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Desumidificador

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As palavras são importantes

Na sua intervenção na Universidade de Verão do PSD, Cavaco Silva incentivou os jovens alunos a terem a coragem necessária para “combaterem o regresso da censura”. Os novos sociais-democratas evitariam assim repetir o erro cometido pelo próprio Cavaco quando tinha a idade deles e a censura não o incomodava demasiado. Os anos passados em Inglaterra viriam, no entanto, a mudar o economista. Aníbal seria incapaz, por exemplo, de defender a censura de um programa televisivo de humor com imitações da voz do primeiro-ministro e sketches sobre personalidades históricas ou de barrar a candidatura a um prémio literário de um romance por o considerar ofensivo para uma dada religião.

 

 

Não quero acusar Cavaco Silva por não ter sido um herói durante a ditadura (muito poucos o foram), até porque o antigo Presidente da República nunca se armou em antifascista, característica essa que o tornou adorável para boa parte da direita. No entanto, certas palavras têm um significado preciso e pessoas como Cavaco e Maria João Avillez, autora do artigo do Observador recomendado em Castelo de Vide por Aníbal, estão a contribuir para a banalização de conceitos como “censura", "guerra” ou “tirania”. As comparações entre a Geringonça e o Estado Novo ou a União Soviética feitas por vários colunistas relativizam implicitamente a violência e a especificidade histórica desses regimes ditatoriais ao considerarem tudo equivalente. Já faltou mais para os comentadores denunciarem o Terror, o Holocausto e a colectivização forçada a que António Costa está a proceder sob o silêncio cúmplice de Marcelo Rebelo de Sousa. (ALERTA: a frase seguinte é irónica) O próprio Edmundo Pedro começa a admitir que, embora tenha de facto apanhado muito calor lá no Tarrafal, não passou por nada tão insuportável como ser chamado de racista e homofóbico no Facebook. (Ironia desligada)

 

A crónica de Maria João Avillez sobre a opressão do politicamente correcto aborda ainda outros pontos interessantes. A jornalista queixa-se do facto de nunca ter vingado no Portugal democrático um jornal de direita ou centro-direita empenhado no combate cultural e ideológico contra a esquerda. Ou seja, ao fim de três anos de publicação, o Observador, onde Avillez escreve, ainda não “se impôs”. A verdade é que, salvo o caso excepcional de O Diabo, nenhum periódico nacional com uma orientação política assumida teve vida muito longa nas últimas décadas, incluindo os jornais favoráveis ao PS (A Luta e Portugal Hoje) e ao PCP (O Diário), devido à sua rejeição pela maioria dos leitores, sem cor partidária definida. Assim, desenvolveram-se técnicas mais subtis de intervenção. Primeiro, é necessário proclamar a total independência do jornal e vinculá-lo aos princípios mais nobres e ousados, como a liberdade de informação. Depois, enche-se a maior parte do noticiário com crimes, futebol e fofocas sobre celebridades. Pode-se então introduzir notícias sem base real ou apresentadas de maneira tendenciosa, numa linguagem prejudicial para o lado oposto ao nosso, e misturar tudo num belo prato de “jornalismo de referência”.

 

No mesmo texto, Avillez sente-se desacompanhada na luta contra a ditadura cultural da extrema-esquerda e retoma o “síndroma da clandestinidade” presente há muitos anos nos artigos dos colunistas de direita. Estes sentem-se minoritários e sem acesso ao público, uma vez que meios como as artes, a universidade e a comunicação social estarão sob domínio da esquerda, situação que permite a esta influenciar as mentalidades dos portugueses e apresentar a direita a uma luz desfavorável. De facto, nos primeiros anos após o 25 de Abril, exigia-se uma certa dose de coragem para militar nas forças políticas à direita do PS, alvo de acusações de ligação ao regime deposto e dotadas de escassa presença nos media estatizados. A partir de 1979, as vitórias eleitorais da AD, a estabilização da democracia e o triunfo da economia de mercado deveriam conduzir ao fim do receio de exclusão sentido pela direita, mas nem os 20 anos de Cavaco Silva no poder serviram para tranquilizá-la. Apesar do predomínio conservador em estabelecimentos de ensino superior como a Universidade Católica e as faculdades de Economia, os liberais temem e desprezam o pessoal das ciências sociais e humanas, esse exército de clones do prof. Rosas e do prof. Boaventura. Quanto à alegação de domínio do jornalismo português actual pela esquerda, merece um comentário em três palavras: ah, ah, ah. No fundo, trata-se de uma posição idealista, já que, para a direita, o poder político e o poder económico são irrelevantes perante a influência tremenda da cultura. Se Bruno Nogueira e Ricardo Araújo Pereira se tornassem apoiantes do PSD, este país seria bem diferente.

