Pelo que sei, a campanha eleitoral no concelho de Odivelas apenas teve cobertura televisiva em duas peças da RTP e do Canal Q, nas quais só foram referidos os candidatos do PS, Hugo Martins, e da coligação PSD/CDS, Fernando Seara, para indignação dos restantes partidos. António Costa veio à cidade da marmelada em 26 de Setembro, mas pouco mais fez além de tomar um café junto à estação de metro de Odivelas e apanhar com os candidatos locais do PS o comboio para o Rato, recordando a célebre corrida entre um burro e um Ferrari na Calçada de Carriche que Costa promoveu em 1993, quando se candidatou à presidência do concelho de Loures (onde Odivelas ainda se incluía). Para além disso, o município odivelense raramente é mencionado nas contas feitas aos possíveis resultados das autárquicas de 1 de Outubro.
Os outdoors espalhados pelo PS nas rotundas do concelho que governa há quase duas décadas começaram por destacar vários dos feitos obtidos pela gestão socialista nesse período, para numa segunda fase mostrarem Hugo Martins no meio de supostos odivelenses anónimos e finalmente apresentarem o rosto do autarca à direita de algumas das suas promessas eleitorais, como a utilização de 10 milhões de euros na construção e reabilitação de escolas. Por sua vez, Fernando Seara, que tem apostado sobretudo no contacto directo com os munícipes nas ruas, recorreu desde Junho ao mesmo cartaz, até lançar há poucos dias um novo outdoor garantindo mais apoio às famílias caso Seara domine a Quinta da Memória. A CDU e o Bloco de Esquerda, apoiados, respectivamente, nos slogans “Levamos Odivelas a Sério” e “Mais Bloco, Melhor Odivelas”, não foram além da exibição dos rostos dos principais candidatos à Câmara e à Assembleia Municipal. A cabeça de lista do PDR, Cristina Barradas, faz o apelo “Acorda Odivelas!”, enquanto Ana Fernandes, do PAN, surge em painéis colocados em postes que se distinguem dos restantes por se situarem a uma altura destinada a facilitar a sua leitura pelo peão e não pelo automobilista. Os velhos cartazes de colar nas paredes são utilizados apenas pela CDU, pelo PTP (os trabalhistas afixam uma folha A4 com uma imagem de golfinhos em fundo) e pelo MRPP, em busca de um “mandato popular” e de uma “ruptura com o passado!” Além destes materiais, abundam em cada uma das quatro freguesias do concelho cartazes com o candidato de cada força partidária à respectiva junta ao lado do potencial novo presidente da Câmara.
O PS parece ser o partido dotado de mais recursos, suficientes para oferecer brindes e encher as caixas de correio com brochuras dedicadas ao balanço (positivo) do mandato iniciado em 2013 e à lista dos compromissos para os próximos quatro anos. Os restantes concorrentes também distribuem panfletos com o resumo dos programas eleitorais e os nomes e fotografias dos membros das listas apresentadas aos três órgãos em disputa. De acordo com os folhetos, os programas do PS e da CDU acabam por não ser muito diferentes, enquanto Fernando Seara (defensor de uma “aliança entre avós e netos”) enuncia os problemas que vai resolver, sem explicar como, e o Bloco concentra-se num número reduzido de objectivos ligados a áreas como a habitação e a defesa dos serviços públicos. Curiosamente, o MRPP aponta uma necessidade não referida por nenhuma outra força, a remoção dos caniçais que proliferam junto de várias áreas urbanas do concelho. A grande questão urbanística para o futuro parece ser o destino a dar aos terrenos e edifícios do extinto Instituto de Odivelas após a sua entrega à Câmara, falando-se da criação de um grande espaço verde e de serviços que a CDU detalha e o PS prefere só concretizar depois de um “debate público” sobre o tema.
Julgo que a relação entre os odivelenses e a campanha eleitoral tem sido semelhante à mencionada no romance Quando o Diabo Reza, de Mário de Carvalho: as pessoas ouvem ao longe a campanha, sabem que ela existe, mas não sentem que tenha algo a ver com as suas vidas. Na falta de sondagens, torna-se difícil prever os resultados de 1 de Outubro, mas os objectivos dos diferentes partidos são simples de identificar. Os socialistas pretendem manter a maioria absoluta na Câmara e o domínio das juntas de freguesia que controlam, em especial a da sede de concelho. Ao apostar numa figura de visibilidade nacional como Fernando Seara, o PSD sobe a fasquia para o primeiro lugar (em 2013, os “laranjas” ficaram em terceiro). Teoricamente, a CDU também quer tornar Painho Ferreira presidente da CMO, mas sente-se que Loures é bem mais importante para os comunistas que Odivelas, enquanto o BE assume a meta da eleição de um vereador e os restantes partidos apenas provam que existem. O desfecho será conhecido no domingo à noite. Quanto a mim, apesar de saber pouco acerca de Hugo Martins, voltarei a confiar no PS.
P.S. A CDU mostra na sua propaganda como “votar bem”, explicando que o eleitor convencido pelo projecto comunista deve desenhar a cruz ao lado dos símbolos da foice e martelo e do girassol. Isto significa que, ao fim de quatro décadas de democracia, ainda há gente a votar no MRPP por engano.
Um dos fenómenos editoriais mais interessantes do século XXI em Portugal tem sido o retorno da biografia. O êxito comercial obtido em 2000 pelo D. Afonso Henriques de Diogo Freitas do Amaral talvez tenha alertado os editores para o valor de mercado dos livros dedicados ao género biográfico. Por outro lado, os historiadores portugueses seguiram a tendência internacional de regresso ao estudo dos indivíduos e da acção das personagens mais influentes, expressa em várias teses de mestrado e doutoramento de carácter biográfico, tal como nas colecções especializadas nos chefes de Estado ou noutras figuras políticas. Também os jornalistas têm produzido muitas biografias, focadas sobretudo em personalidades ainda vivas. Vários dos trabalhos jornalísticos deste tipo pecam pela superficialidade ou constituem meras técnicas de promoção da imagem dos biografados, mas existem igualmente obras de qualidade assinalável, com destaque para os livros do jornalista e comentador Joaquim Vieira, responsável por numerosos estudos sobre o passado português. Depois de elaborar uma biografia de Mário Soares e uma fotobiografia de Álvaro Cunhal, Joaquim Vieira lançou-se, por solicitação da editora Planeta, no desafio de escrever a história da vida de Francisco Pinto Balsemão (1937-), antigo patrão de Vieira quando este trabalhou no Expresso. O autor não só procede a essa “declaração de interesses” como se transforma brevemente em personagem da história que conta, ao recordar o episódio no qual foi obrigado a sair do cargo de director-adjunto do semanário.
