O debate anterior à votação final na especialidade do Orçamento de Estado para 2018 revelou-se mais animado do que se esperava. Nos três minutos de que dispôs, André Silva realçou as propostas do PAN incluídas no documento e mostrou que, apesar do reduzido “peso” (os menos de 90 kg do próprio André) do partido na Assembleia da República, a agenda ecologista da jovem organização beneficia do facto de não colidir com os interesses de nenhum dos outros partidos, excepto na questão das touradas. Por sua vez, Pedro Passos Coelho subiu à tribuna para o seu discurso de despedida, como um cantor que faz um último encore antes de sair do palco. De facto, Passos pôs toda a carne no assador ao disparar sem piedade contra a “maioria radical-comunista”, remetendo para a expressão queirosiana “Comédia! Comédia sempre!” (O Mistério da Estrada de Sintra) e obtendo dos seus fãs, naturalmente, uma ovação de pé. Quanto a Pedro Nuno Santos, interveio em nome não do PS, mas da Geringonça, ao atingir o âmago da filosofia da direita e recusar as “reformas”, esse Santo Graal da política portuguesa. O secretário de Estado só exagerou um pouco na enumeração das regiões e grupos profissionais do país beneficiados pelo OE.
No entanto, o que ficará na memória colectiva é o discurso de Mariana Mortágua, cortante como uma lâmina e cujo efeito nas expressões faciais de António Costa e dos deputados socialistas revelou uma reacção envergonhada destes. Nada impede o PS de ser contra uma maior taxação sobre as empresas de energias renováveis, mas podia tê-lo dito logo em vez de negociar um acordo com o Bloco de Esquerda e depois recuar. Um aspecto do Orçamento que passara até então despercebido ganhou assim uma dimensão inaudita. Este foi mais um dos momentos WTF com que Costa tem ultimamente deixado apoiantes e adversários pasmados. Desde a noite de 15 de Outubro que, talvez por causa do cansaço, a capacidade política do primeiro-ministro parece estar a pifar. Nesta situação específica, Costa terá de se preocupar mais com o fogo amigo que com o inimigo, já que, por muito que apreciem ver as divisões na coligação governamental, os liberais abominam a ideia de elogiar Mortágua, a qual encarna para eles, juntamente com Catarina Martins e Marisa Matias, o Mal absoluto.
Perante a falta de explicações convincentes para a “cambalhota” socialista, cresce a impressão de que, na passada sexta-feira, alguém fez um telefonema e disse: “Ou acabam já com essa m… (censurado) ou haverá consequências”. Trata-se de uma suspeita inquietante: que espécie de pressão seria forte ao ponto de fazer o PS correr o risco de deixar o Bloco furioso e passar por uma tremenda humilhação? Imune a sucessivos governos, a EDP detém um poder só equivalente ao do Correio da Manhã.
P.S. Afinal, a frase exacta terá sido "Ou acabam já com essa m... ou processamo-vos".
Os primeiros anos de actividade do Centro Democrático Social (CDS) serviram de tema a uma recente tese de doutoramento do historiador Edmundo Alves, ainda por apresentar. Conhecem-se já, no entanto, algumas informações sobre o partido criado em Julho de 1974 por um grupo de jovens que tinham passado o marcelismo com um pé dentro e outro fora do regime. Reconhecidos como corrente política informal, Diogo Freitas do Amaral, Adelino Amaro da Costa e os seus amigos foram incentivados pelo MFA a constituir um partido que agrupasse a direita (ou a “não esquerda”, incluindo também o centro), disposta a integrar-se na democracia nascente. A opção doutrinária da nova agremiação pela democracia cristã e pelo centrismo teve razões quer ideológicas quer pragmáticas, na medida em que a primeira permitia integrar o CDS na família democrata-cristã europeia e receber desta importantes apoios externos, enquanto o segundo favoreceria, na impossibilidade de disputar o primeiro lugar nas eleições, a negociação de coligações governamentais com o PS ou com o PPD/PSD, de acordo com as circunstâncias.