 

P.S. Cavaco Silva parece ter um afecto especial pelo Observador, o único jornal, juntamente com o Sol, que o antigo magistrado supremo cita no livro Quinta-Feira e Outros Dias para confirmar as suas opiniões (p. 68). Recentemente, Cavaco publicou no Observador dois artigos, uma homenagem ao seu ex-ministro Miguel Beleza e a transcrição de uma conferência realizada pelo algarvio na Coreia do Sul. O jornal digital reúne grande parte dos poucos comentadores para quem Cavaco foi um óptimo Presidente, bem melhor que o traidor Marcelo. Talvez por isso mesmo, o discurso feito por Aníbal em Castelo de Vide poderia ter sido proferido num dos vídeos de Rui Ramos ou José Manuel Fernandes. Na verdade, o Observador, ao invés de usar um nome semelhante aos daqueles jornais fictícios lidos pelas personagens das telenovelas portuguesas, deveria chamar-se O Cavaco, como a antiga revista de José Vilhena.

 

Todos somos X

Recentemente, o debate público em Portugal tem sido marcado pela crescente preponderância das redes sociais sobre a imprensa e os restantes meios clássicos de comunicação. O jornalismo até pode lançar a notícia ou a declaração na origem de uma polémica, mas a partir daí limita-se a seguir o que acontece no Twitter, no Facebook e noutros fóruns cibernéticos e a difundir aquilo que as “celebridades” dizem sobre o assunto do momento. E, de facto, muitas vezes o assunto só dura um momento.

 

O processo costuma iniciar-se quando, dentro ou fora da Internet (acaba por dar no mesmo), alguém com relativa visibilidade pública diz ou partilha X. Ao fim de poucas horas, X está reproduzido por todo o lado e formaram-se grupos vastos a favor ou contra X. Todos se sentem obrigados a opinar imediatamente sobre X, sob pena de passarem por ignorantes ou direitistas/esquerdistas, conforme o caso. Há quem se indigne por tanta gente falar de X e não de Y. Entretanto, X é associado a valores elevados como a liberdade, a igualdade e a fraternidade e convertido num símbolo dos tempos que correm. O ruído gerado faz os comentadores dos media tradicionais pronunciarem-se acerca de X e os políticos digladiarem-se em torno do escândalo que X representa. Tudo isto parece durar imenso tempo, mas na verdade prolonga-se por apenas dois ou três dias. Findo esse período, ou alguém revela que X afinal era V e ninguém o tinha percebido ou então X simplesmente desaparece nas brumas da memória para dar lugar a um novo debate cheio de paixão, agora sobre Z, e depois o alfabeto volta ao início para nos proporcionar novas polémicas.

 

Porque se repete este ciclo? Desde logo, o ritmo da actualidade é frenético, com a sucessão permanente de eventos a dificultar reflexões mais pausadas e a contribuir para o rápido esquecimento do passado recente. Por outro lado, atraídos pelo cheiro a sangue, muitos jornalistas preocupam-se mais em difundir e ampliar as polémicas do que em esclarecer aquilo que está em causa. Existe também o puro prazer lúdico de discutir (mesmo sobre assuntos insignificantes), cujo estímulo favorece o choque de posições opostas. Nada disto seria particularmente novo ou grave se o nível do debate não estivesse a degradar-se cada vez mais. No cenário actual de bipolarização da política portuguesa, qualquer episódio serve de pretexto para demonstrar o carácter totalitário da esquerda ou a alarvidade preconceituosa da direita, numa tendência para o exagero e a dramatização em que os ataques pessoais elevam-se acima das meras diferenças de perspectiva. A rapidez e interactividade do debate contribuem para a profusão de afirmações precipitadas e originam um certo efeito de manada, através da busca da aprovação dos “amigos” e seguidores e da hostilização de quem está fora do grupo. De certa forma, o pensamento político da actriz Maria Vieira, agora editado por Zita Seabra no livro Maria no País do Facebook, resume o tom maioritário nas redes sociais: muita indignação, pouco conteúdo.

 

No meio do labirinto de documentos históricos que o mundo virtual produz, os historiadores do futuro sentirão dificuldades de orientação, mas poderão talvez observar as inúmeras polémicas públicas do início do século XXI com maior distanciamento, concentrando-se nas dinâmicas de produção de opinião que elas revelam e tentando compreender essa época estranha em que, à semelhança de Ricardo Araújo Pereira, nunca deixávamos que o essencial nos distraísse do acessório.