A narrativa traçada por Joaquim Vieira a partir da informação recolhida em vários arquivos, na imprensa, na bibliografia e em numerosas entrevistas (Pinto Balsemão e os familiares deste recusaram prestar declarações, no caso do primeiro devido ao objectivo de escrever em breve um livro de memórias) a personalidades que, de forma assumida ou sob anonimato, falaram de uma maneira surpreendentemente franca acerca do empresário, atravessa as diferentes fases de um percurso de oito décadas. Nascido em berço de ouro, Francisco Pinto Balsemão viveu a infância e a juventude sem grande sobressaltos, antes de cumprir o serviço militar, durante o qual foi ajudante de campo do subsecretário de Estado da Aeronáutica, Kaúlza de Arriaga, confiante num jovem que apoiava sem reservas o salazarismo (apesar dos esforços posteriores de Balsemão para retocar essa parte do seu passado). No entanto, a experiência de Pinto Balsemão na direcção do Diário Popular, pertencente à sua família, terá despertado no advogado a vocação jornalística e, através do contacto permanente com a censura e da influência de repórteres hostis ao regime, feito Balsemão compreender a necessidade de alterações profundas em Portugal. A vontade de mudar levou Francisco a ingressar em 1969 na “ala liberal”, então crente nas promessas reformistas de Marcelo Caetano, e suportar ao longo dos anos seguintes a desilusão com o bloqueio do Estado Novo. Surge então o “momento decisivo” destacado por Vieira, a fundação do Expresso, o semanário inovador que resistiria às pressões quer da censura quer, após o 25 de Abril, do poder revolucionário e mudaria o jornalismo português, além de apoiar a fundação do PPD/PSD, partido onde Balsemão integrou o sector mais à esquerda.
Inesperadamente, Pinto Balsemão viu-se no final de 1980 com a responsabilidade de liderar o Governo da AD. Pelo que Joaquim Vieira e as suas fontes relatam, Balsemão presidiu a dois governos cujos membros, incluindo o primeiro-ministro, exerciam as suas funções contrariados, mas resistiram até à conclusão da revisão constitucional de 1982, essencial para desmilitarizar a democracia portuguesa, apesar da hostilidade do então Presidente da República, o general Ramalho Eanes, autor de um depoimento inédito sobre esses anos transcrito no livro de Vieira (o texto confirma que, apesar do patriotismo e honestidade que todos lhe reconhecem, Eanes é a pessoa mais aborrecida do mundo). As críticas constantes de sociais-democratas como Cavaco Silva a Balsemão, destituído do carisma e capacidade de liderança de Sá Carneiro, aliadas à difícil situação económica e à decisão de Freitas do Amaral de pôr fim à coligação com o PSD, levaram em 1983 ao afastamento do fundador do Expresso da ribalta política. Balsemão prosseguiria a partir daí a sua carreira de empresário da comunicação social, sector onde atingiu uma posição de destaque única, sobretudo após a criação em 1992 da SIC e a aquisição de numerosas publicações pelo grupo Impresa, chefiado pelo playboy morador na Quinta da Marinha. A biografia termina com a referência aos primeiros sinais de declínio da Impresa, confirmados já depois da conclusão da obra pelo anúncio do fecho ou venda iminentes das revistas do grupo.
Seguindo o princípio mencionado na epígrafe, onde Vieira compara implicitamente Balsemão ao personagem interpretado por Orson Welles em Citizen Kane, o biógrafo procura ir além da mera enumeração dos êxitos e fracassos do biografado e apresentar um retrato da personalidade deste. Assim, as impressões de quem conviveu de perto com Francisco Pinto Balsemão descrevem-no como um homem arrojado, simpático, tolerante, trabalhador e mulherengo, além de salientarem características como a sua sovinice, a dificuldade em lidar com situações de ruptura ou uma excessiva benevolência para com quem o prejudica (mas quando se zanga com alguém, é a sério). Tal como noutras biografias da sua autoria, Vieira não deixa de lado a vida privada do indivíduo em causa, abordando episódios como a disputa legal em torno de Francisco Maria, o filho de Balsemão nascido fora do casamento em 1970 e cuja paternidade o jornalista recusou assumir até ser forçado a isso pela justiça (actualmente, Francisco Maria Balsemão integra a administração da Impresa). Entre as qualidades e os defeitos do militante n.º 1 do PSD, o balanço é positivo, até porque Vieira admira a capacidade de Balsemão de “fintar o seu destino”. Ao invés de se limitar a gozar os privilégios fornecidos pelo estatuto social da sua família, o biografado “Fez, empreendeu, protagonizou, arriscou, criou, inovou, agitou, desafiou, ousou” (p. 545).
Apesar de poucos portugueses conhecerem Pinto Balsemão para lá da impressão de poder e riqueza associada ao seu nome e do boneco sempre sorridente outrora apresentado no Contra-Informação e nos cartoons de Augusto Cid, a influência dos projectos políticos e jornalísticos do actual chairman da Impresa no país justificava há muito um livro deste género. Com o tom equilibrado, nem hagiográfico nem agressivo, que lhe é habitual, Joaquim Vieira realiza em Francisco Pinto Balsemão um trabalho bastante útil para conhecer a história da política e da comunicação social em Portugal no último meio século, através da informação fornecida não só acerca do protagonista, mas também de personagens secundárias como os antigos directores do Expresso Marcelo Rebelo de Sousa e José António Saraiva.