Após dois anos em que o CDS lutou sobretudo pelo direito a existir, que lhe era negado por boa parte da esquerda, o partido liderado por Freitas do Amaral, o único a recusar o objectivo do socialismo apontado na Constituição de 1976, obteve cerca de 16% dos votos (valor que se mantém como o mais alto alcançado pelos centristas em sufrágios aos quais concorreram sozinhos) nas primeiras eleições legislativas e tornou-se a terceira maior força na Assembleia da República. Esse estatuto permitiu-lhe chegar ao Governo em 1978, num breve acordo com o PS, e unir-se ao PSD e ao PPM na Aliança Democrática, instalada no poder entre o início de 1980 e o final de 1982, quando Freitas decidiu romper a coligação e abandonar a liderança centrista. O partido sediado no Largo do Caldas não formava um todo homogéneo, dividindo-se entre um sector próximo do centro-esquerda, ligado a Amaro da Costa, e as bases mais à direita, das quais Francisco Lucas Pires era o rosto mais visível. Logo nos primeiros anos ficaram definidas algumas características duradouras do CDS, como a sua implantação sobretudo no Norte do país, a ligação preferencial às associações patronais, a presença quase nula no movimento sindical ou o conservadorismo nas questões de costumes. A organização representava igualmente a fronteira delimitadora do leque partidário democrático, atraindo ou isolando personalidades da extrema-direita e contribuindo para a dificuldade de criar novos partidos num espaço político já ocupado por PSD e CDS.
Os anos do cavaquismo foram terríveis para o CDS, reduzido em 1987 e 1991 a apenas quatro deputados, o que lhe valeu a alcunha de “partido do táxi”. Os sucessivos desaires criaram um ambiente propício às ambições de Paulo Portas, então director de O Independente, e do antigo líder da Juventude Centrista, Manuel Monteiro, apoiado por Portas na ascensão à presidência do CDS. A dupla promoveu uma verdadeira refundação dos centristas, transformados no Partido Popular (posteriormente, Portas recuperaria a sigla original) e conduzidos numa via populista, eurocéptica e nacionalista, oposta ao centrismo dos fundadores, vários dos quais se aproximariam mais tarde do PS. Depressa o PP se revelou demasiado pequeno para Monteiro e Portas coexistirem e o segundo arrebatou em 1998 a liderança, que desempenharia continuamente, à excepção do interregno de 2005-2007, até ao ano de 2016. Durante esse longo período, Portas reclamou para o CDS-PP inúmeras causas e públicos-alvo, alterados conforme as tendências do mercado eleitoral, numa versatilidade apenas possível a um actor nato. Assim, o CDS foi sucessivamente o partido das pescas, o partido da lavoura, o partido dos retornados, o partido dos ex-combatentes, o partido dos reformados, o partido dos empresários, o partido dos contribuintes, o partido anti-imigração, o partido da segurança, o partido pró-Bruxelas, o partido anti-aborto, o partido contra o “subsídio à preguiça” do RSI… Através deste frenesim mediático e do seu enorme talento político, Paulo Portas elevou a votação da “bola ao centro” (antes azul e amarelo, o símbolo do CDS apresentava agora as cores azul e branca, uma mudança natural no partido portista) para os dois dígitos e trouxe os democratas-cristãos para os governos presididos por Durão Barroso, Santana Lopes e Pedro Passos Coelho.