"Contra a Democracia"

O filósofo político americano Jason Brennan, autor de Capitalismo. Porque Não? (Gradiva, 2016), regressa às livrarias portuguesas com o ensaio Contra a Democracia, também publicado pela editora de Guilherme Valente. O título do livro não se trata de uma provocação, mas do resumo óbvio de um trabalho dedicado a examinar os defeitos do sistema democrático e desmontar os argumentos dos seus defensores. Nesse sentido, o timing da obra é perfeito, uma vez que, embora Contra a Democracia tenha sido escrito ainda antes da eleição de Donald Trump, parece responder à dúvida de muita gente: “como é que aquele que supostamente é o melhor dos regimes políticos conduziu um homem assim à chefia do Estado?”. Esclareça-se que Brennan rejeita a ditadura, propondo como alternativa a epistocracia (“governo dos sábios”), um regime caracterizado por restrições ao número de eleitores ou ao poder destes, semelhante às monarquias constitucionais do século XIX, as quais eram, precisamente, sistemas liberais não democráticos.

 

O problema de Brennan mostra-se claro: “A maior parte dos meus concidadãos é incompetente, ignorante, irracional e moralmente pouco razoável em matéria de política. Apesar disso, detém poder político sobre mim. (…) Pelo menos à primeira vista, parece-me que, enquanto pessoa inocente, não devia ter de tolerar isso” (p. 202). Para o resolver, o autor começa por distinguir três tipos de eleitores, os hobbits (“apáticos e ignorantes quanto à política” e habituais abstencionistas), os hooligans (“os fanáticos desportivos da política”, tendenciosos e incapazes de ouvir ideias diferentes das suas) e os vulcanos, com opiniões “fortemente baseadas na sociologia e na filosofia” e sempre abertos a mudar de posição caso os factos a isso obriguem (pp. 15-17). A maioria dos americanos enquadra-se nos dois primeiros grupos, formando uma massa de eleitores composta por “Nacionalistas ignorantes, irracionais, desinformados” (p. 41), de acordo com os inquéritos citados no segundo capítulo da obra. Nos capítulos seguintes, Jason procura mostrar que “A participação política corrompe”, ao agravar os defeitos das pessoas, enquanto “A política não dá poder a si nem a mim”, devido à irrelevância da vontade individual de cada eleitor para o rumo da governação. O professor universitário desmente ainda que os cidadãos impedidos pela epistocracia de votar devido a escasso conhecimento político possam sentir-se insultados (caso isso aconteça, devem “ultrapassar esse sentimento ou estudar mais”) e, a partir do “direito a um governo competente”, conclui que, se medidas como a redução do eleitorado à franja mais informada da população ou a criação de órgãos não eleitos com poder de veto sobre as decisões dos votantes produzirem resultados governativos superiores aos da democracia, esta deve dar lugar a um sistema epistocrático. A concluir, Brennan reafirma que, pela sua natureza, a política transforma os cidadãos em “inimigos cívicos” (p. 339) obrigados a combater entre si. Todo este trabalho é habilmente construído, com o humor e a profusão de exemplos a facilitarem a compreensão do leitor, embora o diálogo de Brennan com os seus pares seja por vezes difícil de acompanhar por leigos.

 

 

Um factor influente no pensamento de Jason Brennan é o facto deste ser americano e não português. Se o filósofo vivesse no nosso país, teria oportunidade de assistir aos programas televisivos de debate sobre futebol. Em primeiro lugar, veria que, comparada com o fanatismo e irracionalidade estimulados pelo futebol, a política é uma brincadeira de crianças. Em segundo lugar, verificaria ser possível que, perante factos e imagens exactamente iguais, várias pessoas tirem conclusões muito diferentes. Além de ver televisão, talvez Jason aprendesse algo sobre o Estado Novo, um regime que, ao contrário de outras ditaduras, procurou converter os cidadãos não em hooligans mas em hobbits, através de uma descrição da política democrática semelhante à de Brennan e da difusão da crença nas capacidades intelectuais da elite, e em particular do ditador, para dirigir o país sem a intervenção dos governados. Se é verdade que muitos portugueses actuais possuem reduzidos conhecimentos de economia, sociologia e filosofia política, Brennan teria de admitir que avançámos muito a esse nível desde o tempo em que mais de metade da população lusa era analfabeta e não acedia à comunicação social. Por fim, Jason ficaria confuso ao ouvir falar dos doutorados de Oeiras que votam em Isaltino Morais.