P.S. Joaquim Vieira reproduz nesta biografia vários excertos de um dos seus livros anteriores, O Público em Privado, uma obra de 2011 sobre os primeiros 20 anos do Público encomendada e impressa pelo jornal da Sonae, mas que nunca chegou às bancas. Que razões terão levado o Público a “censurar” a sua própria história? Dado o notório interesse do trabalho em questão, seria possível que Vieira publicasse o livro noutra editora ou correria o risco de ser processado pelo diário?
Está prevista para Novembro a estreia na RTP da série 1986, criada por Nuno Markl (1971-) a partir das suas memórias de adolescência e que mostrará o quotidiano de vários jovens de Benfica durante a campanha para as primeiras eleições presidenciais vencidas por Mário Soares. O projecto apresenta um espírito semelhante ao de Caderneta de Cromos, a antiga rubrica de Markl na Rádio Comercial (a Caderneta deu origem a dois livros e outras iniciativas) baseada na evocação humorística de factos, actividades e produtos culturais ligados às décadas de 70 e 80. O sucesso da onda nostálgica, alimentado sobretudo por portugueses na faixa dos 30-40 anos de idade, fez o músico Miguel Araújo (1978-), colaborador de Markl no espectáculo Como Desenhar Mulheres, Motas e Cavalos, questionar-se no tema “Fizz Limão” (editado em 2012 no primeiro álbum a solo de Araújo, Cinco Dias e Meio) se esse fascínio pelos objectos das últimas décadas do século XX não seria um meio de fugir das dificuldades presentes (“sem fé no futuro/rumo ao passado a cantar”). Já em 2017, Miguel Araújo lançou o álbum Giesta, inspirado pelas recordações da infância do ex-Azeitonas, passada em Águas Santas, nos subúrbios do Porto. Uma das faixas do trabalho, “1987”, menciona várias referências familiares a quem vivia na Invicta e arredores no ano em que o FC Porto venceu a Taça dos Campeões Europeus.
Bom, eu (1984-) pensei que talvez pudesse produzir um breve esforço evocativo de tipo geracional semelhante aos de Markl e Araújo, mas relativo a um período mais recente, correspondente grosso modo à segunda metade da década de 90 do século passado, quando os millennials (também designados em Portugal por “geração parva” ou “geração à rasca”) chegavam à adolescência. O problema é que, tanto nessa época como agora, sou talvez a pessoa mais desfasada das modas. Estou sempre a leste daquilo que “toda a gente” vê, usa, faz, come, ouve ou conhece. Se alguém quiser ler sobre videojogos antigos ou os brindes distribuídos com o Bollycao e as batatas fritas Matutano, está no sítio errado. Mesmo que ninguém se identifique com as minhas memórias, vou tentar apontar algumas das tendências dominantes no Portugal governado por António Guterres.
Tecnologia: Na letra da canção “História Sem Moral”, integrada no álbum de Rui Veloso Lado Lunar (1995), Carlos Tê associa milionários como “um Mello” ou “um Balsemão” ao privilégio de ter “o telemóvel sempre à mão”. De facto, o telefone portátil era um luxo (pesado) de ricos até que por volta de 1995, quando o anúncio da Telecel com o pastor (“Tou xim?”) fez sucesso, iniciou-se a expansão do aparelho para o mercado de classe média. Para muitos jovens dessa fase, usar telemóvel servia para dar um ar cool e moderno e indiciar uma vida social preenchida. Por fim, à medida que se tornava mais barato e pequeno, o telemóvel acabou por se tornar um objecto tão vulgar como uma caneta (era, no entanto, apenas o início de uma longa história que passaria pelos brinquedos da Apple). Entretanto, o computador pessoal também começava a banalizar-se e documentos em Word com ilustrações do Clip Art Gallery substituíam as folhas batidas à máquina. Quanto à Internet, foi fazendo o seu caminho, ao som do ruído da ligação dial-up e a um ritmo hoje considerado lentíssimo. No final dos anos 90, era ainda um território suficientemente pequeno para ser cartografado em secções da imprensa sobre os “melhores sites da Web”. Espaços de conversação, nomeadamente o mIRC, permitiam a miúdos espalhados pelo país perguntarem “dd tc?” uns aos outros. A possibilidade de utilizadores sem conhecimentos de informática produzirem conteúdos virtuais iniciou-se com os fóruns de discussão e as home pages, preenchidas sobretudo por fotografias de família colocadas em templates de gosto duvidoso.
Televisão: Enquanto a maioria dos rapazes estava viciada na série de animação japonesa Dragon Ball Z, exibida pela SIC, eu preferia aproveitar a chegada da TV por cabo para ver os canais Panda e Cartoon Network. O sucesso mundial de Os Simpsons também não passava ao lado de Portugal. Ao nível dos programas de imagem real, as televisões privadas faziam desaparecer a uniformidade de escolhas. Na RTP, a sátira política de Contra-Informação e o brilho de Herman Enciclopédia conviviam com o humor inspirado na rádio dos anos 40 de As Lições do Tonecas. A SIC subia ao topo das audiências com as novelas da Globo e os formatos apresentados por estrelas recém-criadas como Catarina Furtado e Bárbara Guimarães. Já a TVI, após o afastamento da Igreja Católica, passou por um período vegetativo, animado apenas pela exibição nocturna das séries americanas Ficheiros Secretos e Seinfeld, até tudo mudar com a estreia em 2000 da versão portuguesa do Big Brother. A maioria dos portugueses entrou no novo milénio a ver o Zé Maria sair da casa e ser soterrado pela fama.
Música: Pois, os Nirvana e os Guns N’Roses, evocados por Miguel Araújo em “Axl Rose”, passaram-me ao lado. Seja como for, pode-se dizer que a década de 90 representou a morte (temporária) do vinil, a velhice da cassete e o período áureo do CD. Artistas portugueses como os GNR, Rui Veloso, Rio Grande, Paulo Gonzo, Santos & Pecadores ou Pedro Abrunhosa vendiam dezenas de milhares de cópias, segundo a tabela divulgada no Top+. Outro programa da RTP, o Made In Portugal de Carlos Ribeiro, dava a conhecer o universo da música pimba, baptizada a partir de um tema de Emanuel, cujo sucesso era então superior ao de um quase desconhecido Tony Carreira. O estouro das Spice Girls e dos Backstreet Boys levou ao fabrico de efémeras boys bands e girl bands lusitanas. No entanto, nada me faz sentir tão velho como poder lembrar-me de quando os Delfins eram um fenómeno de popularidade.