Apesar da evolução positiva, a presença no “Governo da Troika” não deixou o CDS incólume. Se os membros da Geringonça são actualmente acusados de dificuldades de entendimento provocadas por numerosas divergências, a relação entre o PSD e o CDS parecia demasiado fácil, à medida que as linhas vermelhas se tornavam azuis e a irrevogabilidade era revogada. A viragem à direita do PSD e a escassa capacidade reivindicativa do CDS contribuíram para tornar os dois partidos praticamente indistinguíveis, excepto no facto dos militantes centristas irem mais vezes à missa que os sociais-democratas. Os colunistas de direita da imprensa e da Internet raramente diferenciam PSD e CDS, chegando alguns a sugerir a fusão das duas entidades num único partido. Da mesma forma, a acusação dirigida ao Bloco de Esquerda de constituir um grupo minoritário sem implantação no país real oculta o facto de, fora do distrito de Aveiro, ser mais fácil encontrar um adepto do Belenenses que um militante ou simpatizante do CDS. A exiguidade do universo centrista contribui para que, numa tendência fomentada por Portas e prosseguida por Assunção Cristas, a actividade do partido se foque quase exclusivamente na figura do líder e nas aparições mediáticas deste.
Após a retirada de cena (digamos assim para facilitar) de Paulo Portas, a sua sucessora demorou algum tempo a criar uma marca própria e sair da sombra do fundador do PP. No entanto, a velha táctica de falar diariamente aos microfones sobre tudo e sobre nada, o afastamento de um PSD desnorteado e a habilidade com que Cristas apresentou e geriu a sua candidatura autárquica em Lisboa, compensada por resultados inéditos, construíram a imagem de Assunção como “líder” da oposição ao Governo e guia da estratégia do campo conservador. No entanto, o êxito futuro do CDS dependerá da capacidade deste de clarificar quais são as suas “clientelas”, ou seja, os grupos sociais cujos interesses tende a representar, para lá do cliché do partido dos queques. Os centristas são a voz dos pequenos agricultores? Dos polícias e militares? Do ensino, saúde e segurança social privados? Dos donos das empresas exportadoras? Dos jovens economistas saídos da Nova e da Católica? “Boss AC” e os seus animais de estimação, Telmo Correia e Nuno Magalhães, ganhariam em esclarecer os eleitores quanto aos princípios e objectivos do Centro Democrático Social para lá da espuma da actualidade. Só assim o partido escapará a um destino de subalternidade no interior da direita portuguesa.
Além de ser publisher e colunista do Observador, José Manuel Fernandes colabora com a RTP3 na função de comentador político, sendo frequentemente chamado ao programa 360, apresentado por Ana Lourenço, para analisar temas da actualidade nacional. Nas suas prestações televisivas, geralmente a debater com outros comentadores do canal público, como Pedro Adão e Silva ou António José Teixeira, Fernandes deixa uma impressão positiva, na medida em que parece simpático, tolerante, sorridente, ponderado e, se não objectivo, pelo menos desapaixonado nos seus comentários. No entanto, quando “Zé Manel” chega à Rua Luz Soriano, entra na redacção do Observador e liga a câmara ou põe as mãos no teclado, transforma-se de repente num homem sectário, agressivo e ressabiado, adoptando um tom zangado e arrogante, por vezes a roçar a má educação. Não estou a exagerar: se compararem a linguagem oral e corporal utilizada por Fernandes na RTP3 e nos vídeos publicados no jornal online e na sua página do Facebook, verão que as diferenças são de estarrecer. José Manuel Fernandes constitui uma espécie de Dr. Jekyll e Mr. Hyde do comentário político português.
Na verdade, os locais de produção de alguns jornais possuem uma atmosfera própria cujos efeitos influenciam o espírito de quem lá trabalha. Imaginemos que o leitor se dirige às instalações do Observador no Bairro Alto. Mesmo que consiga passar pelo porteiro encarregue de barrar a entrada de qualquer apoiante da Geringonça, ao chegar à recepção é atingido por um raio semelhante ao do filme Capitão Falcão, mas de sentido inverso, fazendo-o odiar os comunas, querer privatizar propriedade pública e ficar apavorado com a ameaça do politicamente correcto. Caso opte por visitar a redacção do Diário de Notícias, transforma-se rapidamente numa pessoa quadrada, enfadonha e sem imaginação. Se viajar para o Porto e entrar na sede do Jornal de Notícias, começa logo, mesmo que seja um benfiquista ferrenho, a cantar: “Pinto da Costa, olé, Pinto da Costa, olé…” Já no edifício do grupo Cofina, entre os jornalistas da Sábado e do Correio da Manhã, esquece em dois minutos todos os princípios morais que lhe ensinaram, passa a considerar-se muita bom e fala com desprezo dos outros periódicos, vendidos ao sistema e cheios de amiguinhos do Sócrates. Por fim, se fizer um estágio não remunerado na redacção do i e do Sol, compreende logo que pode inventar à vontade ou publicar os maiores disparates que lhe passem pela cabeça, porque ninguém vai ler.