 

Uma falha de Brennan reside no aspecto de associar a competência na decisão política a uma mera questão de acesso à informação, à semelhança, como indica várias vezes, do conhecimento necessário para ser médico ou canalizador. O filósofo parece seguir o princípio cavaquista de que, perante dados idênticos, quaisquer pessoas bem-intencionadas chegam às mesmas conclusões, o que está longe de ser real. A escolha de um candidato ou opção ideológica é influenciada, para lá dos factos e do currículo académico, por factores morais, afectivos ou baseados na experiência passada de cada eleitor, numa situação que pode revelar-se positiva. Por exemplo, muitos intelectuais do século XX consideraram aceitável e até necessário que milhares de pessoas fossem presas ou executadas para garantir uma sociedade futura mais justa. Teoricamente, até poderiam estar certos (não existem provas nesse sentido), mas moralmente estavam errados, apesar de todo o seu saber. Da mesma forma, Brennan vê na política uma zona suja e violenta no meio de uma sociedade tendencialmente pacífica e cooperante. Na verdade, o conflito está presente em toda a actividade humana (inclusive na economia de mercado defendida por Brennan, onde empresas do mesmo ramo competem umas com as outras), algo que não é mau em si mesmo, desde que sejam seguidas determinadas regras criadas para evitar a batota e a violência. Quanto à crença do filósofo de que a elite epistocrática de votantes não defenderia os seus próprios interesses em prejuízo da maioria excluída do sufrágio… Jason, em que mundo é que vives?

 

Para além do talento na exposição e da capacidade argumentativa que revela, Jason Brennan presta, ironicamente, um grande serviço à democracia ao ajudá-la a auto-questionar-se e a compreender as frequentes diferenças entre a teoria e a prática. Acima de tudo, Contra a Democracia faz pensar, e isso é muito bom num livro. No entanto, continuo a preferir o governo de muitas pessoas imperfeitas ao governo de um grupo reduzido de indivíduos que se julgam perfeitos.

 

P.S. A partir do mesmo princípio que o leva a destacar a irrelevância do voto a nível individual, Brennan considera a poluição um problema grave em termos colectivos, mas, individualmente, admite manter práticas como conduzir um automóvel poluente ou gastar imensa energia. Afinal, de nada serviria consumir menos, já que “O meu impacto individual é tão pequeno que esses sacrifícios não fariam qualquer diferença” (p. 204). Das duas uma: ou ensinaram muito mal a Brennan os princípios básicos da ecologia, ou o filósofo é incapaz de sentir culpa.

Os melhores filmes

Os meus 10 filmes preferidos (não necessariamente os melhores que vi) são, por ordem alfabética dos realizadores:

 

Alfred Hitchcock, “Psico” (1960)

Clint Eastwood, “Million Dollar Baby” (2004)

Francis Ford Coppola, “O Padrinho” (1972)

Frank Darabont, “Os Condenados de Shawshank” (1994)

Orson Welles, “O Mundo a Seus Pés” (1941)

Quentin Tarantino, “Pulp Fiction” (1994)

Sam Mendes, “Beleza Americana” (1999)

Stanley Kubrick, “2001: Odisseia no Espaço” (1968)

Steven Spielberg, “A Lista de Schindler” (1993)

Terry Jones e Terry Gilliam, “A Vida de Brian” (1979)

 

 

 

Os quase melhores

Depois de, noutra ocasião, ter indicado a lista dos meus 10 álbuns de músicos portugueses preferidos, apresento agora os discos que ocupam os lugares 11-20. Apesar de possuírem notáveis qualidades, cada um deles não constitui o melhor trabalho do respectivo artista ou falta-lhe não sei bem o quê para chegar aos píncaros. Por ordem alfabética dos artistas, a lista dos quase melhores é a seguinte:

 

Banda do Casaco, “No Jardim da Celeste” (1980)

Fausto, “Crónicas da Terra Ardente” (1994)

GNR, “Rock in Rio Douro” (1992)

Jorge Palma, “Só” (1991)

José Afonso, “Eu Vou Ser Como a Toupeira” (1972)

José Mário Branco, “Ser Solidário” (1982)

Petrus Castrus, “Mestre” (1972)

Quarteto 1111, “Onde Quando Como Porquê Cantamos Pessoas Vivas” (1975)

Rui Veloso, “Ar de Rock” (1980)

Xutos & Pontapés, “Dizer Não de Vez” (1992)

 

 

 

Os melhores discos

Os 10 álbuns gravados por músicos portugueses que mais me agradaram são, por ordem alfabética dos artistas:

 

Clã, “Lustro” (2000)

Da Weasel, “Iniciação a uma Vida Banal (O Manual)” (1999)

Diabo na Cruz, “Diabo na Cruz” (2014)

Fausto, “Por Este Rio Acima” (1982)

GNR, “Psicopátria” (1986)

José Afonso, “Cantigas do Maio” (1971)

José Cid, “10.000 Anos Depois Entre Vénus e Marte” (1978)

Rui Veloso, “Mingos e os Samurais” (1990)

Sérgio Godinho, “Os Sobreviventes” (1972)

Xutos & Pontapés, “Circo de Feras” (1987)

 

 

 

