“Os Portugueses preferem o propagandeado paraíso de esquerda, mesmo que ele venha a transformar-se em Inferno. Quanto tal acontecer, desejarão o regresso da direita ao poder para aliviar o Inferno criado.”
Isaías Afonso, O Diabo, 18-07-17
“ (António Costa) tirou o máximo partido da transferência das responsabilidades do PS para o PSD a respeito da bancarrota nacional deixada em herança pelo governo socialista de Sócrates – uma falsidade que, de tão repetida e proclamada, facilmente foi absorvida pelas cabeças pouco exigentes e sempre desmemoriadas dos portugueses. (…) o pessoal é pouco sensível a tudo, ou quase tudo o que não seja o estado da sua algibeira. É assim em toda a parte.”
Maria de Fátima Bonifácio, Observador, 02-10-17
“ (…) é um fenómeno estrutural ao qual vale a pena ter atenção: o país é socialista. Somos um país que adora o Estado e os carinhos do Estado, primeiro ponto. Segundo ponto: a elite intelectual ainda é mais socialista que o país. (…) Somos muito socialistas e, pior, paternalistas. Adoramos ter o Estado a tomar conta de nós. Como não temos alternativa, porque só temos este Estado, ainda queremos mais, mais mecanismos para o Estado nos enganar mais vezes.”
João César das Neves, entrevista ao Sapo 24, 16-11-17
“O problema é que um país envelhecido, dependente e temeroso como Portugal é um país que receia mudanças, é avesso ao risco e onde boa parte da população mais depressa tem inveja de quem triunfa do que está disposta a tentar a sua sorte.”
José Manuel Fernandes, Observador, 06-12-17
“É certo que é um povo fácil de levar. É um povo que não gosta que lhe digam o que deve fazer; disso, não gostamos. Agora, com um elogio gratuito acompanhado de umas migalhas, e a boa e velha palmadinha nas costas, com isso, a gente já lá vai. Os alemães aprenderam e ficaram espertos à portuguesa. Somos tão felizes.”
André Abrantes Amaral, i, 14-12-17
“O povo português despreza o empresário de sucesso que construiu a pulso a sua empresa, mas adora viajar no autocarro da junta de freguesia para ir à festa partidária, onde vai aplaudir o político que nunca ganhou um único euro fora da máquina do Estado. O primeiro é um “explorador” que enriquece à custa do povo, o segundo é um tipo de sorriso simpático que ainda oferece umas sandes de porco no espeto e umas taças de vinho manhoso.”
João Gomes de Almeida, i, 15-12-17
“Nove em dez portugueses (estimativa baixa) dedicam os respectivos expedientes, e horas extra, a catar o patrocínio dos portugueses em redor. Uns vão directamente à fonte e alistam-se na política e adjacências. Outros preferem simular independência empresarial. Os terceiros, nem de propósito, ficam-se pelo “terceiro sector”, o da “solidariedade social” e de Paula Brito van der Costa. Descontadas as excepções da praxe, todos querem o mesmo. Em geral, conseguem-no. Em geral, até ao dia em que o golpe se torna público, um raríssimo momento em que os portugueses respeitam o que é privado.”
Uma das “pequenas histórias da minha vida” contadas por Diogo Freitas do Amaral em Ao Correr da Memória (Bertrand, 2003) refere uma conversa entre o autor e Ramalho Eanes ocorrida em meados de 1977 e na qual o então Presidente da República, insatisfeito com o comportamento das forças partidárias, perguntou a Freitas se não conhecia “nenhuma forma de democracia sem partidos”. Irónico, o primeiro líder do CDS apontou dois exemplos, a “democracia popular” comunista e a “democracia orgânica” salazarista, levando um desiludido Eanes a lamentar: “Toda a gente me diz que não pode haver democracia sem partidos. É pena!” (p. 113)
Além de ser elucidativo da maneira como o agora reverenciado general exerceu a presidência, este diálogo traduz a visão de muitos portugueses acerca dos partidos políticos. O polémico processo de aprovação na Assembleia da República da nova lei relativa ao financiamento partidário e o esforço pós-natalício dos partidos para se demarcarem do diploma aprovado indicam a clara noção por parte das forças presentes em S. Bento de que medidas benéficas para estas são eleitoralmente suicidas, devido ao sentimento anti-partidário generalizado. Na verdade, trata-se de um fenómeno ligado a outras situações recentes, como a abundância de amigos e familiares dentro do Governo ou a indiferença total pela campanha interna do PSD, cujos candidatos à liderança têm falado apenas para o universo de 70 mil militantes (agora) com quotas em dia. Para o cidadão comum, os partidos portugueses são entidades perversas formadas por seres opressores vindos de outro planeta. Pequena e fechada, a elite política nacional parece estar separada por um fosso da população que nela vota (ou não). Esta situação não é exclusiva de Portugal, integrando-se num cenário global de crise das democracias, mas o caso luso possui algumas particularidades identificáveis.