Cinema: Ah, a febre do Titanic. Multidões imensas dirigiram-se no final de 1997 aos cinemas para verem James Cameron a afundar o navio e vibrarem com a trágica história de amor entre Kate Winslet e Leonardo DiCaprio. Dois anos depois, os fãs de Star Wars viveram a excitação (seguida de desilusão) trazida pela estreia do Episódio I. Entretanto, o fracasso comercial do terceiro e quarto filmes do Batman fazia antever um futuro pouco auspicioso em Hollywood para as adaptações de BD. Os consumidores de cinema já se dirigiam sobretudo a multiplexes, fomentados pela multiplicação de centros comerciais, enquanto as salas clássicas iam fechando e caindo nas mãos da IURD. Quem ficava em casa podia contar com os clubes de vídeo, presentes em cada bairro e severos com os clientes que não rebobinavam as cassetes VHS (o DVD só apareceria em cena na transição de milénio) depois do visionamento dos filmes.
Futebol: Uma das primeiras memórias futebolísticas que tenho é a de Rui Costa a marcar o penálti que deu a Portugal em 1991 a segunda vitória consecutiva no Mundial de sub-20, num Estádio da Luz a abarrotar de público. Nos anos seguintes, a espera dos adeptos pelo triunfo da “Geração de Ouro” na selecção A deu poucos frutos, incluindo uma razoável ida a Inglaterra no Euro-96. Contudo, a atenção conferida ao misto nacional, aparentemente incapaz de repetir a glória de 1966, mostrava-se insignificante perante o quotidiano dos clubes. Para os portistas, com sete campeonatos em oito anos, vencer era fácil, natural e previsível, enquanto o Benfica de Manuel Damásio e Vale e Azevedo se afundava em múltiplos tiros nos pés e erros de gestão. Os meus colegas sportinguistas nunca tinham visto o SCP ser campeão antes de explodirem de alegria em Maio de 2000.
Mundo: Como foi recentemente assinalado, o acontecimento mais mediático deste período ocorreu em Paris a 31 de Agosto de 1997, desencadeando uma cobertura noticiosa de dimensões tais que fez pessoas como eu ficarem enjoadas de tanta Diana. No ano seguinte, Bill Clinton e Monica Lewinsky tornaram as palavras “sexo oral” presença habitual nos títulos dos jornais. Entre o terrorismo da ETA e conflitos eternos como o de Angola, o mundo parecia simples: os americanos mandavam em tudo. Por esse motivo, foi sobretudo para Washington que se viraram os pedidos de acção internacional a favor de Timor Lorosae (essa designação, tal como antes o termo “maubere”, viria a desaparecer pouco depois do vocabulário jornalístico) lançados pelos portugueses em Setembro de 1999, numa mobilização espontânea e surpreendente. Depois dos massacres indonésios e dos agitados primeiros anos de independência, a actual escassez de notícias sobre Timor é bom sinal.
Portugal: Depois de Cavaco Silva fazer uma paragem nas boxes (não acham oportuna esta referência nada forçada à Fórmula 1, outro fenómeno marcante dos anos 90?), o ambiente político no país, entre o “diálogo” de António Guterres e a traquinice inofensiva de Marcelo Rebelo de Sousa, viveu uma placidez hoje inimaginável. A boa situação económica e a prosperidade da classe média juntaram-se num clima de “final feliz” para o século XX português, numa atmosfera positiva simbolizada por boas notícias como o sucesso da Expo’98, o Prémio Nobel atribuído a José Saramago, a candidatura vitoriosa à organização do Euro 2004 ou o cumprimento dos critérios de entrada na moeda única (na altura, parecia uma boa notícia). O ano de 2001 marcaria o fim do optimismo sorridente, ao apanhar de surpresa os portugueses com a queda da ponte de Castelo de Paiva e o 11 de Setembro.
Durante a campanha para as eleições autárquicas, os canais de notícias têm por várias vezes apresentado em directo excertos dos discursos de Pedro Passos Coelho nos comícios do PSD. O sorriso quase eterno do líder “laranja” permite imaginar, caso o som da televisão esteja desactivado, que Passos procede a um exercício de fina ironia ou experimenta o stand-up, aproveitando para mostrar a possibilidade de criar boa comédia sem cair nos horrores do humor negro. No entanto, a reprodução da voz do antigo primeiro-ministro revela um discurso absolutamente oco. O telespectador não percebe porque haveria de escolher votar nos sociais-democratas. A “venturização” em curso revela-se uma tentativa desesperada de preencher o vazio deixado pelo fracasso da “teoria do Diabo”.
A 1 de Outubro, a verdadeira surpresa seria haver uma surpresa. Poucos acreditam que o resultado da eleição dos órgãos autárquicos altere a situação política nacional, sobretudo porque todos os partidos podem encontrar pretextos para cantar vitória. No caso do PSD, dificilmente se registará um resultado pior que o de 2013 e, caso se assista em Loures a uma vitória ou mesmo a uma derrota tangencial de André Ventura, o partido pode avançar com a criação da milícia dos Camisas Laranjas. O município de Lisboa constituirá, no entanto, a chave da interpretação dos resultados. Um eventual segundo lugar de Assunção Cristas, à frente de Teresa Leal Coelho (um nome cuja escolha para o desafio lisboeta causou acesa polémica dentro do PSD), seria humilhante para Passos e agitaria as hostes “laranjas”. Por mais improvável que esse cenário pareça, a cobertura televisiva da campanha na capital tem contribuído para ele, ao destacar Cristas, beneficiada pelo estatuto de líder partidária, como a verdadeira oponente de Fernando Medina, enquanto Leal Coelho, pouco feliz nos debates, recebe os mesmos segundos de ecrã da candidata do PAN. Se os media são decisivos para criar tendências de vitória eleitoral, também podem gerar dinâmicas imparáveis de derrota.
