude” passou a constituir um grupo com identidade, tendências e hábitos de consumo próprios e tornou-se uma preocupação para os governantes atingidos pela contestação juvenil, tal como um vasto mercado para a cultura de massas.
Durante a “crise da juventude” protagonizada nos EUA e na Europa pela geração nascida no pós-guerra, o Estado Novo viu-se confrontado com a dificuldade em doutrinar os jovens portugueses nos valores tradicionais. Várias figuras ligadas à ditadura, como a escritora Ester de Lemos e o professor universitário Marcelo Caetano, autor do ensaio “Juventude de Hoje, Juventude de Sempre” (publicado um ano antes do catedrático se tornar chefe do Governo), reflectiram sobre a insubmissão dos portugueses mais novos, inegavelmente distantes do único regime que tinham conhecido. A escola e as organizações de juventude criadas em 1936 e já em declínio nos anos 60, a Mocidade Portuguesa e a Mocidade Portuguesa Feminina, revelaram-se incapazes de atrair uma geração à qual o Estado Novo oferecia apenas a obrigação de combater em África. Após o 25 de Abril, os partidos mobilizaram numerosas pessoas nas casas dos 10 e dos 20, mas, mais do que oferecerem uma agenda específica dirigida à juventude, incentivaram-na a empenhar-se na criação de uma sociedade nova da qual todos beneficiariam.
Ao longo dos anos 80, a politização e o colectivismo reduziram-se em benefício de uma mentalidade mais individualista, expressa de forma bem clara no tema “Nasce Selvagem”, dos Delfins. No cavaquismo (que criou o Cartão Jovem e reduziu a duração do Serviço Militar Obrigatório, abolido já no século XXI), a faixa etária de duração incerta situada entre a infância e a idade adulta passou a ser associada às ameaças da sida e da toxicodependência, enquanto Herman José encarnava personagens como o arrumador Zé Chunga e o hooligan Tó e Vicente Jorge Silva criticava os rabos despidos da “geração rasca”. 15 anos depois, a “geração à rasca” constatava que um curso superior não era sinónimo de emprego estável. Enquanto jovens empreendedores sorriam em encontros com o Presidente Cavaco, muitos membros da “geração mais bem preparada de sempre”, tão iguais e tão diferentes dos emigrantes do tempo de Adriano Correia de Oliveira, partiam para o estrangeiro.
Actualmente, os media e os políticos apresentam-nos perspectivas diversas e contraditórias da juventude portuguesa. Os jovens do programa Erasmus, futuros construtores de uma Europa tolerante e cosmopolita. Os jovens que não lêem e estão viciados nas redes sociais. Os jovens lixados pelos direitos adquiridos dos mais velhos. Os jovens mimados, apáticos e abstencionistas. Os jovens ambiciosos e sem preconceitos. Os jovens que deviam era voltar a fazer a tropa. Os jovens criadores de empresas e promotores do turismo. Os jovens iniciados cada vez mais cedo no sexo e no álcool. Os jovens ignorantes que não sabem o que foi o 25 de Abril. Os jovens que praxam ou são praxados. Os jovens precários. Os jovens das claques. Os jovens da Baleia Azul. Os jovens que partem tudo em Lloret del Mar e Torremolinos. Os jovens cantores que ganham o Festival da Eurovisão. E a lista fica maior a cada semana.
No meio disto tudo, não seria melhor parar de fazer generalizações quer sobre os jovens quer sobre os idosos? Quando eu era (lá está) jovem, já me fazia impressão a quantidade de lugares-comuns associados às extremidades da pirâmide etária. Porque não poderiam existir jovens passivos e conservadores e velhos a lutar contra o Império? Jovens educados e responsáveis e velhos rudes e infantis (tipo Donald Trump)? Jovens com medo de tudo e velhos viciados em novidade e aventura? Jovens aplicados e velhos preguiçosos? Talvez a idade não seja, afinal, o mais importante nem deva condicionar o que cada pessoa pode fazer. Porque quando alguém nasce, nasce selvagem.
