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Desumidificador

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O vidente de Carnaxide

Depois do INE desautorizar publicamente Luís Marques Mendes e divulgar uma taxa de desemprego mais baixa que o valor anunciado pelo comentador há uma semana, colocavam-se duas hipóteses quanto àquilo que Marques Mendes faria na edição seguinte do seu programa na SIC: ignorar por completo a reprimenda ou dizer uma treta qualquer para ilibar-se. Escolheu a segunda opção, com menos de meio minuto dedicado ao tema, já no fecho da rubrica. Assunto encerrado, adeus e até para a semana. Não foi a primeira vez, nem será a última.

 

No seu espaço televisivo dominical, Marques Mendes tenta fazer o mesmo que Marcelo Rebelo de Sousa fez, mas com muito menos talento. O programa do conselheiro de Estado é sobretudo um jogo do faz de conta. Clara de Sousa ou outro apresentador fingem que estão a fazer uma entrevista e, em parceria com Mendes, dão a entender que o ex-presidente do PSD sabe mais do que os outros analistas (não sabe), consegue prever o futuro (não consegue), domina profundamente os temas que aborda (não domina), é isento e independente (não é), teve um percurso imaculado na política antes de se tornar comentador (não teve) e formula opiniões originais e ousadas (não formula). A ficção continua logo a seguir, quando os jornais, prosseguindo o hábito do tempo de Marcelo, resumem as palavras de Mendes ou reproduzem as supostas notícias dadas em primeira mão pelo advogado. Luís ganha assim um destaque único entre os comentadores televisivos, parecendo ser influente e até temido pelos políticos. Ninguém acredita mesmo nisto tudo, claro, mas a aparência conta mais do que a opinião.

 

 

Quando se aventura por temas como o futebol ou a actualidade internacional, Marques Mendes cai numa banalidade atroz. A área fulcral da sua análise é a política, ou melhor, a politiquice nacional. A propósito desta, faz o discurso redondinho de alguém que está bem dentro do sistema e tem o cuidado de morder um pouco aqui, elogiar um pouco ali, sem nunca pôr nada verdadeiramente em causa ou apresentar uma proposta que corra o risco de ser concretizada. O mundo do conselheiro parece limitar-se a meia dúzia de restaurantes e escritórios de advogados de Lisboa. Para lá de todos os assuntos que servem apenas para encher tempo de ecrã, Marques Mendes apresenta a sua única especialidade ao criticar domingo após domingo a liderança de Pedro Passos Coelho. O ataque de Mendes ao seu sucessor é feito não em termos de conteúdo ou ideologia, mas na perspectiva do militante “laranja” que vê o partido descer nas sondagens e avisa que isso terá consequências a curto prazo, ou seja, a caça ao Coelho está aberta. Outra função do analista é servir de porta-voz oficioso de Marcelo, descrito por Mendes como um homem perfeito a todos os níveis, mas que por vezes pode, hipoteticamente, sentir-se incomodado com atitudes do Governo e querer mandar recados.

 

Se nem a esquerda nem a maior parte da direita sentem verdadeiro apreço por Luís Marques Mendes (designado pelo crítico Eduardo Cintra Torres como “corneta de Belém”) e, ao contrário do que reza o mito mendista, as audiências do show de LMM não são particularmente altas, porque se mantém o causídico na ribalta mediática? O humor involuntário é sempre delicioso e certas pessoas sentem em cada fim-de-semana a curiosidade de saber o que vai inventar o baixinho desta vez. Mais importante do que isso, o espaço de Marques Mendes possui um papel tranquilizador semelhante ao de O Preço Certo e das telenovelas. Ao verem algo sempre igual e previsível, os espectadores asseguram-se de que, numa época de tanta incerteza, a normalidade prevalece. Se um dia, por absurdo, Marques Mendes disser “Julgo que o Presidente da República foi menos feliz nas suas declarações”, é sinal de que chegou a hora de entrar em pânico. O caos vai dominar a Terra.

 

Teoria da oposição

As dúvidas surgidas acerca da contabilização das vítimas mortais do incêndio de Pedrógão Grande conduziram, de forma mais ou menos explícita, a uma acusação gravíssima: o Governo estaria a ocultar informação de modo a enganar a opinião pública. Caso tal fosse provado, aconteceria um autêntico terramoto político. No entanto, pensando bem, uma hipótese desse género aponta para uma intriga como a que se segue. No final do passado dia 18 de Junho, António Costa pega no telemóvel. Liga para um número e diz: “A partir desta hora, não morre mais ninguém”. A seguir, desliga o telefone, vira-se para Constança Urbano de Sousa e afirma sorridente: “64 mortos é muito pouco. Se souberem que foram mais, toda a gente vai passar a votar no PSD.” Constança solta uma gargalhada maléfica. Nas horas seguintes, a conspiração une o Governo, os bombeiros, a Protecção Civil, o Ministério Público, a Polícia Judiciária, a GNR, o Exército, o Instituto de Medicina Legal, as autarquias dos concelhos afectados pelo fogo e os canais de televisão, enquanto os familiares das vítimas desconhecidas são hipnotizados para não as reclamarem. Todos pensam que os esqueletos ficarão para sempre no armário. Ao fim de cinco semanas, contudo, a empresária Isabel Monteiro, sem experiência prévia neste tipo de catástrofes, reúne a informação autêntica sobre a tragédia e, apoiada pelo imparcial diário i, enfrenta o boicote estatal, denunciando a verdade que todos querem calar. Aparentemente, para o PSD e o CDS este é um cenário plausível, levando-os a exigir a divulgação imediata de uma lista de vítimas de que há uma semana nem sequer se lembravam. Se o Presidente da República não fala a não ser para recordar que já não vivemos em ditadura, obviamente também está metido no esquema.

 

Caso imaginemos uma teoria da conspiração alternativa, a intenção do Expresso e do i nunca foi propriamente rever o número oficial de mortos causados pelo incêndio, mas apenas difundir boatos e lançar a dúvida. O diário aconselhado pelo arquitecto Saraiva já tinha mencionado os rumores que corriam em Pedrógão Grande sobre cadáveres não contabilizados, mas contrapunha-os aos números oficiais, antes da lista de Monteiro estimular o i a lançar a manchete bombástica. A ideia de que o Governo esconde qualquer coisa pode ser mais resistente que qualquer versão oficial e permanecer de forma subtil durante muito tempo. O ónus da prova inverte-se e o primeiro-ministro passa a ter que garantir a inexistência da “lista secreta” e de influências governamentais na justiça. De resto, estimulados por tudo o que aconteceu nos últimos anos (incluindo a tragédia de Pedrógão), confiamos cada vez menos no Estado e nos políticos, num clima de descrença que nos torna susceptíveis a teorias da conspiração. Nas entrevistas que concedeu, Isabel Monteiro referiu pormenores habituais neste tipo de teorias, como alegadas incongruências nas conclusões estatais e muitas pessoas “fortemente pressionadas” pelo poder local (?) para negarem as suas declarações anteriores sobre o número de corpos vistos. As redes sociais permitem que, apesar dos desmentidos oficiais, a “verdade escondida” seja partilhada durante anos e reapareça a qualquer altura.