Um desaire autárquico do PSD poderia, assim, ditar o afastamento de Pedro Passos Coelho no próximo congresso do partido fundado por Sá Carneiro, Pinto Balsemão e Magalhães Mota. Do ponto de vista da Geringonça, o fim do “passismo” seria bom ou mau? É chegada a altura de fazer uma revelação. Amigos da direita: o pessoal da esquerda não quer ver-se livre de Passos Coelho por ter medo de que este volte a ganhar as eleições ou devido ao desejo de vingança de António Costa, como vocês pensam, mas simplesmente por cansaço (já lá vão sete anos) e vergonha alheia motivados pelo homem de Massamá. Apenas Passos não percebeu ainda que o filme por ele protagonizado já acabou há muito. A retirada do barítono seria o verdadeiro encerramento do capítulo iniciado com a assinatura do memorando da troika.
Contudo, o problema está na dificuldade em antever quem seria o sucessor de PPC. Rui Rio? Paulo Rangel? Luís Montenegro? Marco António Costa? Maria Luís Albuquerque? Hugo Soares? André Ventura (acreditem, esse dia já esteve mais longe)? Parece ser cada um pior que o outro. Por outro lado, a liderança de Passos Coelho garante à esquerda que o PSD voa baixinho nas sondagens e assegura que, entre ser Pedro Mexia e ser Maria Vieira, a direita escolherá sempre a segunda opção. A habilidade revelada por Cristas, em comparação com o desnorte de Passos, poderá atrair ao CDS parte do eleitorado do PSD e aprofundar a divisão no campo conservador. A figura de PPC faz ainda lembrar o “regime cavaquista”, origem da repulsa comum na qual se baseou o inédito acordo entre PS, PCP e BE, fortalecendo a união destes. Por último, o derrube de PPC tem sido o objectivo de todas as intervenções televisivas de Marques Mendes nos últimos anos e seria doloroso proporcionar esse triunfo ao comentador da SIC. Tudo somado, valerá a pena desejar a rápida saída de Passos Coelho da liderança social-democrata ou será melhor esperar por 2019? Na verdade, a escolha pertence aos militantes do PSD e aos colunistas do Observador. Eles lá sabem o que é melhor para eles.
A Liga de Clubes marcou várias partidas do principal campeonato português, entre elas o Sporting-FC Porto e o Marítimo-Benfica, para o dia 1 de Outubro, o mesmo em que se realizam as próximas eleições autárquicas. O embate entre “leões” e “dragões” terá início em Alvalade às 18.00, enquanto o jogo do Funchal começará pouco depois do final do clássico. Apesar do desconforto da Comissão Nacional de Eleições com a situação, semelhante à ocorrida aquando das legislativas de 2015, a Liga reafirmou não existir mais nenhum dia disponível num calendário futebolístico apertado, entre a Champions, a Liga portuguesa e o regresso à actividade das selecções nacionais.
O Público de 12 de Setembro noticia estes factos num artigo que deixa os leitores confusos, ao apontar quer Alvalade quer o Dragão como palco do SCP-FCP e localizar o “Benfica-Marítimo” nos Barreiros, além de proceder ao levantamento das escassas reacções dos partidos. Apenas o Bloco de Esquerda condenou a realização da jornada futebolística no dia do sufrágio, enquanto o presidente do PS, Carlos César, não vê onde está o problema. A informação recolhida pelo diário serve de base ao editorial do director do Público, David Dinis (DD), intitulado “O futebol entra a pés juntos sobre a democracia”. Depois de enumerar os próximos compromissos do desporto-rei, DD afirma que “os senhores do futebol fingiram nem saber” da marcação das autárquicas para 1 de Outubro e lamenta o silêncio dos políticos quanto ao assunto, antecipando uma noite televisiva e radiofónica de “emissão esquizofrénica”, dividida entre a I Liga e os resultados da votação, com a consequência de afastar ainda mais os cidadãos do acto eleitoral. Assim, para os dirigentes políticos e futebolísticos, “no dia 1 de Outubro é mais importante a frescura física de Pizzi ou de William Carvalho do que a consciência democrática dos portugueses”.
O texto de David Dinis faz pensar que, se tratarmos os eleitores como se fossem crianças, eles comportam-se realmente como crianças. A ideia de que a disputa de um clássico do futebol com apito inicial marcado para dez horas depois da abertura das mesas de voto dissuadirá a maioria do eleitorado de participar na escolha dos seus representantes nos órgãos autárquicos roça o absurdo. DD parece encarar como normal e inevitável aquilo que não devia ser. Quer dizer, se há bola, é lógico que ninguém vai ligar puto às eleições, não é? E se depois das oito joga o Benfica, obviamente as televisões vão interessar-se apenas pelo Benfica e ignorar a política. Afinal, os portugueses são burros e os media ainda mais burros. O facto de em Outubro de 2015 não ter havido “consequências de maior” dos jogos em dia eleitoral, como o Público assinala, pouco interessa para o caso. O futebol é aqui utilizado, mais uma vez, como bode expiatório e desculpa preguiçosa para a despolitização dos eleitores. Claro que há muita gente para quem o seu clube é mais importante que as autárquicas, mas, ao assumir que esse é o comportamento natural num cenário destes, DD faz aqueles que votam sentirem-se uns tansos. Para certas pessoas, os portugueses só votam em dias sem frio nem chuva, mas com nuvens e temperaturas amenas dissuasoras da ida à praia, e caso não haja futebol nem concertos da família Carreira em nenhum ponto do país. Na verdade, o melhor seria acabar com as mesas de voto e dar ao eleitor a possibilidade de votar com um simples toque no seu telemóvel, evitando assim qualquer canseira ou incómodo. Acho que expectativas tão baixas quanto ao empenhamento cívico dos cidadãos acabam por convencê-los definitivamente de que votar não é importante.