A escrita do primeiro livro de Jaime Nogueira Pinto, “Portugal – Os Anos do Fim”, decorreu durante o ano de 1975, quando o portuense e a sua mulher, Maria José Nogueira Pinto, viviam no exílio, com passagens por África do Sul, Brasil e Espanha. A obra, dividida em dois volumes (“A Revolução que Veio de Dentro” e “De Goa ao Largo do Carmo”), seria publicada em 1976 pela editora ligada ao quinzenário de extrema-direita Jornal Português de Economia & Finanças. Regressado a Portugal em 1978, Jaime prosseguiu uma carreira plurifacetada no sector privado, na universidade e na comunicação social, especializando-se em Ciência Política. “Portugal – Os Anos do Fim” foi relançado num só volume pela Difel em 1995, numa versão revista e acompanhada por um prefácio no qual Nogueira Pinto fez o balanço das duas primeiras décadas de democracia. Mais recentemente, no quadragésimo aniversário do 25 de Abril, a D. Quixote recuperou o ensaio, agora com texto igual ao de 1976, à excepção do novo prefácio do autor.
Ao escrever em 2014, Jaime Nogueira Pinto confessa-se mais céptico e menos arrebatado que aos 30 anos, quando produziu “Os Anos do Fim”, apesar de manter os mesmos “valores políticos” nacionalistas (fascistas, se quiserem) da década de 70. O politólogo recorda que o ensaio reeditado nasceu da mágoa pessoal sentida com o fim do Império e na sequência da frase “Portugal acabou”, proferida por Jaime em 25 de Abril de 1974. O Portugal amado pelo então director da revista Política era “um país importante, com territórios, bandeiras, soldados e navios em três continentes e três oceanos”, talvez duro para alguns portugueses, “sobretudo para os mais pobres e menos instruídos”, mas “singular, especial” na Europa pós-descolonização (p. 20). Esta citação é reproduzida na contracapa do livro, juntamente com uma fotografia na qual o jovem Jaime não parece pobre nem pouco instruído. Perante o rápido colapso do Estado Novo e da nação pluricontinental, Nogueira Pinto procurou compreender a origem da ruptura, encontrando-a nos seis anos de governo de Marcelo Caetano e na forma como este, através de um discurso ambíguo e da tentativa de aplicar um modelo federalista nas colónias, teria abalado e degradado os princípios do regime deixados por Salazar. Nogueira Pinto desenvolve a sua tese numa escrita de grande qualidade, marca de um polemista exímio e um arguto analista político.
A obra assume frequentemente um tom autobiográfico, através da narração de episódios vividos pelo autor na qualidade de um dos jovens “nacionalistas revolucionários”, estudados por Riccardo Marchi em “Império, Nação, Revolução” (Texto, 2009) e cujos núcleos de Lisboa e Coimbra defendiam um colonialismo integracionista, propunham medidas para reduzir a desigualdade social e defrontavam a presença crescente da esquerda nos meios culturais e no ensino superior. “Portugal – Os Anos do Fim” descreve em pormenor os grupos e tensões existentes dentro do marcelismo e a estratégia seguida por Caetano ao assumir uma posição centrista entre a ânsia de mudança da “ala liberal” e a resistência dos salazaristas e radicais de direita. No entanto, tudo parece resumir-se às intrigas de um grupo restrito de políticos e militares, na ausência de uma contextualização económica e social do período abordado. Pouco visíveis no livro, os portugueses anónimos assistiriam em silêncio, até porque, sem sondagens nem eleições livres que lhe permitissem avaliar a opinião pública, Nogueira Pinto sobrestimava muito a base de apoio ao regime e à guerra travada em África. Quanto à repressão, o único problema residiria no facto de, a partir de 1968, não ser tão dura como deveria. Apesar de se queixar dos cortes censórios sofridos pela Política, o director desta não considera a censura má em si mesma.
Na perspectiva de Nogueira Pinto, tudo acabou porque ninguém levou nada a sério. Para lá do gosto pela aventura e pelo risco, “que sempre nobilita mesmo as piores causas” (p. 413), e de uma visão bélica e romântica da política, Jaime revela um desprezo profundo pelos burgueses “liberais” (semelhante ao que outros sentiriam mais tarde pela “esquerda caviar”) desejosos da aproximação lusa à Europa. O nacionalista não tolera políticos de “sim, mas…”, incoerentes, temerosos, oportunistas, interesseiros ou defensores de consensos e compromissos. Para Nogueira Pinto, a dedicação a uma ideologia teria de ser total e sem cedências, princípio que explica uma “simpatia mal disfarçada” (p. 23) dos activistas de extrema-direita pelos adversários comunistas e a oposição, na mente do autor, entre o respeito implícito por Álvaro Cunhal e o desdém por Mário Soares.