 

Ao longo dos quase dois anos de vigência da Geringonça, o debate político tem sido frequentemente conduzido em função de notícias falsas, previsões erradas ou informações recolhidas pelos serviços secretos do humorista amador Marques Mendes. Uma vez lançado o “facto” embaraçoso para o Governo, verificam-se dois ou três dias de algazarra e indignação, até que a informação inicial é desmentida e tudo se esvai como se nada tivesse acontecido, até à próxima polémica. Esta situação revela, em primeiro lugar, o crescente descrédito da comunicação social, de rigor e imparcialidade duvidosos. Do outro lado, temos aquilo a que o comentador Pedro Adão e Silva chamou PTEC (“processo de trumpização em curso”) e, numa referência à mesma época histórica, poderíamos designar por “gonçalvismo”, ou seja, o sistema de Alberto Gonçalves. Quer no Parlamento quer nos media, a direita tem seguido uma tendência de radicalização e ataque sectário em todas as frentes. Vozes mais ponderadas, como as de Adolfo Mesquita Nunes ou Francisco Mendes da Silva, têm sido submergidas por um conjunto de “liberais” ansiosos por desaires e tragédias que possam imputar ao imoral Costa e ao traidor Marcelo. A avaliar pelo perfil do novo líder parlamentar do PSD, Hugo Soares, e pelo “ultimato” por este anunciado (se o Governo não divulgasse a lista de vítimas em 24 horas, os “laranjas”… ficariam muito tristes), o futuro do partido passa pela estratégia de Rui Ramos, digo, de Pedro Passos Coelho, num caminho seguro, coerente e inabalável para o desastre total.

 

 

Além de considerarem Passos Coelho um novo Churchill (sem o brandy nem os charutos), os comentadores de direita execram dedicadamente António Costa desde o crime imperdoável do Outono de 2015. O líder socialista é descrito como um maquiavélico génio do mal, uma espécie de Lex Luthor sem nenhum super-herói para o combater. O problema é que tanto exagero contribui para a queda do projecto liberal nas sondagens. Sem os conhecer pessoalmente, acho que Passos é apenas um homem banal, enquanto Costa também não dispõe de assombrosas qualidades ou defeitos horripilantes. No entanto, António parece saber minimamente o que está a fazer, enquanto Pedro anda ao sabor do vento e dispara sem cessar contra os próprios pés.

 

P.S. Rui Ramos é um historiador que admiro há muitos anos e um analista político de qualidade, mas ultimamente parece apostado em ser a Raquel Varela da direita. De facto, com o menor protagonismo do prof. Fernando Rosas e o desgaste provocado em José Pacheco Pereira por décadas de exposição, Ramos e Varela são neste momento os “intelectuais públicos” de maior visibilidade na área historiográfica.

 

P.P.S. A capa do i de hoje, preenchida na íntegra pelas declarações de Marcelo, é de uma hipocrisia tremenda.

Um Trump em cada esquina

A manutenção pelo PSD do apoio à candidatura de André Ventura à presidência da Câmara de Loures justifica-se a curto prazo. Afinal, para lá dos possíveis ganhos eleitorais que o discurso e a notoriedade televisiva de Ventura podem fornecer ao partido “laranja” num concelho onde não costuma ter grande implantação, seria muito difícil para Pedro Passos Coelho abandonar um candidato que o presidente do PSD garantia há uma semana ser o tipo mais fixe do mundo, já depois do benfiquista ter feito várias declarações esquisitas. A longo prazo, porém, Passos cometeu um erro gravíssimo. O seu aval a Ventura marcou o início definitivo da normalização política da parvoíce.

 

Como é sabido, o debate político português radicalizou-se na última década, seguindo uma tendência de erosão do centro e da social-democracia comum a todo o “Ocidente”. Para lá dos efeitos dramáticos da crise económica e da raiva causada pelas medidas de austeridade, a lógica das redes sociais, com a sua tendência para a compartimentação, a menor formalidade da linguagem e a possibilidade de insultar livremente sem as consequências esperadas na vida real, favoreceu o crescimento da intolerância. Os apelos inflamados da esquerda à revolta contra o governo da PAF e, a partir de Outubro de 2015, a frustração da direita com a sua expulsão de um poder a que considerava ter direito contribuíram para agravar a crispação. O jornalismo também não está isento de responsabilidades, ao entregar-se de corpo e alma ao culto do confronto e da polémica, dedicando permanente atenção aos temas que “incendeiam” as redes sociais. Se qualquer post de Maria Vieira se transforma actualmente em notícia, isso traduz uma valorização implícita do insulto e da gritaria (a mensagem é “Queres ser conhecido? Começa por ofender alguém”).

 

Um aspecto particular do caso português tem sido a estabilidade do mapa partidário e o controlo do essencial da actividade política pelos mesmos partidos que estiveram presentes na Assembleia Constituinte (a UDP, representada em 1975 pelo deputado Américo Duarte, foi uma das forças na origem do Bloco de Esquerda), mas existiu sempre na sociedade lusa um populismo larvar, mais espontâneo que organizado. A única instituição a traduzi-lo fielmente não era um partido, mas sim um jornal, o Correio da Manhã, alargado à televisão através da CMTV. E foi precisamente a partir daí que André Ventura, formado na escola de civismo e imparcialidade dos debates futebolísticos, entrou nas nossas vidas para espalhar o amor. As suas declarações contra os ciganos, prestimosamente recolhidas pelo isento e apolítico jornalista do i Sebastião Bugalho, não foram um mero desabafo lançado num momento de pouca lucidez. Pelo contrário: ainda antes de Bugalho ligar o gravador, Ventura estaria provavelmente certo não só de que continuaria a receber o apoio do PSD, como de que seria convertido num herói, por razões que nada têm a ver com a situação social na periferia de Lisboa.