O voto obrigatório, proposto por alguns como meio de combater a abstenção, constitui a expressão política da frase “Se não comes a sopa, levas uma palmada”. O direito de votar implica o direito de não votar e parece estranho transformar uma regalia numa obrigação legal. A abstenção pode, de resto, ter múltiplas justificações. Além do estereótipo do abstencionista bronco que só olha para o seu umbigo, há quem não se identifique com nenhum partido ou candidato, quem ache que o sistema não funciona e defenda outro modelo de democracia, quem se abstenha para protestar contra a situação do país, quem considere o seu voto irrelevante para mudar o que quer que seja ou ainda quem esteja morto, apesar do seu nome permanecer nos cadernos eleitorais e engrossar artificialmente a abstenção. Obrigar os cidadãos a votar constitui, paradoxalmente, uma limitação da sua liberdade.
Os portugueses participariam mais nas eleições se sentissem que o seu voto influenciaria realmente a sociedade e acreditassem que os políticos não são todos iguais, existindo diferenças entre as consequências de votar num ou noutro partido. A divulgação, sobretudo entre os mais jovens, da história do Estado Novo, daquilo que estava associado à inexistência de eleições livres e da dureza do combate que foi necessário para assegurar o sistema de que dispomos hoje poderia igualmente contribuir para uma maior valorização da democracia. A baixa qualidade da classe política e as limitações de soberania existentes no contexto actual não estimulam, de facto, o entusiasmo dos eleitores, mas parece-me que já se desistiu há muito, e cedo demais, da mobilização daqueles que são supostamente os verdadeiros detentores do poder, ou seja, todos nós. As imagens das filas enormes de pessoas reunidas para votar nas primeiras eleições democráticas, em 1975 e 1976 (quando, imagine-se, o futebol já era praticado em Portugal), avivam a crença de que não somos tão passivos e infantis quanto nos querem fazer crer.
A seguinte lista dos melhores programas televisivos de humor portugueses que vi (talk-shows com alguns momentos humorísticos não estão incluídos), ordenada cronologicamente, não deve, como o tema indica, ser levada demasiado a sério. Outros programas de Herman José poderiam integrar o top 10, mas procurei garantir a pluralidade das escolhas. Mesmo assim, o rol apresenta-se pouco diversificado ao nível dos autores e dos canais onde as comédias foram acolhidas. Apesar do humor português estar longe de se esgotar nas produções para televisão, esta tem recorrido mais ao riso fácil e enlatado que à criatividade.
O Tal Canal(RTP, 1983-1984)
O conceito: A programação de um canal de televisão fictício apresenta vários dos géneros mais comuns, como anúncios, informação, telenovela, comentário desportivo ou programas para crianças e jovens.
A prática: Já referi noutras ocasiões o arrojo e a importância histórica de O Tal Canal, mas quero destacar a versatilidade de Herman José. Além de conceber a maioria dos programas por si protagonizados, o luso-alemão toca, canta, imita, apresenta, representa, entrevista, faz stand-up, dirige actores, escreve argumentos e constrói personagens que ganham uma vida independente do seu criador. Alguns humoristas portugueses conseguem fazer bem uma dessas actividades, mas nunca todas ao mesmo tempo. Como disse a sua colega Ana Bola, Herman é um daqueles talentos que só aparecem de cem em cem anos. Um verdadeiro Cristiano Ronaldo, diria eu se o crítico Joel Neto não tivesse já definido Herman como o Futre do humor.
Crime na Pensão Estrelinha (RTP, 1990-1991)
O conceito: Enquanto ocorre um misterioso assassinato na Pensão Estrelinha, os personagens vêem na televisão sketches e canções adaptados à actualidade do final de 1990.
A prática: Quase duas horas e meia de humor original para exibir na noite da passagem de ano parecia uma empreitada impossível de cumprir. Todavia, Herman José conseguiu apresentar com brilhantismo a sua “tese de mestrado”, apoiado em material cómico de primeira água, na realização de Fernando Ávila e no trabalho de um belo naipe de actores. O humorista reabilita aqui uma ferramenta por vezes desvalorizada da comédia, o trocadilho (um ano depois, faria o mesmo com a anedota, em Hermanias Especial Fim de Ano). O Crime é considerado por muitos fãs o auge da produção hermânica, mas a melhor prova de qualidade está em continuar ainda hoje, apesar dos aspectos mais datados, a fazer rir às gargalhadas.
Contra-Informação (RTP, 1996-2010)
O conceito: Bonecos constituindo caricaturas em 3D de políticos e outras celebridades contracenam num “telejornal” satírico.
A prática: Na adaptação portuguesa de um formato popular em países como França e Reino Unido, o Contra-Informação viveu da competência da equipa da produtora Mandala e da irreverência de um grupo pequeno e coeso de argumentistas (José de Pina, Rui Cardoso Martins e Filipe Homem Fonseca, entre outros). Ao transpor o espírito do cartoon político para o pequeno ecrã, o programa gerou efeitos curiosos, como o aparecimento de bonecos com notoriedade superior à dos respectivos modelos ou o súbito fair-play dos políticos, que passaram a gostar de manifestar o seu apreço pela sátira. Depois de cerca de 10 anos no topo, o Contra foi perdendo influência e visibilidade, acabando o fim por surgir como natural. A SIC Notícias lançou em 2013 uma nova versão do conceito, o falhado Contra Poder.
Herman Enciclopédia (RTP, 1996-1997)
O conceito: Cada um dos 26 episódios possui um tema próprio, desenvolvido através de personagens fixas e rábulas específicas.
A prática: Enquanto a SIC liderava as audiências com coisas das quais hoje ninguém se lembra, o regresso de Herman aos sketches obtinha valores modestos de share, mas, de repente, o país inteiro estava a imitar os bordões do Diácono Remédios e dos restantes personagens do programa que confirmou a qualidade e imaginação dos argumentistas das Produções Fictícias. Feito quando o dinheiro para actores, cenários, adereços e figurantes abundava na televisão portuguesa, Herman Enciclopédia marcou uma época.
Paraíso Filmes (RTP, 2001-2002)
O conceito: Uma loja de acessórios para casa de banho é também o estúdio de uma produtora que cria novas versões de clássicos do cinema americano.