Retrato tanto de uma época como do homem que o escreveu, “Portugal – Os Anos do Fim” não constitui um trabalho historiográfico (embora Jaime Nogueira Pinto aponte alguns temas que gostaria de ver estudados pelos historiadores futuros), mas antes um ajuste de contas com aqueles que, no entender dos sectores mais à direita, tinham permitido o desaparecimento de um sistema pelo qual valia a pena lutar. Para o leitor nascido já em democracia, o livro assemelha-se a uma visão do mundo às avessas. Contudo, além do seu valor como fonte, permite compreender que aquilo que hoje parece óbvio e evidente não era assim tão claro para alguns portugueses em 1974. A outro nível, torna-se observável que, na política, os puros e idealistas podem ser bem mais perigosos que os pragmáticos e contraditórios.
Editado pela Dom Quixote, o livro “À Beira do Abismo. A Europa, 1914-1949” (no original, “To Hell and Back: Europe 1914-1949”), de Ian Kershaw, constitui a primeira parte de uma história do Velho Continente no período entre a I Guerra Mundial e a actualidade (o segundo volume, ainda por publicar, poderia terminar com o Brexit), focando o que o autor designa como “a era de autodestruição da Europa” (p. 21). Kershaw apresenta uma obra baseada num conjunto impressionante de informação e que procura abordar a evolução de todos os países europeus nos 35 anos em causa. Naturalmente, os estados mais influentes nos acontecimentos internacionais, em especial o Reino Unido, a França, a Itália, a Alemanha e a Rússia/União Soviética, recebem maior atenção do biógrafo de Hitler, mas é visível o esforço de Kershaw para combinar fenómenos gerais e particulares, sem ignorar nenhuma região europeia. Dado o carácter de síntese de “À Beira do Abismo”, a novidade do trabalho reside “no modo como a história está escrita e na natureza da argumentação” (p. 16), com Kershaw a brilhar nos dois campos (destaque-se igualmente a tradução portuguesa de Miguel Mata) ao construir uma narrativa clara, dinâmica e fascinante, organizada de forma cronológica, à excepção de um capítulo dedicado a temas como a religião e a cultura de massas.
Não faz sentido tentar resumir aqui as mais de 600 páginas da obra do historiador inglês, mas a análise de 1914-1949 proposta por Kershaw destaca alguns aspectos essenciais, como a existência, não só na Alemanha mas um pouco por todo o continente, de elites profundamente reaccionárias e irresponsáveis, ligadas a iniciativas com elevados custos humanos, ou a vasta difusão do ódio, fosse ele de classe, nacionalista, anticomunista ou contra os Judeus, alvos de perseguições na Europa de Leste muito antes da chegada dos nazis. Quanto ao caso especial da Grã-Bretanha, Kershaw sublinha o consenso praticamente generalizado em torno da monarquia e do sistema parlamentar que evitou rupturas políticas nos anos difíceis das guerras mundiais e da Grande Depressão.
No que respeita a Portugal, Ian Kershaw apoia-se em dois livros de António Costa Pinto para escrever um número reduzido de parágrafos, justificável pela escassa influência (excepto talvez durante a Guerra Civil de Espanha) do país para lá das suas fronteiras no período em causa. O autor britânico mostra desinteresse por Salazar, “O mais insípido dos ditadores” (p. 322) e chefe de um regime estático e reaccionário, sem o vigor ideológico das “ditaduras dinâmicas” alemã, italiana e soviética. Fátima é igualmente mencionada, como um dos centros da “reanimação do culto da Virgem Maria” (p. 514) verificada na Europa católica.
“À Beira do Abismo” revela-se, de forma implícita, um livro fortemente europeísta, sendo curioso que tenha aparecido na sua versão original pouco antes do referendo que ditaria a saída do Reino Unido da UE. Ao expor o rol de guerras, ditaduras e atrocidades verificadas na primeira metade do século XX, o historiador salienta o contraste entre o caos dessa época e o surgimento “de uma estabilidade e de uma prosperidade anteriormente inimagináveis” (p. 21) na metade ocidental da Europa, já depois da Guerra Fria fixar as divisões mantidas em vigor durante quatro décadas. O movimento de construção europeia funcionou, assim, como uma ruptura, difícil de prever em 1949, com o passado de ódio e desconfiança mútuos cujo regresso é temido actualmente. Além de ser uma obra de consulta obrigatória para quem estude a Europa novecentista, o trabalho de Kershaw relembra a catástrofe que os fundadores da CEE quiseram tornar irrepetível.