 

 

Embora Paulo Portas tenha sempre oscilado, desde os tempos de O Independente, entre a personagem de estadista ponderado dos salões e a de populista irresponsável das feiras, houve nos últimos anos algo que se perdeu na direita portuguesa, cujo fervor revolucionário esbateu os limites morais e verbais. Figuras da “velha” direita críticas de Passos Coelho, como Bagão Félix e Manuela Ferreira Leite, foram descritas como privilegiados agarrados às suas reformas milionárias. O colunista Alberto Gonçalves, agora nos tops de vendas com o livro A Ameaça Vermelha, trata os seus adversários como um bando de débeis mentais e ridicularizou o sofrimento de Isabel Moreira. Foi ostracizado? Não, continuou a ser o guru de O Insurgente. Um amigo de Gonçalves, Vítor Cunha, dissertou sobre a sexualidade de Mariana Mortágua e fez a linguagem típica dos comentários anónimos subir ao topo da página do blogue Blasfémias. Cronistas do Observador como Rui Ramos, Helena Matos ou José Manuel Fernandes competem para ver quem utiliza a fraseologia mais violenta contra Costa e Marcelo. Da mesma forma, as tiradas de André Ventura, tal como a homofobia de Gentil Martins, fizeram regressar a velha técnica de desculpabilização do “é tudo igual”, num discurso deste género: “Sim, o tipo do nosso lado foi infeliz, mas o BE e o PCP disseram isto e aquilo. Eu não concordo com o que ele disse, mas outros disseram o mesmo antes e não houve este escarcéu todo. Quer dizer, temos de ser tolerantes. Não somos fanáticos nem alucinados como os comunistas.” Casos isolados? Talvez, mas a direita parece estar a tornar-se cada vez menos Sá Carneiro e mais Galvão de Melo. Já ninguém é malcriado, quando muito “polémico”. Vomitar preconceitos é ser “politicamente incorrecto”.

 

Muitos justificam a multiplicação de afirmações públicas contra as minorias ou proferidas em linguagem rude com a revolta provocada pela imposição opressiva do “politicamente correcto”, limitativa da liberdade de expressão. De facto, existem em países como a Inglaterra ou os Estados Unidos alguns exageros ligados ao esforço absurdo de policiar o humor e a linguagem de modo a evitar a todo o custo ofender quem quer que seja. Mas em Portugal, ao longo de apenas quatro décadas de democracia, quando é que se foi longe demais? Quando o cartoonista António desenhou um preservativo no nariz de João Paulo II? Quando o casamento gay foi legalizado? Quando as telenovelas passaram a ter personagens homossexuais? Quando os Gato Fedorento fizeram sketches com a figura de Jesus e não foram banidos da televisão? Quando Ricardo Quaresma começou a jogar na selecção nacional? Quando Alberto João Jardim saiu do poder? O país tornou-se mais tolerante, não mais repressivo.

 

Numa crónica em que rejeita o “politicamente correcto” mas condena a homofobia, Henrique Raposo pergunta-se se afirmações como as de Gentil Martins representam, afinal, uma tentativa de regresso a um "passado pré-moderno" de intolerância. De facto, é isso que se passa, na medida em que se revela difícil estabelecer uma posição de equilíbrio. Uma situação em que se possa criticar as restrições ao acesso à educação na comunidade cigana sem concluir que todos os ciganos são parasitas e criminosos. Em que se possa contestar a inferiorização das mulheres entre os muçulmanos sem querer varrer os mouros da Europa. Em que se possa usar a palavra “mariconço” numa rábula mas não se diga que os homossexuais são doentes mentais. Em que se exprimam opiniões políticas divergentes mas não se grite que quem não concorda connosco é idiota, fanático ou corrupto. Em que não exista censura mas quem faça declarações racistas não seja considerado um resistente à “ditadura do politicamente correcto”. Até lá, contudo, Donald Trump está mais perto de nós do que se possa imaginar e muitos Trumpzinhos, incentivados pelo líder do PSD, sonham já com as luzes da ribalta.

 

 

Quem és tu, miúda?

(Ponto prévio: Joana Amaral Dias tem um corpo de espanto. Não é uma opinião, é um facto. Nenhum homem heterossexual consegue falar dela sem pensar nisso, e ela sabe-o. Esclarecido este aspecto, sigamos em frente.)

 

A psicóloga Joana Amaral Dias causou sensação ao aparecer na bancada parlamentar do Bloco de Esquerda na legislatura decorrida entre 2002 e 2005, quer por factores atrás referidos quer pela força e combatividade do seu discurso. Apesar de ter estado apenas alguns meses no Parlamento, o nome de Joana ficou ligado à juventude e renovação associadas ao Bloco nos primeiros anos de vida do partido fundado por Francisco Louçã, Miguel Portas, Luís Fazenda e Fernando Rosas. Nas presidenciais de 2006, contudo, Amaral Dias desempenhou a função de mandatária para a juventude do candidato do PS, Mário Soares, adversário do coordenador do BE, Francisco Louçã, também ele candidato a Belém. Embora tenha permanecido como militante bloquista, Joana nunca mais foi vista da mesma maneira pelos dirigentes do BE, com os quais registou vários conflitos até desfiliar-se do partido em 2014, quando a frente de extrema-esquerda, abalada por numerosas saídas, parecia estar à beira da dissolução.

 

 

Pouco depois, ao discursar num evento do PS, a psicóloga alimentou a especulação em torno do seu futuro político, mas Joana Amaral Dias e outro dissidente do BE, o jornalista Nuno Ramos de Almeida, criaram um novo movimento, o Juntos Podemos, do qual sairiam para concorrer às legislativas de 2015 integrados na coligação Agir!, formada com o Movimento Alternativa Socialista (MAS) e o Partido Trabalhista Português (PTP) e que se destacou por iniciativas mediáticas como a colocação da faixa “Vendido” na Assembleia da República ou a aparição de Joana sem roupas na revista Cristina. Amaral Dias seria o rosto principal do movimento, mas a gravidez levou-a a ceder a Ramos de Almeida o estatuto de cabeça de lista por Lisboa. O certo é que o Agir! ficou muito longe de eleger um deputado e não desenvolveu actividade visível após as legislativas.