À procura do meio-termo

1. Quando li Utopia, de Thomas More, pensei que uma sociedade assim só funcionaria se todos os cidadãos actuassem sempre de forma racional e orientada pelos interesses do colectivo. E isso não seria possível, já que todos somos naturalmente imperfeitos (ou pecadores, numa perspectiva religiosa), capazes do melhor e do pior e movidos por interesses parciais e contraditórios, difíceis de submeter ao “bem comum” definido pelos dirigentes da sociedade. O facto de uma comunidade absolutamente pacífica e harmoniosa não parecer realista (nem desejável) não invalida, contudo, os esforços no sentido de aperfeiçoar aquilo que temos hoje e corrigir as injustiças sociais. Entretanto, se o conceito de uma sociedade igualitária costuma ser associado à esquerda, também a direita persegue as suas utopias. Talvez já não a utopia reaccionária do Estado Novo, marcada pelo desejo de regressar ao tempo anterior à Revolução Francesa, mas sim um modelo correspondente a uma espécie de Estados Unidos idealizados, onde apenas os polícias e militares sejam funcionários públicos, cada um só se preocupe consigo mesmo e ninguém faça greves, manifestações ou qualquer tipo de protesto.

 

2. A propriedade privada é algo de bom, ao contribuir para a liberdade, dinamismo e capacidade de planeamento dos proprietários, estimulados por uma fonte de rendimento que os beneficia directamente. Claro que não é a mesma coisa ser dono de um quiosque ou de um banco, mas os eventuais limites a partir dos quais a propriedade teria de ser pública, à semelhança dos fixados durante o PREC, seriam sempre arbitrários e contestáveis. Da mesma forma, o capitalismo, apesar de todos os seus defeitos, constitui um sistema aberto, plural e capaz de aumentar a produção de riqueza, enquanto as alternativas à economia de mercado fracassaram dramaticamente. No entanto, a intervenção do Estado não pode ser dispensada. Um capitalismo sem limites nem mecanismos redistributivos acaba por conduzir à situação simbolizada pela fotografia da capa do livro A Cada Um o Seu Lugar, de Irene Flunser Pimentel, captada em Dezembro de 1945, aquando da distribuição de um bodo aos pobres pela Obra das Mães para a Educação Nacional.

 

 

3. O indivíduo tem de manter sempre uma margem de autonomia em relação às pressões do “nós” a que pertence, seja ele uma nação, uma família, uma religião ou qualquer outro dos colectivos mencionados na canção “Nasce Selvagem”, dos Delfins. Não acredito que a identidade e as características psicológicas de uma pessoa sejam determinadas apenas pelo meio em que cresceu, tal como na possibilidade de dissolver alguém num “povo” ou “classe” formado por membros indiferenciados. Por outro lado, o carácter único de cada ser humano não o isenta de responsabilidades para com a comunidade onde vive. Veja-se o caso dos impostos. Como sabemos, oprimir empresas e particulares com uma carga fiscal excessiva é injusto e economicamente contraproducente, mas não se deve cair no extremo de recusar pagar qualquer imposto, dado que o financiamento quer das obras públicas quer de serviços de natureza gratuita fornecidos pelo Estado (saúde, defesa, educação, segurança social, etc.) depende das contribuições fiscais, incluindo as daqueles que possuem maiores rendimentos e também podem beneficiar da actividade estatal. A liberdade individual não anula a ligação ao colectivo, ou, como canta Sérgio Godinho em “Vai Lá!”, “És de todos tão diferente/até na impressão do dedo/ (…) mas mesmo sendo de outra gente/és só parte de um só todo”.

 

4. Os princípios enunciados nos pontos anteriores implicam um permanente equilíbrio entre optimismo e pessimismo antropológico, interesse individual e interesse colectivo, autonomia pessoal e obrigações sociais, capital e trabalho, igualdade e desigualdade, liberdade e responsabilidade, competição e cooperação, restrições ao poder estatal e utilização de meios coercivos, resignação e inconformismo, etc. Trata-se de uma complexa busca do meio-termo que caracteriza, afinal, a combinação de “social” e “democracia” presente no ideário da social-democracia. O caminho desta, a partir do pós-guerra, tem sido difícil e marcado por oscilações, erros de estratégia ou crises de identidade como a actual. Apesar das dúvidas, o modelo social-democrata (não confundir com o do PSD) continua a ser uma proposta política de organização coesa da economia e da sociedade, procurando evitar conflitos e rupturas violentas e não acreditando em projectos desejosos de criar um Homem Novo e subordinar tudo à construção de uma futura sociedade utópica. E é precisamente por isso que, como moderado e social-democrata, apoio a Geringonça.

 

P.S. O debate Natureza/Meio, relativamente à influência de cada um na formação do ser humano, possui numerosas implicações políticas. Neste livro (não se deixem enganar pelo título), Ricardo Serrado resume as conclusões da investigação científica sobre o tema e explica de forma clara como a realidade é mais complexa do que parece.