O último 13 de Maio foi um dia mediaticamente esgotante, marcado por eventos de grande impacto televisivo, os quais tiveram em comum o envolvimento do Presidente da República e do primeiro-ministro portugueses. Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa conversaram com o Papa Francisco em Fátima, antes de, à tarde, Costa e Mário Centeno assistirem na Luz ao jogo que garantiu ao Benfica o título nacional de futebol e, à noite, quer Costa quer Marcelo enviarem congratulações públicas a Salvador Sobral pela vitória no Festival da Eurovisão. Os líderes nacionais associaram-se desta forma a três acontecimentos sem precedentes: a canonização de duas crianças portuguesas, o tetracampeonato benfiquista e o primeiro lugar de um cantor luso no certame musical europeu.
Não se trata, no entanto, da primeira vez que, durante o “regime” de Marcelo e Costa, ocorrem factos nunca antes registados em Portugal. Tudo começou aquando da formação do primeiro Governo com apoio parlamentar de três (quatro, se contarmos com o PEV) partidos de esquerda, uma situação antes considerada apenas possível na ficção científica. Após a retirada para o exílio interno do anterior “casal” no poder, Cavaco Silva/Passos Coelho, assistiu-se a factos inéditos como a conquista do título continental de futebol pela selecção masculina, o apuramento para a fase final de um Europeu da selecção feminina, a eleição de um português para o cargo de secretário-geral da ONU, a redução do défice para 2% em democracia, a descida mais acelerada do desemprego em três décadas ou a visita dos filhos de João Miguel Tavares ao gabinete do primeiro-ministro. A estes feitos vieram somar-se as novidades de 13 de Maio de 2017, criando um ambiente festivo no país contrastante com o ainda recente clima depressivo vivido nos anos da troika. Marcelo e Costa não têm deixado de aproveitar a maré, utilizando as boas notícias como símbolos de um novo Portugal, consciente do seu valor, sem receio de competir com os “grandes” e encarado “lá fora” como um oásis no meio de um mundo em convulsão. Por seu turno, os dirigentes do PSD e do CDS sentem uma frustração crescente à medida que o sucesso lusitano atinge níveis de pesadelo.
O chefe de Estado e o líder do Governo têm formado uma dupla perfeita, em que cada um se congratula com o êxito do outro, apesar do primeiro considerar o segundo demasiado optimista. No entanto, se alguma vez Marcelo for duro com António Costa, poderemos ouvir o primeiro-ministro a cantar: “Meu bem/Ouve as minhas preces/Peço que regresses/Que me voltes a querer…”
P.S. O então comentador Marcelo Rebelo de Sousa cantou o verso do título numa gala da TVI, quando Pedro Abrunhosa lhe estendeu o microfone.
No final de uma temporada de 2013/14 desastrosa para o Futebol Clube do Porto, Miguel Lourenço Pereira questionava no blogue Reflexão Portista se o momento vivido pela agremiação, acabada de sair de um ciclo de sete campeonatos nacionais vencidos em oito anos, constituía uma “curva apertada” ou “um abismo”. Neste momento, podemos estar certos de que é um abismo, quando se completam quatro anos (na prática, são cinco, já que não é possível aos “dragões” vencer mais nenhuma competição em 2017) sem nenhum troféu conquistado. Ao nível do campeonato nacional, trata-se do jejum mais longo desde 1979-1985.
O período sem títulos do FCP, designado por historiadores do futebol como “O Outono do Patriarca”, tem revelado a alternância entre épocas atribuladas, incluindo o recurso à chicotada psicológica (2013/14 e 2015/16), e anos futebolísticos nos quais a equipa “azul e branca” consegue alguns bons momentos, mas falta-lhe um bocadinho assim para superar o Benfica e terminar a Liga na primeira posição (2014/15 e 2016/17). Relativamente à Taça de Portugal, a única final atingida pelo FC Porto neste quadriénio, em 2016, ficou marcada, apesar da revelação do talento de André Silva, por erros defensivos inacreditáveis e um desaire nas grandes penalidades. Entretanto, mantém-se a relação birrenta dos portistas com a Taça da Liga, uma prova que teria sido conquistada há muito tempo se o clube estivesse mesmo interessado nisso. Quanto às competições europeias, os resultados para esquecer obtidos nas épocas negras coexistiram com percursos interessantes na Liga dos Campeões em 2014/15 (quartos-de-final) e 2016/17 (oitavos-de-final), sem fazer esquecer a distância abissal entre o emblema da Invicta e os “tubarões” da Champions.