 

Entretanto, Amaral Dias desenvolveu uma vasta actividade no comentário, quer na Internet (partilhou o blogue Bichos Carpinteiros com o prof. José Medeiros Ferreira) quer nos media tradicionais, abordando não só política mas também cinema e futebol, área em que veste de azul e branco. Mais recentemente, Joana participou no programa 5 para a Meia-Noite (RTP1), como representante da esquerda na rubrica “Deus a Dias”, composta por um debate de cinco minutos com Rodrigo Moita de Deus. A psicóloga saiu vitoriosa no voto do público em mais de metade das discussões, durante as quais falava tanto e num tom tão indignado que parecia submeter o pobre Rodrigo a bullying. Há algumas semanas, porém, Joana mudou-se para a CMTV (uma “boa casa”, nas suas palavras), canal no qual possui um espaço semanal próprio e surge com frequência no programa Rua Segura, onde comenta os crimes que vão acontecendo neste nosso Portugal. Recorde-se que vários candidatos às próximas autárquicas, em particular Rui Moreira, Fernando Medina, Assunção Cristas e André Ventura, oferecem o seu humilde contributo ao projecto jornalístico (?) do grupo Cofina.

 

O último número de O Diabo destaca na capa as candidatas do “Centro-Direita” à presidência da Câmara Municipal de Lisboa, Assunção Cristas, Teresa Leal Coelho e… Joana Amaral Dias. De facto, Joana encabeça a lista camarária do Nós, Cidadãos, um partido que apareceu nos boletins de voto pela primeira vez em 2015 e é presidido pelo filósofo monárquico Mendo Castro Henriques. Destacada por O Diabo pela sua “irreverência na intervenção”, a “activista política”, como se define, aproveita uma breve entrevista ao semanário para criticar Medina e apresentar algumas propostas, além de lamentar o Bloco de Esquerda “adestrado” que constitui uma das peças da Geringonça. Noutro artigo, o jornal inclui Amaral Dias na lista dos candidatos lisboetas do centro e da direita, ao lado de Cristas, Leal Coelho e José Pinto Coelho (o líder do PNR), opositores dos potenciais autarcas da esquerda, como João Ferreira, da “CDU-comunistas”, e Inês Real, do “PAN-animais” (sic). Na mesma edição, O Diabo dedica um artigo de página inteira ao encontro de nazis, digo, nacionalistas de Itália, Espanha e Portugal realizado em 1 de Julho no hotel Íbis do Saldanha. Assinado por dois dos participantes no evento, o texto refere ainda o concerto em Almada no qual “centenas” de jovens assistiram emocionados à reunião da banda Lusitanoi, um sucesso da música de intervenção de extrema-direita durante os anos 90.

 

É impressão minha ou tudo isto é um pouco estranho? Tão exigente a nível moral com os responsáveis políticos, Joana Amaral Dias não encontra nada de questionável em órgãos de comunicação social como O Diabo e o Correio da Manhã? Uma mulher assumidamente de esquerda não hesita em candidatar-se por uma força partidária na área do centro-direita? Ouvimos Amaral Dias criticar tudo e todos durante anos, mas o que faria ela exactamente na presidência da CML ou em qualquer outro cargo executivo? Será que o verdadeiro talento de Joana Amaral Dias é gerir a marca Joana Amaral Dias? Quem és tu, Joana, e o que te faz correr?

 

 

 

Imprevisto no ecrã

A televisão criada em Portugal segue habitualmente padrões e formatos bastante convencionais, reguladores de uma normalidade que nem quem faz nem quem vê TV parece estar disposto a quebrar. Por essa razão, momentos inesperados como estes ganham um carácter invulgar, cuja memória por vezes perdura de geração em geração:

 

Zé Gato (1980): Realizada por Rogério Ceitil e protagonizada por Orlando Costa, Luís Lello e António Assunção, esta série policial da RTP2 abordou o quotidiano de um agente da Judiciária num contexto ainda pós-revolucionário, assumindo um tom de denúncia de problemas sociais ligados ao crime. O último dos 13 episódios, escrito por João Miguel Paulino, seguiu, contudo, uma estrutura e um conteúdo muito diferentes dos anteriores, com o personagem de Assunção a ser chamado a auxiliar um agente do FBI (Rui Mendes) vindo em missão a Lisboa. Os dois envolvem-se num conjunto de diálogos surreais e situações disparatadas que hoje sabemos ter constituído o embrião da série de culto Duarte e Companhia, estreada cinco anos mais tarde, mas, em 1980, deve ter levado muitos espectadores a pensar: “O que raio se passou aqui?”

 

Roda da Sorte (1993): O formato americano estabelecia um concurso simples e inócuo, mas, ao entregar a apresentação da versão portuguesa a Herman José, a RTP contribuiu para criar algo muito diferente. Ao longo de três anos, o talento de Herman para aparvalhar transformou o concurso num programa diário de humor, seguido religiosamente por muitos portugueses antes do Telejornal. Na última emissão da Roda, o humorista recorreu a uma espingarda verdadeira para destruir a tiro o cenário e vários dos prémios oferecidos aos concorrentes. Nunca houvera, nem voltaria a haver, nada de semelhante na televisão nacional, embora não tenha faltado desde então aos espectadores vontade de arrasar certos programas à força de balas.

 

 

 

 

Médico de Família (2000): Este inesperado sucesso da SIC iniciou uma vaga de séries com histórias de viúvos ainda novos e com filhos. Neste caso, uma série de personagens gravitava em torno do médico interpretado por Fernando Luís, entre elas o “alívio cómico” encarnado por José Raposo, que no penúltimo episódio sofreu um acidente de viação. Porém, ao invés de morrer logo ou ser levado para o hospital, como é tradicional na ficção, o personagem de Raposo ficou encarcerado no automóvel e agonizou de forma lenta e dolorosa até morrer, no meio dos esforços infrutíferos do médico e do choro dos amigos e da namorada. Tanto dramatismo foi surpreendente após uma série tão ligeira, que terminaria logo a seguir ao mostrar Fernando Luís e Rita Blanco felizes para sempre.

 

Sair do estúdio: Transmitidos frequentemente em directo, os programas de debate sobre política ou futebol estão sujeitos a imprevistos. A partir de 2010, em vários canais, os comentadores desportivos Rui Moreira, Dias Ferreira e Eduardo Barroso assumiram os gestos teatrais de se levantarem, declararem estar fartos de aturar as provocações dos colegas de painel e saírem dos estúdios onde decorriam os programas. Já antes, em 2007, Pedro Santana Lopes decidira, ao ver uma entrevista sua à SIC Notícias, para a qual viera “com sacrifício pessoal”, ser interrompida devido à chegada de José Mourinho ao aeroporto lisboeta, recusar prosseguir o diálogo e ir para casa. Inspirada por estes precedentes, Manuela Moura Guedes optou em 2015, após mais uma refrega verbal com Isabel Moreira e Raquel Varela, também participantes em Barca do Inferno (RTP3), por tirar o microfone e abandonar um programa cujo fim já estava anunciado para daí a duas semanas.