O “jornalismo opinativo” possui a vantagem de deixar clara a orientação de quem o pratica e assim evitar uma suposta imparcialidade usada para esconder todo o tipo de “truques”. Contudo, a mistura crescente entre opinião e informação na imprensa portuguesa tem efeitos perversos, ao conduzir a uma situação semelhante à da segunda metade da década de 70, quando cada jornal apoiava um partido, utilizava uma linguagem ideologicamente marcada, noticiava apenas os factos que lhe interessavam, escolhia os seus “bons” e “maus” na cena política e gastava boa parte do papel a atacar outros jornais. Os leitores já não estão disponíveis para esse jornalismo engagé e reagem mal às tentativas de manipulação, distanciando-se e agravando a situação económica dos media. Apesar da plena objectividade ser impossível de atingir, os jornalistas deveriam buscar o rigor e a independência e deixar as conclusões para o público. A sério, a gente chega lá sozinha, acreditem.
P.S. O semanário Voz do Povo, apoiante da UDP e onde José Manuel Fernandes trabalhou nos seus tempos maoístas, tinha em 1977 uma secção chamada “Observador”, dedicada ao registo dos acontecimentos dos diferentes dias da semana anterior a cada edição. Há coincidências curiosas.
Na transição do milénio, Margarida Rebelo Pinto agitou as livrarias ao tornar-se a escritora portuguesa de maior sucesso comercial, fruto do êxito de romances como Sei Lá e Não Há Coincidências. Protagonista da chamada “literatura light”, Rebelo Pinto perderia destaque a partir de 2003, após a publicação do primeiro romance de Miguel Sousa Tavares, Equador, um fenómeno de popularidade cujas vendas atingiram níveis hoje impensáveis. A contracção do mercado livreiro português associada à crise económica arrefeceu a euforia dos editores, mas não anulou o percurso ascendente seguido desde meados da década passada por outro autor ligado aos media, o jornalista José Rodrigues dos Santos (JRS). Além de ser o principal rosto do Telejornal da RTP1 no último quarto de século, Rodrigues dos Santos publicou até ao momento 18 romances, editados em Portugal pela Gradiva e traduzidos em vários países. Enquanto crescem as dúvidas e os boatos acerca do segredo que permite a um escritor não profissional redigir livros com centenas de páginas ao ritmo a que JRS os lança (em Setembro e Outubro deste ano, “Zé” publicou, respectivamente, O Reino do Meio e Sinal de Vida), o autor passou a constituir uma verdadeira marca, classificada como “Escritor de Confiança” num inquérito das Selecções do Reader’s Digest. Os produtos de Santos dividem-se habitualmente em romances históricos e thrillers centrados na vida de Tomás Noronha, o personagem cujas aventuras traçam um retrato do trabalho dos historiadores tão fiel como a reprodução do quotidiano habitual de um arqueólogo feita por Steven Spielberg nos filmes do Indiana Jones.