No caso da temporada que agora se aproxima da conclusão, a frustração dos adeptos foi agravada pela esperança trazida por uma série de vitórias, após um início de época tremido, e pela sensação de que o SLB esteve longe de ser muito superior ao FCP. De resto, o equilíbrio foi visível nas partidas entre ambos os conjuntos e na reduzida distância pontual preservada quase até ao fim do campeonato. A verdade é que, independentemente dos erros de arbitragem (o tempo dedicado por tanta gente ao estudo do penálti e de tudo o que o rodeia não deixa de ser impressionante), os “dragões” não atingiram o objectivo por demérito próprio e, no último terço da Liga, sucumbiram à incapacidade de suportar a pressão. Por culpa de Nuno Espírito Santo? Não deixo de pressentir que daqui a um ano a culpa vai ser de outro treinador qualquer. De qualquer maneira, os especialistas estão mais habilitados para analisar os erros cometidos por dirigentes, jogadores e equipa técnica do FCP.
Um aspecto curioso, e talvez o mais relevante, da crise portista diz respeito a factores de ordem psicológica. Desde 2013, são inúmeros os artigos publicados na imprensa a associar os futebolistas do FC Porto a sentimentos como ansiedade, descrença, insegurança ou aquilo que Espírito Santo resumiu na expressão “medo de não ganhar”. A ânsia por títulos dos simpatizantes do clube, habituados a uma hegemonia já desaparecida, contribui para pressionar os atletas. Relembrem-se as últimas recepções no Estádio do Dragão a Sporting de Braga, Vitória de Setúbal e Feirense. No primeiro desafio, realizado após vários empates a zero dos portistas, as oportunidades de golo multiplicaram-se, mas só um júnior saído do banco teve a calma necessária para meter a bola na baliza adversária, causando uma ejaculação colectiva nas bancadas (pronto, não foi a mais feliz das imagens). O golo de Rui Pedro constituiu, precisamente, a base anímica da recuperação verificada nas jornadas posteriores. Quando os sadinos pisaram o terreno do Dragão, o FCP tinha já um pé na liderança e dispunha de uma oportunidade boa demais para ser desperdiçada. O golo sofrido e o avanço do cronómetro fizeram, no entanto, aumentar a ansiedade de público e jogadores ao longo da segunda parte. Desta vez, tal como semanas mais tarde, na visita da equipa de Santa Maria da Feira, não houve meios para derrubar o muro e fugir à crueldade do destino. A partir daí, apesar do (excessivo) júbilo dos “azuis e brancos” com o empate na Luz, o segundo lugar tornou-se inevitável.
O ponto importante reside no facto da instabilidade psicológica se ter tornado a norma durante o “Outono do Patriarca”. Jogadores e treinadores sucederam-se ao longo de quatro anos, enquanto se mantinha a dificuldade em reagir a ciclos negativos, num mecanismo em que o fracasso gerava quase sempre mais fracasso. O efeito anti-climático devastador do FCP-VFC, marco do início da actual derrocada, foi muito semelhante ao impacto da derrota caseira com o Dínamo de Kiev, em Novembro de 2015, no jogo onde supostamente o clube iria garantir à passagem à fase seguinte da Champions. A partir daí, a carreira da turma de Lopetegui nunca mais foi a mesma. O treinador basco, autor de um projecto grande demais para falhar, acabou por sair e originar um penoso interregno de duas semanas, durante o qual os nomes dos eventuais sucessores inundavam os jornais, sem qualquer decisão da SAD, que viria a decepcionar ao apresentar José Peseiro, supostamente a “primeira escolha” para o banco. Peseiro queixou-se certa vez daquilo que “não se sabe” no exterior do clube como um dos factores condicionantes do trabalho da equipa. Do que falaria o forcado? De facto, é estranho ver futebolistas profissionais, mesmo os mais experientes, a mostrar época após época tanta insegurança e vulnerabilidade emocional. Para lá das esperas dos Super Dragões, algo parece influenciar mentalmente os plantéis. O FC Porto assemelha-se a um terreno seco onde nada consegue crescer.