 

Belmonte (2014): Adaptada pelo argumentista Artur Ribeiro de um original mexicano, esta telenovela da TVI distinguiu-se das restantes, não tanto pela história (apesar da presença de algumas referências culturais raras nas novelas), mas pela qualidade dos diálogos e meios técnicos. Contudo, ninguém preparou os seguidores do folhetim para as últimas cenas do derradeiro episódio: após os habituais casamentos e mortes, verifica-se um corte e, de repente, a câmara mostra o interior de um hospital psiquiátrico. Enquanto o elenco surge nas peles de doentes, médicos e enfermeiros, percebemos que tudo o que vimos nos 200 e tal episódios não passou da história do romance imaginado pelo protagonista (Filipe Duarte) a partir do que observava no hospital onde se encontrava internado. O twist sabotou heroicamente todas as regras não escritas do formato e gerou reacções negativas de espectadores nada habituados a reviravoltas. Na sua novela seguinte, Santa Bárbara, Artur Ribeiro não repetiu a gracinha, até porque o efeito surpresa desaparecera.

 

 

 

Erasmo contra Lutero

O pastor protestante Tiago Cavaco, também conhecido como o músico Tiago Guillul, tem abordado temas religiosos em vários livros, o mais recente dos quais é Cuidado com o Alemão (Igreja da Lapa/Letras d’Ouro, 2016), onde, a propósito do quinto centenário da Reforma, o sacerdote reproduz o pensamento de Martinho Lutero e confronta-o com vários aspectos da actualidade, um tempo no qual, segundo Cavaco, as religiões seguem erradamente a tendência de fomentar a auto-estima e o comodismo dos crentes. Embora deixe sempre clara a convicção inabalável que acompanha a sua fé, Cavaco revela ter sentido de humor e constrói uma obra útil para leitores de qualquer credo, alvos de sucessivas e estimulantes questões do autor.

 

Num capítulo sobre a vida de Lutero, Tiago Cavaco dedica especial atenção à polémica travada entre 1524 e 1525 pelo Reformador e por Erasmo de Roterdão, então o mais célebre intelectual humanista e que, apesar das suas críticas à Igreja Católica, demarcou-se da ruptura protagonizada pelo teólogo alemão. Os dois debateram no papel questões como a interpretação da Bíblia, a oposição livre arbítrio/servo arbítrio, a autonomia e os limites do Homem face ao poder de Deus, entre outras. A disputa, concluída sem acordo possível entre dois homens muito diferentes no estilo, nos objectivos e no temperamento, fascina Cavaco, para quem “em todas as questões da vida há espaço criativo para perguntarmos: sou Erasmo ou sou Lutero?” (p. 70).

 

 

Lembrei-me desta questão ao ler outro livro, a nova compilação de crónicas de Alberto Gonçalves, A Ameaça Vermelha (Matéria-Prima, 2017), um volume dedicado ao primeiro ano e meio de vida da Geringonça, o fenómeno político que motivou desde o início a crítica visceral do comentador. Nas eleições presidenciais de Janeiro de 2016, Alberto Gonçalves votou em Marcelo Rebelo de Sousa para evitar a vitória de qualquer um dos candidatos da esquerda, mas desde o dia da tomada de posse de Marcelo que a desilusão de Gonçalves com o Presidente dos “afectos” não poderia ser maior. De facto, as personalidades dos dois homens são exactamente opostas. Como bom católico, Marcelo tende a defender consensos e a união dos cidadãos num objectivo comum, enquanto Alberto vê na política um confronto perpétuo em que os bons têm de derrotar os maus. Embora admita mudanças, o moderado Marcelo propõe a manutenção no essencial do sistema, sistema esse que Alberto considera necessitar de transformações profundas. Marcelo utiliza uma linguagem suave e cortês, Alberto trata os adversários como imbecis e doentes mentais. Marcelo apela à pacificação, Alberto incentiva o confronto. Marcelo acredita que Portugal possui alguma margem de manobra na decisão das suas políticas. Alberto prega a submissão incondicional às justas normas de Bruxelas. Marcelo salienta as qualidades e capacidades dos portugueses. Alberto diz ao leitor: tu és lixo. Marcelo tem dúvidas. Alberto acha que quem tem dúvidas não acredita em nada. Marcelo é Erasmo. Alberto é Lutero. O problema é que, enquanto Lutero apontava Deus, revelado a todos na Bíblia, como o caminho para a salvação humana, Gonçalves apenas alude vagamente a uma redenção do país por meio da combinação da austeridade com um liberalismo que os portugueses, na sua opinião, são demasiado infantis para seguirem.

 

Quanto ao restante conteúdo de A Ameaça Vermelha, não há muito a dizer, já que as crónicas de Alberto Gonçalves podem ser resumidas na frase “todos os portugueses são idiotas, menos eu”. Na verdade, Alberto é “do contra” por natureza. Se algo está na moda, ele segue outro caminho. Benfiquista na sua juventude, antes de cair numa fase de total indiferença perante o futebol, Gonçalves tornou-se adepto do FC Porto quando o Benfica voltou a ganhar campeonatos (obrigadinho, Alberto, mas só aceitamos pessoas com cadastro limpo). Momentos em que o país inteiro se une para celebrar, como o título europeu de futebol ou a vitória na Eurovisão, são um autêntico suplício para Gonçalves. Afinal, de que serve um acontecimento que o colunista do Observador não pode indicar como prova da nossa irremediável estupidez?

 

 

P.S. A crónica de Alberto Gonçalves “Uma heroína do nosso tempo” (pp. 98-99 de A Ameaça Vermelha), publicada originalmente na Sábado de 7 de Julho de 2016, levanta duas questões pertinentes. A primeira é: que coisa estragada será preciso alguém comer em miúdo para se tornar tão arrogante e mal-educado? A segunda é: que tipo de editor aceita incluir num livro por si publicado um texto cujo autor goza com o sofrimento de outra pessoa?

 

P.P.S. Além do efeito de contraste através do qual os leitores de Alberto Gonçalves podem sentir-se mais simpáticos e tolerantes, o sucesso do comentador de direita pode ser explicado por um fenómeno parcialmente responsável pelo êxito televisivo do chef Ljubomir Stanisic: o estranho fascínio pelo tipo que é bruto com todos aqueles que encontra e sai sempre impune. Muita gente gostaria de ser rude e desagradável sem deixar de poder sair à rua, e alguém aparentemente livre para dizer qualquer insulto que lhe venha à cabeça cria um sentimento de admiração. A expansão do populismo passa também por aqui.  