A prática: Uma dupla imbatível de actores, António Feio e José Pedro Gomes, muita cinefilia e o ridículo dos “filmes” saídos da Trafaria juntaram-se numa série de culto. Não se tratou propriamente de um sucesso de massas, devido ao adiantado da hora a que a RTP exibiu Paraíso Filmes e à ausência de edição da série em DVD, por questões relacionadas com os direitos de autor das canções parodiadas. Apesar disso, nenhuma sitcom expressou tão bem o espírito “tuga” de desenrascanço e chico-espertismo.
Gato Fedorento (SIC Radical/RTP, 2004-2006)
O conceito:Sketches intemporais e dominados pelo nonsense, com personagens que raramente surgem mais de uma vez.
A prática: Apesar das experiências de Herman, o nonsense puro e duro raramente foi utilizado no humor televisivo em Portugal até os desconhecidos Miguel Góis, Tiago Dores, Ricardo Araújo Pereira e Zé Diogo Quintela se tornarem a versão lusa dos Monty Python. A penúria de meios das séries Fonseca, Meireles, Barbosa e Lopes da Silva (sobretudo das duas primeiras) era em si mesma ridícula, provando a importância do texto para o sucesso de uma rábula. Acredito que os Gato Fedorento começaram a banalizar-se quando direccionaram o foco do seu humor para o dia-a-dia noticioso.
Os Contemporâneos (RTP, 2008-2009)
O conceito: Humor inspirado na actualidade política combinado com propostas mais experimentais.
A prática: Bruno Nogueira assumiu o protagonismo de “líder” de um elenco que incluiu também nomes tão respeitáveis como os de Nuno Lopes (na pele do “Chato”), Maria Rueff, Manuel Marques, Dinarte Branco, Carla Vasconcelos, Gonçalo Waddington ou o estreante Eduardo Madeira, mas Os Contemporâneos triunfou pelo valor do colectivo por trás de um projecto aberto quer à sátira mais convencional quer às ideias mais arrojadas. As entrevistas de Nogueira a populares serviram para vencer uma dificuldade que programas do mesmo tipo como Estado de Graça e Donos Disto Tudo enfrentariam: a ligação entre o sketch A e o sketch B.
Último a Sair (RTP, 2011)
O conceito: Vários famosos (e uma gorda) participam num reality-show repartido por galas semanais de nomeações e expulsões.
A prática: Com as devidas distâncias, Último a Sair está para Bruno Nogueira como O Tal Canal para Herman José, ao caricaturar habilmente um género televisivo na moda, cujas convenções foram imitadas até mesmo na duração exagerada das galas. A disponibilidade de figuras como Roberto Leal e Luciana Abreu para gozarem com as suas imagens públicas favoreceu o brilho do produto final. No caso das nomeações, a necessidade de ultrapassar o carácter repetitivo do formato original levou os argumentistas (Nogueira, João Quadros e Frederico Pombares) a esforços prodigiosos de imaginação.
Melhor do Que Falecer (TVI, 2014)
O conceito: Um programa diário de entrevistas a personagens insólitas e rábulas baseadas nas últimas notícias.
A prática: Agora a solo, Ricardo Araújo Pereira viu-se acompanhado pelo experiente Miguel Guilherme num formato em que RAP adaptou vários textos já interpretados na sua rubrica radiofónica Mixórdia de Temáticas, além de responder depressa aos estímulos da actualidade. No dia seguinte ao da final da Liga Europa em Turim, à qual assistiu ao vivo, Pereira já estava a gravar e exibir um quadro onde reafirmava a sua fé benfiquista. Apesar do nível elevado, Melhor do Que Falecer não obteve as audiências esperadas pela TVI e acabou ao fim de apenas dois meses, num exemplo das dificuldades presentemente atravessadas pelo humor nos canais generalistas.
Very Typical (SIC Radical, 2015-2017)
O conceito: Uma série de listas, ordenadas da décima para a primeira posição, do “pior de Portugal”, dividido por temas (sexo, humor, redes sociais, homens, mulheres, etc.).
A prática: No sector do humor negro, tão do agrado de pessoas tolerantes e pouco susceptíveis como são os portugueses, Rui Sinel de Cordes destacou-se como o comediante mais eficaz. Very Typical constitui a melhor incursão televisiva de Sinel de Cordes, em parte devido ao dinamismo da montagem e realização, cujo ritmo mantém a atenção do espectador e reforça o impacto das piadas saudavelmente brutas e impiedosas do humorista. Qual Ljubomir Stanisic do humor, Sinel mostra a porcaria e desorganização dessa cozinha que é Portugal. A segunda temporada da série foi mais curta que a primeira, não por motivo de censura mas porque a imaginação para tops de Sinel e dos restantes argumentistas esgotou-se.
Nos meses de Setembro e Outubro de 2015, o programa dos Gato Fedorento Isso É Tudo Muito Bonito, Mas, então inserido no telejornal da TVI, apresentou uma série de entrevistas de Ricardo Araújo Pereira a vários políticos, convidados a propósito das legislativas iminentes. O modelo da rubrica seguiu o formato de experiências televisivas anteriores de Pereira, permitindo aos inquiridos estarem preparados para as perguntas provocatórias. O resultado foi, excepção feita à argúcia de Mariana Mortágua e ao sorriso malandro de Marcelo Rebelo de Sousa, uma sucessão monótona de diálogos que mais pareciam monólogos, aproveitados pelos candidatos para repetirem o seu discurso habitual, num registo identificado por Pereira como “tempo de antena”. Um dia, no entanto, o convidado de Isso É Tudo Muito Bonito, Mas foi Sérgio Sousa Pinto, envolvido em funções directivas no PS após apoiar a candidatura vitoriosa de António Costa à liderança do partido, e então os espectadores da TVI, habituados a políticos de plástico, viram algo de inédito: uma pessoa de carne e osso a falar de política. Sérgio Sousa Pinto (SSP) recordou os seus tempos difíceis mas estimulantes como secretário-geral da JS e, num tom espontâneo, criticou o discurso anti-partidos e demarcou-se por esse motivo do candidato presidencial António Sampaio da Nóvoa (viria a apoiar Maria de Belém). A convicção e franqueza de Sousa Pinto trouxeram à lembrança o período entre 1996 e 1998, quando as iniciativas parlamentares da JS (contrárias às posições do então primeiro-ministro António Guterres) a favor da legalização do aborto e das uniões de facto homossexuais faziam jovens como eu acreditar que a política podia valer a pena.