A responsabilização pelos sucessivos desaires recai crescentemente em Pinto da Costa, à medida que os treinadores passam e o presidente fica. No entanto, a improbabilidade de uma demissão de Jorge Nuno e os dois anos de mandato ainda restantes implicam que o futuro do clube continue a passar pelo pai de Alexandre. O FCP actual faz lembrar o Estado Novo nos anos 60: tudo à espera que o velho morra, mas até lá ninguém solta um pio. Oliveira Salazar e Pinto da Costa (por enquanto, o beirão vence o portuense por 36-35 em número de anos no poder) partilham razões semelhantes para se manterem nos seus cargos, como o vício do poder, a crença desmedida nas suas próprias capacidades, fomentada pelo culto da personalidade, e a convicção de que sem eles seria o caos. Apoiado nos muitos êxitos do passado, Jorge Nuno mantém-se firme na sua cadeira. Tudo isto parece tratar-se de uma forma peculiar de justiça divina. Afinal, ninguém duvida que assistir ao tetracampeonato do Benfica é para Pinto da Costa um castigo bem mais duro do que teria sido uma condenação judicial no processo Apito Dourado quando o dirigente se encontrava no auge da glória.
Algo de estranho se passa na direcção do CDS. Assunção Cristas e as figuras que aparecem atrás dela quando fala à comunicação social, como Nuno Magalhães e Telmo Correia, têm lançado, em jeito de palpite, propostas insólitas para um partido de direita. Nas jornadas parlamentares do CDS, a presidente defendeu a possibilidade dos trabalhadores com 20 ou 25 anos de descontos gozarem de “uma espécie de licença sabática” de seis meses, na qual poderiam frequentar a universidade (embora, pelos vistos, só fazendo um semestre do curso escolhido) ou simplesmente tirar umas férias. A ideia centrista não recebeu, até agora, qualquer apoio. Já no último debate quinzenal na Assembleia da República, Cristas realçou a sua faceta de candidata autárquica e apresentou o projecto do CDS de construir 20 novas estações do metropolitano de Lisboa, sem responder claramente às perguntas óbvias: onde, quando, como, porquê?
Recorde-se que o Centro Democrático Social integrou um governo, com “Boss AC” como ministra, sob cuja vigência os democratas-cristãos aceitaram, em nome da regularização das contas públicas, a ultrapassagem de várias “linhas vermelhas” relativas às pensões, e agora concebe propostas segundo as quais as empresas já podem dispensar os seus funcionários por vários meses e o Estado já possui meios para financiar grandes obras nos transportes. Apesar de Cristas ter afirmado que, sem receitas extraordinárias, o défice de 2016 atingiria valores exorbitantes (desmentidos pelo Conselho de Finanças Públicas), estes projectos marcados pela “ambição” centrista constituem afinal um elogio implícito à Geringonça, ao partirem do princípio de que já não é necessária qualquer contenção orçamental, graças à recuperação económica dirigida por António Costa. Na verdade, ao lutar por mais tempo de lazer para os trabalhadores, defender o investimento em obras públicas e, através da sua organização de juventude, contestar a propriedade privada de bens como as fotografias de Alfredo Cunha, o CDS parece pretender conquistar o eleitorado de esquerda descontente com as cedências de BE e PCP a Costa e afirmar um projecto verdadeiramente revolucionário.
Na verdade, Assunção Cristas cultiva o espectáculo, aposta na mediatização da sua imagem (por boas ou más razões, é-lhe indiferente) e conta com a habitual falta de escrutínio das declarações dos políticos. Afinal, Cristas até poderia dizer aos jornalistas que consegue voar. Ninguém lhe exigiria uma demonstração dessa capacidade.
Porque decidi ser historiador? Primeiro pensei em ser escritor, mas, quando compreendi que a minha imaginação era zero, passei a contar histórias que realmente aconteceram. Basicamente, foi isto.
Ao seleccionar os temas das minhas teses de mestrado e doutoramento, escolhi-os porque me pareceram boas histórias ainda não contadas, interessantes de seguir e úteis para compreender fenómenos mais vastos. Não pretendi argumentar a favor de nenhuma teoria ou ideologia (embora existam óptimas teses em História criadas a partir dessa fórmula) e limitei-me a resumir e narrar aquilo que descobri durante a pesquisa. Já recebi críticas por ser muito descritivo e pouco interpretativo. Não é que eu ache que os “factos” falam por si, mas a forma como ordeno a informação e o conjunto daquilo que refiro ou não ao longo do texto parecem-me suficientes para o leitor apreender a “moral” da história, sem necessidade de salientar repetidas vezes os pontos mais importantes. Quanto ao estilo, não sei o que é escrever para os “pares” ou para o “grande público”, apenas busco uma redacção compreensível por todos, sem que isso dispense as referências bibliográficas nem as transcrições (de extensão variável) dos documentos consultados. Não há boa História mal escrita, mas o historiador, ao contrário do romancista, não pode inventar.