A minha carreira no jornalismo

Os jornais escolares são uma actividade extra-curricular utilizada frequentemente pelos professores das escolas básicas e secundárias para objectivos como estimular a prática da escrita e do desenho pelos alunos e favorecer o trabalho de equipa. O estabelecimento do 1.º ciclo que frequentei entre 1990 e 1994, a Escola Primária n.º 1 de Odivelas, actualmente conhecida por Escola Maria Lamas, não constituía excepção, existindo nesse período o jornal ABC (o título da publicação surgia no cabeçalho seguido de expressões como “… da Poluição” ou “… da nossa Comunidade”), com 12 páginas, de periodicidade trimestral e vendido pelo “preço mínimo” de 100 ou 150 escudos.

 

Além de abordar os conteúdos ligados a cada período do ano lectivo (Natal, Carnaval, Páscoa, Verão), o ABC incluía notícias de visitas de estudo e outros eventos escolares, para lá de desenhos e composições dedicados a temas leccionados nas aulas, como a alimentação, a defesa do ambiente ou a prevenção do tabagismo, ou provenientes da actualidade. Acontecimentos como as eleições presidenciais de 1991, a visita a Portugal feita nesse ano por João Paulo II, o massacre do cemitério de Santa Cruz (Díli) e a guerra civil em Angola passaram pelas páginas do jornal da Escola n.º 1, onde a observação do meio local também era incentivada. No número 10 do periódico, publicado pouco antes da Páscoa de 1994, surgiu o seguinte texto, acompanhado por pequenas (e péssimas) ilustrações igualmente da minha autoria:

 

“O que eu mais admiro na minha terra

 

A minha terra chama-se Odivelas. É uma cidade, havendo por isso muitas coisas nela.

Eu gosto de ver o Cruzeiro, o Senhor Roubado, que conta nos azulejos a história do assalto à igreja, o Instituto de Odivelas, que tem o túmulo de D. Dinis e a estátua da Rainha Santa Isabel, sua mulher, onde havia as freiras, a velha igreja e a Casa da Memória.

Também gosto do pavilhão Estrelas do Bairro Olaio, embora só duas vezes tenha lá entrado, nas festas da escola. As piscinas também só por uma vez vi de perto, quando ainda nem tinham cobertura. As outras vezes foram apenas de relance.

Há poucos parques infantis em Odivelas, mas já só vou lá com os colegas. No entanto, ainda gosto de ir lá brincar.

Eu gosto de ir à catequese e também gosto de andar na escola n.º 1.

Mas os lugares que eu mais admiro na minha terra são o Estádio Arnaldo Dias e todas as papelarias, livrarias, quiosques e todos os lugares onde se vendam livros!

 

Pedro

4.º ano”

 

Este poderoso artigo de opinião escrito por um miúdo de 9 anos (às vezes penso que a cidade mudou mais do que eu desde 1994) alude aos principais monumentos históricos da freguesia, então integrada no concelho de Loures, e a equipamentos desportivos como o actual Pavilhão Municipal, casa do Ginásio Clube de Odivelas (herdeiro do EBO), e o estádio do Odivelas FC, que depois do descalabro financeiro do clube foi utilizado para treinos por Benfica e Sporting e mais tarde cedido pela Câmara odivelense ao Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol. Para lá da aprovação das professoras que dirigiam o ABC, não me lembro se a composição gerou reacções equivalentes aos likes e comentários da actualidade.

 

Finda a primeira etapa educativa, passei os anos do pentacampeonato do FC Porto na Escola dos Pombais (actual Escola D. Dinis), parcialmente visível na fotografia abaixo. Os Pombais não dispunham de imprensa própria até ao aparecimento, no ano lectivo de 1996/97, de dois periódicos escritos por alunos. De um lado, o Jornal da Escola dos Pombais, coordenado pela professora de Português Maria Gil Vieira e do qual só saíram dois números de 12 páginas. Do outro, o Jornal Jovem, ligado ao Clube de História e Geografia, sob o comando das professoras Soledade Pardal (sim, a prof. Pardal) e Maria do Rosário Martins. Sete edições do Jornal Jovem, cada uma com pelo menos 30 páginas, surgiram até 1999. Colaborei com os dois projectos através da recolha em livros de curiosidades ou textos sobre os temas principais de cada edição (que eram fotocopiados e incluídos no jornal, geralmente sem indicação da origem), tal como produzindo material original como entrevistas a professores envolvidos nas actividades extra-curriculares da escola, artigos noticiosos baseados em informação retirada de jornais e revistas e ainda comentários à actualidade. Neste último caso, escrevi acerca do Dia D (a campanha nacional contra a toxicodependência promovida em 28 de Janeiro de 1997), da reciclagem e da situação em Timor-Leste, entre outros temas. Publiquei também uma crítica do livro Caderno de Agosto, de Alice Vieira, e um pequeno conto que marcou o início das minhas pálidas experiências na ficção.

 

 

A ausência de jornais na Escola Secundária de Odivelas, pelo menos entre 1999 e 2002, viria a pôr fim à minha breve carreira de jornalista, que serviu para concluir que não tinha jeito nem vontade de trabalhar na comunicação social. Enquanto Sporting e Boavista conquistavam os seus primeiros (e até agora últimos) campeonatos do século XXI, tentei ser escritor, mas sem grande sucesso nem continuidade. Finalmente, acabei por seguir História e contar eventos reais ocorridos num passado mais ou menos distante. No entanto, a motivação foi sempre, e continua a ser, a mesma que tinha em 1994: o prazer de ler e escrever.

Os Truques contra o "truquismo"

O director-adjunto do Público, Diogo Queiroz de Andrade, divulgou no Facebook a identidade e o currículo político de um dos administradores da página Os Truques da Imprensa Portuguesa (TIP). Fê-lo no tom de quem descobriu a identidade secreta do Batman e veio dizer algo como: “eu sempre soube que era o Bruce… perdão, que era uma conspiração socialista para difamar os bons jornalistas”. A atitude da comunicação social, sobretudo dos jornalistas em funções de chefia, para com o espaço virtual de análise da produção mediática tem constituído um sintoma da crise do jornalismo nacional. Teoricamente, a reacção de um responsável jornalístico perante as críticas dos TIP deveria ser:

 

“Fico contente por termos leitores atentos e exigentes. Vou dizer ao pessoal para ter mais cuidado e evitar títulos enganadores. Não podemos desiludir o público”.