 

Madre Seara

A propaganda política com vista às eleições autárquicas de 1 de Outubro já se encontra exposta nas ruas, originando curiosidade, indiferença ou escárnio nos transeuntes. Como é sabido, as campanhas eleitorais portuguesas sofreram transformações nas últimas décadas, através quer da crescente utilização da Internet quer de alterações nos meios tradicionais. O alvo dos candidatos desviou-se do peão, perante os olhos do qual era instalada uma mancha gráfica esmagadora nas paredes dos prédios cobertas de cartazes, pichagens e autocolantes, para o automobilista. Os cartazes usados são agora mupis ou outdoors, em número reduzido mas colocados em pontos estratégicos do trânsito, como as rotundas ou as entradas e saídas das cidades. As grandes superfícies rectangulares destinam-se habitualmente aos candidatos à chefia das câmaras, enquanto os potenciais presidentes de junta surgem em folhas A4 afixadas nos abrigos de paragens de autocarro ou em pequenos cartazes presos aos postes de iluminação. Este tipo de publicidade estática é considerado caro e inútil por muita gente, mas no caso das autárquicas justifica-se pela obrigação de aumentar a notoriedade de candidatos sem acesso aos media e geralmente desconhecidos da maioria dos eleitores.

 

Em Odivelas, os meses de Junho e Julho foram preenchidos pela apresentação pública dos candidatos a presidente da Câmara, Hugo Martins (PS), Fernando Seara (PSD/CDS), Fernando Painho Ferreira (CDU) e Paulo Sousa (BE), tal como dos cabeças de lista à Assembleia de Freguesia. Entretanto, os stands partidários no recinto das Festas da Cidade distribuíram os primeiros folhetos da campanha autárquica. O prospecto do PS apresentou Hugo Martins (40 anos, casado, pai de uma filha, antigo professor de Matemática), um autarca desconhecido para muitos odivelenses, enquanto Fernando Seara publicou imagens do lançamento da sua candidatura (em nenhuma das quais é visível Pedro Passos Coelho) e a CDU focou nos seus panfletos propostas concretas como a do destino dos terrenos do antigo Instituto de Odivelas. Ao nível da propaganda na rua, o Bloco de Esquerda limitou-se, à semelhança das campanhas anteriores, a difundir o seu cartaz de âmbito nacional, enquanto os rostos de Seara e Painho Ferreira já se encontram espalhados pelas freguesias do concelho. A coligação de direita recorreu à inócua frase “Dar Força a Odivelas” e a CDU afirma que “Levamos Odivelas a Sério”, um slogan surpreendentemente parecido com o lema do PSD passista, “Levar Portugal a Sério”. O PS tem seguido uma linha de campanha baseada na “confiança” e no trabalho já feito pela CMO, lançando vários cartazes sem fotografias de Martins e dedicados a eventos ligados à Câmara, como o fornecimento de refeições gratuitas aos alunos do 1.º ciclo e pré-escolar ou a chegada do Metro, que “pôs Odivelas no mapa”. Tendo em conta que as estações de metro de Odivelas e do Senhor Roubado foram inauguradas em 2004, muito antes de Hugo Martins assumir funções autárquicas, percebe-se que a mensagem socialista anda à volta de “vote nos mesmos de sempre, não interessa quem seja o presidente”. Em Agosto, a campanha não costuma sofrer grandes acrescentos, já que os partidos esperam pelo regresso de férias de muitos munícipes para atacarem em força no início de Setembro.

 

 

No seu programa na SIC, onde tem prognosticado os resultados eleitorais de vários concelhos (quando não sabe quem vai ganhar, diz que “é 1X2”), Marques Mendes gastou pouco tempo com o caso de Odivelas, encolhendo os ombros como quem diz: “a câmara sempre foi do PS e o Seara… bem, é o Seara”. Enquanto todas as atenções se centram em Lisboa e no concelho de Loures, base do exército prometido por André Ventura (espero que não invada Odivelas, tornando Loures grande outra vez), a terra da marmelada apresenta algumas particularidades. Ao submeter-se pela primeira vez à decisão popular na qualidade de cabeça de lista, Hugo Martins poderia ser prejudicado pela sua falta de carisma, fotogenia e notoriedade ou por um passado conturbado. Já Fernando Seara, além de ser uma celebridade benfiquista, possui mais experiência no trabalho autárquico, ainda que noutro município. O problema de Seara está, no entanto, precisamente aí, sobretudo depois de salientar no seu célebre discurso de apresentação da candidatura que passa “todos os dias” de automóvel pelo território de Odivelas. O ex-presidente da Câmara de Sintra já tentou em 2013 ganhar em Lisboa, com resultados desastrosos. Quanto a Painho Ferreira, não parece poder aspirar a mais do que um honroso segundo lugar, no quadro de uma divisão implícita entre a “rosa” Odivelas e a “vermelha” Loures. Por seu turno, o BE procura eleger pela primeira vez um vereador no executivo odivelense, depois de votações baixas em escrutínios anteriores. O nível de abstenção e a ligação das autárquicas ao contexto político nacional representam outros factores a ter em conta. Tudo somado, as surpresas eleitorais aparentam ser improváveis em Odivelas. No entanto, até à contagem dos votos tudo é possível. A imprevisibilidade constitui, afinal, uma das características aliciantes da democracia.