Qual é a utilidade do trabalho historiográfico ou, por outras palavras, para que serve a História? Boa pergunta. Os historiadores não contribuem para o PIB, pelo menos directamente, nem conseguem, para desgosto de políticos como Pires de Lima, inventar máquinas capazes de aumentar os lucros das empresas. Também não produzem nada que se possa comer, beber ou fumar nem fornecem qualquer tipo de prazer físico com aquilo que dizem e escrevem. Acumulam riqueza? Só se for numa actividade paralela. Possuem forte influência social? Essa é boa. Conseguem tirar lições do passado e evitar novos erros colectivos? Não me parece. Apenas sei que não pode haver uma sociedade sem memória, e esta tem de ser preservada por alguém.
O trabalho do historiador é ainda mais útil em tempos acelerados como os actuais, quando, por vezes, acredita-se que tudo começou ontem e entra-se num “presente eterno” sem referências. Contudo, não se deve cair no extremo de submeter o presente ao passado, como faziam os partidários do Estado Novo, defensores da obrigação moral imposta pelos exemplos dos feitos militares gloriosos dos séculos XVI e XVII de resistir até ao fim em África, ou referir sucessivos acontecimentos pretéritos para tentar demonstrar que nada mudou em Portugal nos últimos duzentos anos (uma mensagem transmitida em inúmeras crónicas de Vasco Pulido Valente). Na verdade, a historiografia contribuiu para desmentir supostas características inatas e intemporais dos portugueses, ao expor as contínuas mudanças registadas no país e no mundo e mostrar que verdades antes consideradas infalíveis não correspondiam à realidade. A única “lição” da História é que tudo está sempre em movimento.
Na sua sinceridade atordoante, Donald Trump confessou que ser Presidente dos Estados Unidos da América é mais complicado do que pensava antes das eleições. Provavelmente, a concepção de Trump das funções presidenciais baseava-se no que vira no cinema, não propriamente nos biopics de presidentes reais (“Lincoln”, “Nixon”, “W”, etc.), mas naqueles filmes em que o líder americano é feito refém por terroristas ou tem de enfrentar invasões extraterrestres.
É impressionante a frequência com que o cinema e a televisão americanos têm ficcionado a actividade do chefe de Estado do país e colocado presidentes imaginários a protagonizar obras dos mais variados géneros. O papel de inquilino da Casa Branca é habitualmente atribuído a homens brancos de meia-idade, mas a ficção tem procurado antecipar-se à realidade, contribuindo para tornar natural a ideia de um presidente negro ou de uma presidente antes desses cenários se concretizarem (no segundo caso, a realidade fintou as previsões de Hollywood). Além de colocarem os dirigentes do “mundo livre” perante situações de crise e tensão, os argumentistas trabalham aspectos do sistema político americano dramaturgicamente interessantes, como o quotidiano da família presidencial ou a possibilidade do vice-presidente ambicionar tornar-se “califa no lugar do califa”, através da morte ou destituição da figura acima de si na hierarquia. Ao longo dos anos, vimos nos ecrãs presidentes corruptos e honestos, calculistas e espontâneos, cómicos e inspiradores, cobardes e heróicos, perversos e altruístas, idiotas e brilhantes, interpretados em réplicas da Sala Oval e do Air Force One por actores tão diversos como Geena Davis, Kevin Kline, Kevin Spacey, Peter Sellers, Leslie Nielsen, Harrison Ford, Dennis Haysbert e Jack Nicholson.
Em Portugal, ao invés, as produções audiovisuais raramente incluem um Presidente da República, real ou imaginário. Entre as vidas dos homens que passaram pelo Palácio de Belém desde 1910, apenas a de Manuel Teixeira Gomes foi levada ao ecrã, no recente filme “Zeus”. A minissérie televisiva “Noite Sangrenta” apresentou Miguel Guilherme no papel de Óscar Carmona, mas numa cena relativa ao período anterior à chegada do militar à presidência. Quanto a chefes de Estado ficcionais, praticamente não existem, nem mesmo na comédia política da RTP “Os Boys”. Uma tal lacuna explica-se pelo facto dos presidentes portugueses não disporem do mesmo poder que os homólogos americanos, até porque a única bomba atómica de que os primeiros dispõem é apenas metafórica. Por outro lado, embora a República Portuguesa seja já centenária, as funções de Presidente tal como as entendemos hoje apenas ficaram definidas após a aprovação da Constituição de 1976 e as eleições presidenciais do mesmo ano. Desde então, como se tornou um lugar-comum afirmar, cada PR seguiu um estilo próprio, o que dificulta a criação de padrões sobre aquilo que os líderes lusos devem ou não fazer, ao contrário do que acontece na velha democracia de Washington. Um hipotético PR ficcional viria, por exemplo, a soar mais Cavaco ou mais Marcelo, de acordo com o modelo e os objectivos do argumentista. Aguardemos, portanto. Afinal, o reality-show do actual Presidente pode despertar os produtores para o potencial televisivo e cinematográfico do cargo de magistrado supremo da Nação.