 

Na vida real, contudo, directores e chefes de redacção gritam:

 

“Mas estes c… de m… querem f… a nossa vida, c…?!”

 

As identidades dos membros da equipa dos TIP nunca foram propriamente um segredo de Estado, tendo os autores da página concedido entrevistas, além de ponderarem, por vezes, deixar o anonimato. No entanto, essa hipótese foi, segundo os próprios, afastada devido ao receio de pressões e represálias, que, mesmo sem assinarem os textos, administradores e editores não deixaram de receber. Os Truques constituem, de resto, um fenómeno bastante interessante. A página começou no final de 2015 como um hobby de cidadãos descontentes com as técnicas de manipulação política utilizadas pela comunicação social, mas rapidamente encontrou um vasto público igualmente revoltado com a degradação dos media. Enquanto o número de seguidores subia até aos actuais 150 mil, vários jornalistas (acompanhados por políticos e comentadores de direita), frequentemente obrigados pelos comentários dos TIP a alterar ou retirar conteúdos pouco rigorosos, começaram a manifestar, em surdina ou em público, o seu incómodo. O grupo de chatos só poderia tratar-se de uma equipa de propaganda do Governo, estreitamente ligada à direcção do PS. Até mesmo Pacheco Pereira, num artigo do Expresso (escrito de forma correcta, mas que permitiu a Ricardo Costa lançar no Twitter insinuações acerca dos anónimos entrevistados pelo semanário) sobre os TIP, considerou que os posts do grupo revelavam informação de origem governamental. Ao que parece, a desilusão dos jornalistas ao descobrirem quem escrevia os TIP não podia ser maior. Era mesmo só meia dúzia de miúdos desconhecidos, sem ligações partidárias e que se baseavam na colaboração dos seguidores da página? “Porra, já não há conspirações de jeito neste país. Precisamos de um Sebastião Pereira.”

 

 

Tudo isto revela uma chocante falta de disponibilidade dos media portugueses para o escrutínio. Obcecados por tudo o que “incendeia” as redes sociais, sejam os comentários de Maria Vieira ou as fotografias colocadas pelos famosos, os repórteres ignoram, curiosamente, as críticas ao seu trabalho surgidas na Internet. Figuras da direcção de informação da SIC, como Ricardo Costa, Bernardo Ferrão e José Gomes Ferreira, consideram-se estrelas da televisão sem justificações a dar a ninguém. A TVI revelou a mesma arrogância aquando da cobertura dos incêndios de Pedrógão Grande, enquanto o Correio da Manhã, como se sabe, está acima do bem e do mal. A recusa em assumir e corrigir erros ou perspectivas distorcidas atravessa o panorama mediático. Atacar quem grita que o rei vai nu parece aos órgãos noticiosos uma atitude mais lógica que ir vestir umas cuecas. Há uma coisa que os jornalistas têm de perceber: não há informação sem consumidores de informação (leitores, ouvintes, telespectadores), e nem todos eles são otários dispostos a engolir qualquer coisa sem pensar e ter dúvidas. Um truque hoje, um clickbait amanhã, e chegamos a uma situação em que já ninguém confia no jornalismo português e por isso as receitas deste caem ainda mais. Ficamos todos a perder, incluindo os bons profissionais que ainda trabalham nas redacções e não seguem o “truquismo” das chefias.

 

Os autores de Os Truques da Imprensa Portuguesa não são heróis nem santos. Apenas procuram levar a sério um jornalismo que, como escreveu a antiga jornalista Ana Margarida de Carvalho, não quer ser levado a sério. Uma vez denunciadas as suas identidades, vão provavelmente ser associados pelos jornais à Operação Marquês, aos e-mails do Benfica ou ao roubo de Tancos. No entanto, podem sempre dizer: “Não somos 2, somos 150 mil”.

 

 

A nova III República

Encontram-se já no mercado três dos novos volumes do Dicionário de História de Portugal, a clássica obra colectiva editada pela Livraria Figueirinhas. Coordenado por Joel Serrão na década de 60, o projecto seria prosseguido no final dos anos 90 por António Barreto e Maria Filomena Mónica, orientadores de três volumes dedicados à história do Estado Novo. Actualmente, está em curso a publicação de mais oito tomos do Dicionário, com o subtítulo O 25 de Abril e nos quais o trabalho de uma vasta equipa de investigadores (incluindo uma pequena contribuição do autor destas linhas), coordenados por António Reis, Maria Inácia Rezola e Paula Borges Santos, analisa o período entre 1974 e 1976 através de verbetes sobre pessoas, partidos, eventos, instituições e muitos outros temas. Os livros constituem um resumo da abundante produção académica em torno da Revolução, tal como um instrumento precioso para quem busca informação acerca da origem do actual regime português. A lista de colaboradores é marcada propositadamente pela heterogeneidade, ao nível quer das áreas profissionais de origem (direito, história, sociologia, jornalismo, ciência política, antropologia, etc.) dos autores quer das orientações ideológicas destes. A participação de especialistas como Rui Ramos, Helena Matos e Riccardo Marchi poderá ajudar a evitar a associação de ideias (História Contemporânea = Fernando Rosas = FCSH = comunas) habitual nalguns sectores de direita.

 

O terceiro volume da obra inclui textos dos politólogos André Freire e Marco Lisi sobre os vários actos eleitorais realizados em Portugal entre 1975 e 1976. Num balanço das legislativas e presidenciais deste último ano, que conduziram ao poder, respectivamente, Mário Soares e Ramalho Eanes, os autores identificam a génese de “dois problemas de funcionamento do sistema político português” mantidos até ao presente. Por um lado, “as dificuldades de entendimento das esquerdas para formarem governo”, em contraste com as frequentes alianças à direita, e, por outro, “os limites da ação presidencial sem apoio partidário”, visíveis no falhanço dos governos de iniciativa presidencial promovidos por Eanes (pp. 327-328). É preciso explicar que obras colectivas deste tipo exigem um período longo para a sua concretização, verificando-se frequentes hiatos temporais entre a escrita dos verbetes e a altura em que o público pode finalmente lê-los. Neste caso, a maior parte das novas entradas do Dicionário (algumas das quais produzidas por colaboradores entretanto falecidos, como José da Silva Lopes e José Medeiros Ferreira) foi redigida em 2013 e 2014. Esta situação cria riscos de desactualização, sobretudo quando se abordam acontecimentos tão recentes. Assim, Freire e Lisi não anteciparam os novos fenómenos políticos gerados pelas eleições de 2015 e 2016.