Sempre que folheava um livro de JRS, encontrava algo que me dissuadia de o comprar, fosse a capa, o tema, o preço, o título, a estrutura ou o tamanho, mas desta vez arrisquei ler Sinal de Vida, a narrativa onde Tomás Noronha participa no primeiro contacto estabelecido no espaço entre a humanidade e uma civilização extraterrestre. Em torno do evento, surgem questões científicas e filosóficas como a necessidade de saber se o Universo evolui por acaso ou de acordo com uma determinada ordem programada e, caso exista essa intencionalidade, se há um Deus a controlá-la. O objectivo de Rodrigues dos Santos reside em combinar a divulgação da informação obtida pela ciência com o entretenimento, permitindo ao leitor aprender e divertir-se ao mesmo tempo. De facto, para lá da pertinência dos elementos fornecidos, Sinal de Vida consegue entreter através da habilidade com que JRS maneja o suspense e a surpresa, em particular no último terço do livro, quando Noronha e os restantes astronautas já se encontram fora da Terra. O estilo encontra-se subordinado à história, numa prosa composta sobretudo por diálogos, acompanhados apenas pelas descrições indispensáveis. Cada uma das mais de 600 páginas do livro grita: “Adaptem-me ao cinema!”, apesar de parecer difícil replicar no grande ecrã o truque de encerrar todos os 110 capítulos com uma frase bombástica, de maneira a atiçar o interesse de quem lê.
O problema está no facto do modelo adoptado por José Rodrigues dos Santos nas suas ficções obrigar à inclusão da informação verídica em falas intermináveis repletas de dados e referências científicas, numa oralidade no mínimo forçada. O enredo e os personagens parecem meros pretextos para debitar factos, até porque as criaturas saídas da imaginação de JRS são insuficientemente desenvolvidas. Para quem chega agora ao universo de Tomás Noronha, como eu, torna-se difícil perceber porque é que aquele tipo é o herói, pelo menos até o criptanalista salvar o mundo no final. Quanto às restantes figuras, demonstram uma falta de consistência agravada pela dificuldade do escritor em exprimir sentimentos. Por exemplo, depois da astronauta húngara Bozóki Emese (o nome foi escolhido num concurso promovido pela editora de JRS na Hungria) dizer “Estou a morrer, Tomás” (p. 328), os dois envolvem-se numa discussão científica sobre as características biológicas da vida que se prolonga por 56 páginas. Como afirma Bruno Vieira Amaral numa crítica a outro romance de “Zé”, publicada na Ler de Janeiro de 2013, “Em nenhum momento Rodrigues dos Santos consegue libertar os seus personagens e deixar que se aproximem dos leitores”. Por sorte, não existe em Sinal de Vida nenhuma das cenas de sexo entre Noronha e as suas girls pelas quais a escrita de JRS se tornou tristemente célebre.
Nem toda a produção literária necessita de ser profunda ou aspirar à perenidade. Para quem procura apenas uma história simples e aventurosa, Sinal de Vida revela-se satisfatório, embora exija alguma paciência do leitor até os personagens passarem das palavras à acção. No entanto, se vários autores são acusados de umbiguismo e de adoptarem uma atitude césar-monteirista para com o público, José Rodrigues dos Santos parece demasiado preocupado com o que os consumidores vão pensar e assemelha-se mais a um empresário que a um artista. A falta de um toque pessoal e de maior investimento no lado estético da obra contribui para a permanente impressão de superficialidade. A prosa de JRS alimenta mas não é saborosa, à semelhança dos hambúrgueres consumidos em Houston pelos astronautas do livro.
P.S. A revista Time Out goza fielmente com José Rodrigues dos Santos sempre que um livro deste chega às lojas, apresentando aqui uma compilação de críticas negativas (e divertidas) às obras do escritor.
A propósito da saída de Pedro Passos Coelho da liderança do PSD e da aprovação do terceiro Orçamento de Estado da Geringonça, marcado novamente pela batotice de apresentar medidas que deixem as pessoas contentes, espalhou-se na direita o saudosismo da revolução perdida. Desprovidos quer do líder ousado e inimigo dos interesses instalados quer de um ambiente político e económico propício à abstinência e frugalidade, os sectores liberais vêem esgotar-se a oportunidade de transformar o país e, perante as eleições do PSD, limitam-se a encarar Santana Lopes como o mal menor, talvez apto a evitar a guinada no sentido de um Bloco Central de inspiração marcelista. Tal como após o 25 de Novembro, José Manuel Fernandes e os seus correligionários recolhem a casa sonhando com aquilo que poderia ter acontecido se não fossem os malditos reaccionários.