 

 

"Os Homens da Segurança"

Criada e realizada por Nicolau Breyner e produzida por Tozé Martinho, a série televisiva Os Homens da Segurança (ou apenas Homens da Segurança, o título que aparece no genérico inicial) foi exibida originalmente pela RTP entre Julho e Outubro de 1988 e recentemente reposta na RTP Memória. Além de conceberem o projecto, Nico e Tozé protagonizaram-no, nos papéis de dois seguranças privados a trabalhar num hotel de luxo da península de Tróia. Seguindo um modelo habitual nos anos 80, trata-se de uma dupla imbatível formada por homens com personalidades opostas. Assim, enquanto Carlos Jorge (Breyner) tem um feitio difícil, bebe e fuma imenso e anda sempre de boné dos Yankees e óculos escuros, Filipe Sarmento (Martinho) é simpático, playboy e de boas famílias, à imagem de O Santo e James Bond, as personagens de Roger Moore às quais é comparado pelo inspector da Polícia Judiciária (Morais e Castro) do qual os Homens da Segurança recebem antipatia e, ocasionalmente, colaboração.

 

Em cada um dos 13 episódios escritos por Manuel Arouca, chegam à unidade hoteleira personagens interessadas em mais do que turismo e que os Homens da Segurança têm de travar. Durante o trabalho, os dois cruzam-se com elementos do pessoal do hotel, entre eles o director (Baptista Fernandes), o snobe e cómico subdirector (Henrique Santana), a menina do rent-a-car com quem Filipe se envolve (Manuela Marle), a recepcionista (Cristina Homem de Mello), o barman engatatão (Carlos Areia) e a telefonista que se dedica ao jornalismo nas horas vagas (Noémia Costa). O casting do elenco adicional fez passar por Tróia quer actores consagrados (Rogério Paulo, Henrique Santos, Ruy de Carvalho) quer pessoas sem experiência na representação, como Felipa Garnel, o futebolista (hoje treinador) Luís Norton de Matos ou os filhos de Tozé Martinho. A série terminou em aberto, talvez na expectativa da RTP encomendar à produtora Atlântida uma segunda temporada, o que não aconteceu.

 

 

A ideia dos autores parece ter sido fazer uma série policial à portuguesa, temperada com um pouco de humor e romance. Todavia, há corridas de caracóis mais excitantes que Os Homens da Segurança. É útil recordar que em 1988 vivia-se ainda o período de monopólio da RTP e não existia o risco do espectador mudar de canal. Isso permitia que cenas resolvidas actualmente em menos de um minuto se prolongassem por 5 ou 10 minutos, num ritmo muito lento aos olhos de hoje, inclusive numa sequência de suspense na qual Nicolau Breyner persegue António Feio e que se arrasta até quase perder o interesse. Apesar de Nico e Tozé enfrentarem ameaças como roubo, tráfico ou crime informático, existe na série uma ingenuidade desconcertante. Mesmo quando os seguranças matam um bandido, logo a seguir estão a rir do caso. Quanto às cenas românticas, dominadas pela relação entre as personagens de Martinho e Marle (que se tratam sempre por você), são tão insípidas como as das telenovelas feitas em Portugal na mesma altura. Tozé Martinho desempenha em Os Homens da Segurança o mesmo papel de sempre, o de Tozé Martinho, enquanto os outros actores constroem os seus bonecos com relativa eficácia. A excepção é Nicolau Breyner, que procura, como actor e realizador, elevar a série acima da mediania, dando corpo a uma verdadeira personagem e imprimindo maior dinâmica às cenas de exteriores, num trabalho que nos recorda uma vez mais a grande figura do audiovisual desaparecida no ano passado.

 

Minimamente competente, apesar de ter envelhecido mal, Os Homens da Segurança transporta-nos ao período da infância da ficção televisiva portuguesa, quando as boas intenções nem sempre eram acompanhadas pela imaginação ou pelos meios técnicos. Basta pensar na série Polícias, escrita oito anos mais tarde por Francisco Moita Flores, para reparar na importante evolução vivida na RTP entre as décadas de 80 e 90, quando a concorrência entre canais reforçou os orçamentos e obrigou a estação pública a sair da poltrona.