 

De facto, António Costa, Catarina Martins e Jerónimo de Sousa puseram fim à incapacidade de entendimentos governativos entre os partidos de esquerda representados no Parlamento, eliminando esse resquício do PREC. A surpresa e o cepticismo que acolheram a criação daquilo a que o historiador Vasco Pulido Valente chamou “geringonça” demonstraram precisamente o carácter inesperado da reversão do desequilíbrio do sistema apontado por Lisi e Freire. Da mesma forma, a chegada à Presidência da República de Marcelo Rebelo de Sousa, personalidade tratada numa entrada biográfica do Dicionário, criou uma situação inédita. Militante desde 1974 do principal partido da direita, Marcelo cultivou péssimas relações com a direcção do PSD (os contactos presidenciais com a líder do CDS têm sido mais amigáveis) e deixou claro não ter sido graças a Pedro Passos Coelho que chegou a Belém. Durante o seu primeiro ano de mandato, enquanto despertava a fúria da opinião liberal-conservadora ao mostrar-se benevolente para com o Governo esquerdista, Rebelo de Sousa obteve uma taxa de popularidade de dimensões únicas na democracia portuguesa, num estilo de ligação directa com o “povo” que lhe conferiu um importante capital político próprio. Sem dispor do apoio claro de nenhum dos partidos, nem precisar deles, o Presidente domina a agenda mediática e possui força suficiente para pressionar as restantes peças do sistema. Se Costa rompeu com o velho bloqueio do regime, Marcelo demonstra que o chefe de Estado luso pode ser bem mais decisivo e autónomo do que André Freire e Marco Lisi pensavam há poucos anos.

 

 

 

Os meninos de Odivelas

Apesar de ter um passado que remonta à Idade Média, Odivelas parece ter nascido ontem. Essa dualidade manifesta-se na própria configuração da cidade, onde uma pequena zona antiga, desenvolvida em torno dos monumentos cuja história aprendi na escola primária (o Cruzeiro ou Memorial, a igreja seiscentista, o Mosteiro de S. Dinis e S. Bernardo), é rodeada por sucessivas fileiras de prédios construídos a partir dos anos 60 do século XX.

 

O mosteiro cisterciense fundado pelo rei D. Dinis, que nele se encontra sepultado, deu origem a uma aldeia pouco povoada e ligada a escassas referências no âmbito da história portuguesa. Ocasionalmente, verificaram-se em Odivelas episódios como a morte da rainha D. Filipa de Lencastre (1415), o roubo na igreja matriz que provocou em 1671 um escândalo nacional e levou à execução do ladrão, António Ferreira, num auto de fé reproduzido na “banda desenhada” dos azulejos do monumento ao Senhor Roubado, ou os amores de D. João V com a Madre Paula, tema da nova série histórica da RTP1. De resto, Odivelas era apenas um lugarejo sem nada de especial além do mosteiro, convertido em 1899 no colégio interno dedicado até há poucos anos à instrução das filhas de militares. Tudo mudou em meados do século passado, quando os fenómenos do êxodo rural e da suburbanização atraíram ao povoado dezenas de milhares de pessoas, por vezes alojadas em condições precárias, denunciadas pelas cheias de 1967. Elevada a vila (1964) e cidade (1990), Odivelas tornou-se rapidamente um dos maiores dormitórios de Lisboa, sem transportes, espaços verdes ou equipamentos sociais adequados ao crescimento físico e populacional. A luta para fazer a Carris ultrapassar as fronteiras da capital e alargar o percurso do autocarro 36 foi um dos episódios mais marcantes do PREC odivelense, enquanto bairros clandestinos surgiam como aldeias ao lado da nova cidade.

 

A gestão comunista da Câmara de Loures inaugurou em Odivelas obras como as piscinas municipais, o Centro Cultural da Malaposta ou, já em 1997, a Biblioteca D. Dinis, mas um movimento defensor da secessão viria a obter em Novembro de 1998 a aprovação parlamentar da criação de um concelho sediado na terra da marmelada. De facto, além do concelho de Loures ser então demasiado populoso para permitir uma administração eficaz, as freguesias do novo município (Odivelas, Ramada, Famões, Caneças, Pontinha, Olival Basto e Póvoa de Santo Adrião) eram centros urbanos surgidos quase do nada e dominados pelo sector terciário, sem a tradição agrícola e operária do berço de Jerónimo de Sousa. A Câmara Municipal odivelense foi gerida até hoje por autarcas socialistas, enquanto nas eleições nacionais Odivelas seguiu as oscilações habituais entre PS e PSD. A expansão urbanística prosseguiu no século XXI, ao ponto de ser hoje difícil imaginar por onde Odivelas pode crescer mais. Áreas de lazer como o Jardim da Música (visível na fotografia do cabeçalho deste blogue) ou o Parque do Rio da Costa melhoraram a aparência da cidade, cujas acessibilidades mudaram em 2004 com a chegada do Metro. Na actualidade, Odivelas está longe, ao nível de escolas, transportes, alojamento, espaços verdes ou equipamentos culturais e desportivos, de ser um dos piores subúrbios lisboetas. Falta apenas o centro de saúde prometido há muitos anos.

 

 

A CMO tem procurado criar uma identidade local, explorando marcas como D. Dinis, a marmelada criada pelas freiras do antigo mosteiro ou o quartel da Pontinha no qual funcionou o Posto de Comando do MFA, mas, num concelho cujos habitantes vieram maioritariamente de outros pontos do país e do mundo (uma mesquita ergue-se hoje perto da velha igreja), poucos se sentem odivelenses. O associativismo ressente-se dessa falta de sentimento bairrista, presente no caso do Odivelas FC, um clube participante nos antigos campeonatos nacionais da II Divisão B e III Divisão e incapaz de reunir, a poucos quilómetros da Luz e de Alvalade, uma massa adepta capaz de evitar a decadência do emblema, actualmente em hibernação. O escasso sentimento comunitário, natural tendo em conta as características da cidade, contribui para a indiferença pela história e património locais.

 

Ao tornar-se recentemente o concelho do país com maior taxa de natalidade, fruto das políticas natalistas da CMO e sobretudo da combinação de bons acessos e casas baratas, num contexto de encarecimento da habitação em Lisboa, Odivelas parece ter um vasto futuro perante si. Quem sabe se os miúdos educados no jovem concelho não virão a criar uma ligação afectiva a esta terra onde as janelas de estilo gótico convivem com os prédios novos das Colinas do Cruzeiro?