Depois da entrevista de RAP a SSP, os portugueses foram às urnas, o PS ficou em segundo lugar e a Geringonça nasceu. Por discordar da solução de governo encontrada, Sérgio Sousa Pinto saiu da direcção socialista e criticou António Costa. Apesar da sua atitude de ruptura o ter afastado do centro da acção política, Sousa Pinto regressa por vezes à ribalta, como aconteceu recentemente, através de uma entrevista à Visão de 24 de Agosto e, uma semana depois, da intervenção do deputado socialista na Universidade de Verão da JSD. Quer num jardim de Lisboa quer em Castelo de Vide, SSP proferiu mensagens semelhantes. Por um lado, deixou claro que se sente bem mais próximo do PSD que do BE e do PCP, situação que o leva a rejeitar o projecto de uma frente de esquerda e uma “concepção maniqueísta da política” na qual a direita é o monstro a derrotar. Por outro, fez a apologia dos partidos políticos e da democracia representativa, apresentando o Parlamento como o espelho da sociedade (para desgosto desta), considerando que iniciativas como eleições primárias tendem a enfraquecer a imagem dos partidos e discordando da criação de círculos uninominais.
Estas tomadas de posição são mais corajosas do que parecem. Afinal, tanto no PS como no PSD, os períodos no poder estimulam uma tendência habitual dos militantes para alinhar com o líder e evitar fazer ondas, enquanto as vozes dissidentes (como António Capucho, Pacheco Pereira ou Manuela Ferreira Leite entre 2011 e 2015) são alvo de manifestações de ódio por parte de figuras de segunda linha preocupadas em agradar ao chefe. Quanto ao elogio de SSP ao sistema representativo, torna-se exótico numa época em que o acto de filiação num partido é encarado por quase todos os portugueses como a entrada num mundo sujo, corrupto e alheio ao resto da sociedade. Por isso mesmo, quando, apesar da conversa sobre “coragem política”, muitos políticos esperam por ver uma passadeira vermelha à sua frente para se candidatarem a um cargo ou, nas suas afirmações públicas, recorrem à técnica cavaquista de atirar a pedra e esconder a mão, alguém como SSP faz a diferença.
O problema é que a perspectiva de Sousa Pinto adequa-se mais aos primeiros anos de democracia que à situação actual. As condições da crise e a erosão do centro não só fizeram desaparecer o PS “moderado” que, pelos vistos, os comentadores de direita adoravam, mas também empurraram o PSD para a direita, onde se encontram agora os verdadeiros radicais e revolucionários. Para estes, os socialistas só podem ser idiotas úteis ou a encarnação do Mal. No Outono de 2015, Francisco Assis propôs assumir o primeiro papel, enquanto António Costa aceitou o preço de ser descrito pela direita como o novo Lenine. Nas circunstâncias presentes, uma aliança PS-PSD deixaria livre para BE e PCP todo o campo do descontentamento contra o sistema e a União Europeia, favorecendo assim o crescimento dos partidos mais à esquerda e a consequente “pasokização” do PS. Com o impacto da austerade, bloquistas e comunistas viram-se pressionados pelas respectivas bases a aceitar um programa mínimo que garantisse a “reposição de rendimentos” e acabasse com a sensação de bloqueio vivida há dois anos. Em resumo, os astros alinharam-se para criar um cenário exactamente oposto ao de 1975. Outra coisa que mudou desde o PREC foi a relação entre os cidadãos e a política. A pouco e pouco, os partidos do regime democrático perderam capacidade atractiva e de mobilização. O número de militantes é insignificante e a maioria da população contacta com a actividade partidária apenas durante as campanhas eleitorais, e mesmo aí de forma superficial. A visão populista (com factos reais a fornecerem-lhe argumentos) dos partidos como antros de medíocres e oportunistas instalou-se e a austeridade reforçou as acusações de divórcio entre os políticos e os restantes cidadãos. Neste contexto, medidas como a realização de primárias abertas a simpatizantes poderão contribuir para renovar as organizações partidárias e melhorar a percepção pública destas.
SSP referiu-se ao politicamente correcto, na brincadeira, como “o PC” e denunciou os efeitos nocivos daquele na linguagem e no pensamento. É certo que figuras como Inês Pedrosa, Isabel Moreira e Fernanda Câncio adoptam por vezes a postura arrogante de quem se julga no “lado certo da História” e parecem ter a ilusão de erradicar o conflito e a desigualdade através da modificação da linguagem. No entanto, o discurso de ataque ao politicamente correcto tornou-se uma imagem de marca da extrema-direita e mesmo da direita liberal, que, no meio de um silêncio quase total sobre Donald Trump (o homem “politicamente incorrecto” por excelência), falam de uma nova tirania imposta pela correcção política. Isto faz tanto sentido como preocuparmo-nos com quem aponta para o céu e não com o cometa a vir na nossa direcção. Pessoalmente, acredito que o politicamente correcto é uma questão que as elites adoram discutir mas não provoca em mais de 90% dos cidadãos uma reacção que vá além de “hã?”
Sérgio Sousa Pinto continua a ser um dos melhores políticos de que o PS dispõe, apesar das suas divergências com a linha actual do partido. Se Francisco Assis, tal como Pedro Passos Coelho, apostou num colapso rápido da Geringonça, estratégia que fez Assis provavelmente perder de vez as suas hipóteses de aceder à liderança “rosa”, Sousa Pinto ainda pode retomar o rumo ascendente que a sua actividade nos anos 90 prenunciava. A participação de Sousa Pinto na Universidade de Verão “laranja” será facilmente esquecida, caso SSP não siga o exemplo de Jaime Gama e não entre para os círculos do Observador e da fundação do Pingo Doce. Gama foi à Universidade de Verão e nunca mais de lá saiu.