De pequenino se torce o destino

A literatura infanto-juvenil possui um papel fundamental na iniciação e sensibilização das crianças para a leitura, na difusão do conhecimento sobre determinadas áreas temáticas (artes, História, Geografia) e até como retrato numa dada época do público-alvo a que se destina. No meu caso, apesar de ter acabado por crescer e começar a preferir livros mais “adultos”, o contacto com os autores portugueses de obras redigidas a pensar nos jovens foi decisivo para tudo aquilo que li e escrevi mais tarde. Estes foram os escritores cuja imaginação mais me deliciou entre os 10 e os 15 anos e a quem gostaria de prestar homenagem, tal como aos ilustradores que deram rosto aos personagens.

 

Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada: As duas professoras iniciaram em 1982, com a escrita a meias de Uma Aventura na Cidade, um dos maiores fenómenos literários portugueses, que ainda continua a crescer 35 anos depois. A colecção Uma Aventura, na qual os lisboetas João, Chico, Pedro, Luísa e Teresa, acompanhados dos cães Faial e Caracol, percorrem o país e alguns pontos do estrangeiro (Egipto, França, Escócia, Cabo Verde…), apresenta histórias simples, rápidas e empolgantes. Os criminosos que têm o azar de se cruzarem com os jovens heróis são sempre algo ridículos, devido à consciência das autoras de como o mal pode ser atractivo. Existe também a preocupação de não incluir elementos, como a cultura pop ou a gíria adolescente, que tornem os livros datados. De facto, as histórias das aventuras mais antigas poderiam passar-se na actualidade, salvo o pormenor de nelas ninguém usar Internet nem telemóvel. Os outros projectos da dupla de escritoras incluem a colecção Viagens no Tempo e numerosas obras de síntese e divulgação da História portuguesa, essenciais para muitos leitores que vieram a especializar-se nessa área.

 

 

Maria Teresa Maia Gonzalez e Maria do Rosário Pedreira: Embora também se centre num grupo de jovens (divididos pelas faixas etárias dos 16, 12-13 e 10-11 anos) residentes na capital, a colecção O Clube das Chaves, composta por 21 volumes publicados entre 1988 e 1999, não narra propriamente aventuras, mas sim a resolução de enigmas ligados a temas como cinema, música, futebol e religião, entre outros. Para além da colaboração com Pedreira, Gonzalez produziu uma vasta obra a solo, da qual se destacam o best-seller A Lua de Joana, a colecção Profissão: Adolescente e vários livros dedicados à promoção de uma doutrina subversiva, o Cristianismo. Ao contrário de Alçada e Magalhães, Gonzalez menciona frequentemente nas suas histórias acontecimentos recentes ou músicos e outras celebridades na moda entre os adolescentes aquando da escrita de cada ficção.

 

 

Alexandre Honrado: Jornalista e autor de argumentos para BD e televisão, Honrado criou as duas aventuras do Grupo Panda, O Vizinho Misterioso e Os Caçadores de Cabeças, dotadas de um ritmo vivo e conclusões inesperadas. Noutras obras (O Maior dos Mistérios, Sentados no Silêncio, A Minha Vida Não É Nada Disto!, etc.) o escritor mostra-se um atento e por vezes irónico observador da sociedade ao falar de temas como o bullying ou as novas famílias surgidas a partir de divórcios e segundos casamentos.

 

 

Álvaro Magalhães: A série de livros Triângulo Jota, protagonizada pelos adolescentes Joel, Jorge e Joana, apresenta tramas mais fantasiosas que as de outras colecções. Personagens bizarras como Michael Jackson, velhos nazis ou membros de seitas maradas surgem no caminho dos aventureiros, mas o ambiente nunca se torna irreal, devido à presença de elementos do quotidiano, entre eles discussões sobre futebol. A paixão pelo desporto-rei inspirou, aliás, Magalhães na escrita de análises dessa temática com a qualidade de História Natural do Futebol e FC Porto, 100 Anos de História (aqui em co-autoria com Manuel Dias).

 

 

Alice Vieira: A trilogia formada por Rosa, Minha Irmã Rosa, Lote 12, 2.º Frente e Chocolate à Chuva foi apenas o início da actividade desta jornalista na literatura infanto-juvenil. Os livros de Vieira combinam histórias paralelas, revelam um trabalho hábil de construção de personagens e possuem vários níveis de leitura, oscilando entre a seriedade e a sátira descarada presente em Caderno de Agosto (1995) e Um Fio de Fumo nos Confins do Mar (1999). A escritora tem demonstrado mestria noutros géneros, em especial nas crónicas, das quais Só Duas Coisas que, Entre Tantas, Me Afligiram é a compilação mais recente.