O novo livro do jornalista da Visão Miguel Carvalho, “Quando Portugal Ardeu” (Oficina do Livro), constitui uma vasta investigação acerca da violência política no período entre 1974 e 1976, focando em especial as acções da extrema-direita contra alvos de esquerda, como os ataques a sedes do PCP no “Verão Quente” ou a rede bombista cujos numerosos atentados, promovidos por organizações como o ELP, o MDLP e a FLAMA (o grupo separatista madeirense dinamizado por Alberto João Jardim antes de chegar ao poder) e executados por Ramiro Moreira e outros operacionais, provocaram vários mortos e avultados estragos em edifícios e veículos.
Na primeira frase da obra, Carvalho esclarece que “Este livro é jornalismo, não é História” (p. 13). De facto, além do seu estilo nitidamente jornalístico, com frases curtas e centradas em informações concretas, “Quando Portugal Ardeu” assemelha-se a uma compilação de reportagens em torno do mesmo tema, repartida por 18 capítulos independentes uns dos outros, o que origina frequentes repetições e uma estrutura algo confusa. No entanto, o valor do livro para os investigadores do período revolucionário é inestimável, quer pela pesquisa sobre um assunto ainda pouco estudado quer pelas fontes inéditas apresentadas, como as entrevistas feitas por Carvalho ou os relatos escritos por dois observadores estrangeiros do PREC, o diplomata americano Vernon Penner e o norueguês Einar Braathen. Carvalho recolhe sobretudo declarações actuais de pessoas ligadas às vítimas (entre elas Manuel Varges, amigo do padre Max e primeiro presidente da Câmara de Odivelas) ou à investigação e julgamento da rede bombista, mas também ouve António Silva Santos, um antigo dirigente do CDS que recorda a sua participação em actividades terroristas no pós-25 de Abril, tal como outros intervenientes em actos violentos hoje quase desconhecidos. Vários documentos oriundos dos processos judiciais relativos ao bombismo contribuem igualmente para esclarecer os acontecimentos, embora muito do material à guarda do Arquivo Geral do Exército ainda permaneça vedado à consulta.
Na introdução do livro e nas entrevistas de promoção deste, o autor destacou o seu empenho em lutar contra o “esquecimento” e o branqueamento do passado, promovidos neste caso pelos vencedores do 25 de Novembro e por sectores da direita cuja autodescrição como um conjunto de lutadores imaculados e vítimas da tirania comunista de 1974/75 difere da realidade. De acordo com a investigação de Carvalho, os movimentos anticomunistas beneficiavam de uma vasta rede de cumplicidades na qual estavam envolvidos o PS, a Igreja Católica (D. António Ferreira Gomes, o bispo do Porto recentemente condecorado, foi o único prelado nortenho a distanciar-se da violência contra-revolucionária) e oficiais do Grupo dos Nove, além do eventual e ainda nebuloso apoio concedido pelos EUA através do embaixador Frank Carlucci. O jornalista vai, porém, mais longe, ao acompanhar as reconstituições dos atentados por descrições do ambiente social e político da época. Assim, descobrimos um país de padres reaccionários, criminosos gabarolas, populações ignorantes e manipuladas, patrões beneméritos e exploradores, juízes, polícias e militares protectores dos mandantes do terrorismo, bombistas tão sinceramente broncos que nem despertam ódio e histórias insólitas apenas possíveis na vida real. O mais preocupante para o leitor é pensar em quanto deste Portugal pré-“europeu” ainda hoje persiste, entre os esqueletos escondidos nos armários.
Enquanto conta uma história de terrorismo, Miguel Carvalho traça um retrato pouco agradável de Portugal. Parafraseando o que Vasco Pulido Valente escreveu sobre outro livro, poderíamos dizer: “Céptico, penetrante, minucioso, “Quando Portugal Ardeu” diz mais sobre o país pobre e patético que somos do que toda a “análise política” por aí à venda”.