Ao que parece, a direita a sério (não estamos a falar, obviamente, de velharias como António Capucho, Pacheco Pereira ou Manuela Ferreira Leite, incapazes de compreender o verdadeiro pensamento de Sá Carneiro) apenas pode chegar ao poder num cenário de catástrofe nacional, cujas condições excepcionais lhe possibilitem aplicar o seu programa de transformação social e de criação de um país livre do bigode de Mário Nogueira. O discurso da vinda do Diabo, ou do colapso que João César das Neves considerava iminente no Verão de 2016, não tinha na sua base o receio mas sim a esperança. Ao receber a derrocada económica como punição das insanas reversões e da herética devolução de rendimentos, Portugal compreenderia que nunca deveria ter irado os deuses ao suspender os sacrifícios humanos. O descambar das finanças públicas faria todos compreenderem que a austeridade não era um erro, como dizem agora os esquerdalhos do FMI, mas sim a via para uma vida pura e virtuosa, devendo ser aceite sem qualquer tipo de protestos. Poupar mais, gastar menos e trabalhar arduamente (fora da função pública, claro, pois não haveria dinheiro para sustentar parasitas) seriam os princípios fundamentais do Homem Novo lusitano, enquanto as pessoas desprovidas do necessário espírito empreendedor teriam sempre uma sopinha disponível na igreja mais próxima. Mantidos sob a ameaça permanente de uma desgraça ainda pior, os cidadãos deixariam de viver à sombra do Estado e os serviços deste poderiam ser vendidos à dinâmica iniciativa privada. Como nada disso aconteceu, a plebe ignara e ingrata voltou a ceder às tentações do materialismo, sem compreender que o dinheiro não traz felicidade a quem não o pode enviar para offshores.
Obviamente, os liberais têm todo o direito a defender a sua visão do mundo, e, ao contrário do que alguns comentadores de direita afirmam em tom desdenhoso, não me parece que os portugueses sejam esquerdistas ferrenhos demasiado infantis para compreender as vantagens do lema “menos Estado, melhor Estado”. A questão é que, embora todos queiram uma menor carga fiscal, pouca gente se sente oprimida pelo Estado, a não ser quando primeiros-ministros como Durão Barroso e Pedro Passos Coelho contrariam as suas promessas eleitorais e aumentam os impostos. Num país desigual e de “elevador social” tantas vezes avariado, não se encontra difundida a ideia de que todos podem enriquecer através do trabalho e, sabe-se lá porquê, a riqueza dos mais abonados é vista como resultado de herança, marosca ou exploração. Para as classes médias, o risco de perder o pouco que se tem em nome de um suposto futuro radioso, seja a utopia de esquerda ou de direita, constitui um perigo demasiado grande para motivar aventuras. Neste contexto, a “revolução” liberal surge de facto como uma ameaça aos interesses instalados: os interesses de pelo menos dois terços dos portugueses. Assim, os liberais do presente vêem-se, tal como os comunistas dos anos 70, bloqueados pela impossibilidade de moldar o povo à medida dos seus desejos.
P.S. Comparar os dois períodos pós-revolucionários da democracia portuguesa, ou seja, os primeiros anos posteriores a 1975 e a 2015, não é fácil devido às numerosas diferenças entre uma e outra fase. No entanto, o segundo lugar alcançado por Otelo Saraiva de Carvalho nas presidenciais de 1976, obtido graças à adesão de parte do eleitorado do PCP ao candidato apoiado pela extrema-esquerda e que fez esta viver uma breve euforia ao comemorar aquele que era na verdade o início do fim, pode revelar-se bastante semelhante à recente proeza de Assunção Cristas nas autárquicas de Lisboa.