O 25 de Abril levou à criação ou rápida expansão dos principais partidos, inserida num boom do associativismo através do qual se multiplicaram as instituições políticas, culturais, sindicais e desportivas, muitas delas baseadas em carências imediatas das populações, que se reuniam para solucionar problemas comuns. Nas décadas seguintes, para lá da crescente tendência individualista na forma de viver em sociedade, todos nos tornámos mais cínicos e desconfiados. A ideia de alguém decidir entrar para um partido por se identificar com uma ideologia política e pretender contribuir voluntariamente para o triunfo desses princípios motiva gargalhadas, num tempo em que as claques de futebol detêm maior prestígio que os partidos. Estes têm contribuído muito para o seu próprio declínio, não só devido aos casos de corrupção mas também ao optarem por fechar-se em si mesmos, sem interesse de maior pelos eleitores a não ser na hora da votação. No caso da juventude, o falhanço partidário na mobilização revelou-se clamoroso, à medida que as “jotas” se tornaram meras academias de formação de políticos profissionais, sem implantação real nas escolas ou nos locais de trabalho. Na prática, as forças partidárias já desistiram dos jovens, muitos deles abstencionistas, para concentrarem os esforços de atracção nos idosos, um mercado bem mais vasto e apetecível. De uma forma geral, os partidos não parecem interessados em atrair mais militantes ou simpatizantes e convertem-se em redutos de determinados grupos profissionais (gestores, advogados, funcionários públicos, etc.) ou círculos de pessoas influentes a nível local ou nacional.
No entanto, se os partidos se mostram pouco sedutores, a verdade é que podíamos estar bem mais disponíveis para a sedução. Não existe grande incentivo à participação política quando qualquer ocupante de um cargo público é visto como um parasita sustentado pelo povo e o acto de aderir a um partido se torna sinónimo de querer um tacho. As generalizações e o “são todos iguais” contribuem para que se tornem mesmo todos iguais, já que poucos cidadãos se manifestam disponíveis para ir além das bocas no café ou nas redes sociais e mudar realmente alguma coisa. A comunicação social ajuda, ao concentrar o noticiário naquilo que meia dúzia de pessoas diz ou faz, a solidificar a ideia da política como uma realidade distante e sem ligação ao quotidiano. Cada vez com maior frequência, a imprensa renuncia ao seu papel de fiscalizadora para se tornar mercadora da indignação e basear manchetes não em quaisquer factos concretos, mas na insinuação de que “eles” estão todos feitos uns com os outros. Se tanta gente o diz, como não acreditar?
Os partidos representam correntes de opinião organizadas essenciais numa democracia representativa. São imperfeitos, como lamentava Ramalho Eanes? Claro, são formados por pessoas, não por anjos nem por demónios. Atitudes como uma maior transparência nas decisões governativas, eleições primárias abertas à participação de simpatizantes, referendos internos nos partidos ou um esforço real de mobilização política em toda a sociedade poderão contribuir para tapar o fosso entre “eles” e “nós”, até que ambos os grupos sejam um só. Não existem soluções mágicas, mas, caso este ambiente de desconfiança geral prossiga e continue a agravar-se, tornar-se-á inevitável que alguém venha resolver de vez a questão do financiamento dos partidos, através da extinção destes.
P.S. Quanto à origem dos rendimentos das forças partidárias, deve manter-se a actual combinação de financiamento público e privado. Um apoio exclusivamente público aos partidos seria demasiado oneroso para o Estado, do qual aqueles ficariam dependentes, mas um sistema do tipo americano, baseado nos contributos dos particulares, sobretudo os de maiores recursos, produz efeitos nocivos. Basta lembrar que Donald Trump usou como argumento o facto de (supostamente) ser ele próprio a financiar a sua campanha presidencial e evitar assim a promiscuidade com os lobbies em que os democratas tinham caído.
É certo que a presença da “rainha da pop” na antiga Olisipo representa um trunfo publicitário importante para promover internacionalmente o turismo em Portugal, mas a dedicação com que os nossos jornalistas acompanham aquilo que Madonna partilha no Instagram e a odisseia da cantora para encontrar uma casa onde morar aproxima-se da parolice e do provincianismo. A Visão de 21 de Dezembro pergunta “quem não fica contente” em Portugal ao ver Madonna a fazer o que faz no extremo ocidental europeu. Pela minha parte, não fico contente nem triste. A obsessão dos media portugueses por aquilo que dizem de nós “lá fora” indicia uma auto-estima muito baixa e uma permanente sensação de irrelevância que fazem do simples facto de alguém reparar que existimos uma surpresa positiva e transformam os elogios vindos do estrangeiro em motivo para orgulho eterno da nação lusa.
Impasse do ano: Catalunha
Questionar os portugueses acerca da sua posição quanto à eventual independência da Catalunha faz tanto sentido como perguntar aos catalães se são a favor ou contra a independência de Portugal. A escolha não é nossa e apenas podemos assistir ao avanço dos separatistas, brevemente entusiasmados com uma precipitada declaração unilateral de independência, e à resposta musculada de Madrid, num braço de ferro que a votação de 21 de Dezembro prolongou, ao realçar as divisões profundas na sociedade catalã. Uma perspectiva possível sobre os acontecimentos centra-se na participação empenhada dos catalães no processo, entre o referendo organizado à margem do Estado espanhol, quando muitas pessoas foram agredidas por quererem votar, e uma taxa de abstenção de apenas 18% na eleição do novo Parlamento regional. Apesar da excepcionalidade da situação vivida na Catalunha, o contraste entre o interesse dos habitantes desta pelo seu destino colectivo e o cinismo e a indiferença perante a política habituais na costa ocidental da Península Ibérica é demasiado notório para não dar que pensar.
Marcelice do ano: Discurso de 17 de Outubro
Ao contrário do que por vezes se diz, os efeitos políticos das duas vagas de incêndios assassinos registadas em Junho e Outubro foram diferentes. Após Pedrógão Grande, quem ficou queimado (salvo seja) foi Pedro Passos Coelho, ao parecer ansioso por encontrar mais mortos, enquanto Marcelo Rebelo de Sousa foi fulminado pela direita devido à sua afirmação de que tinha sido feito o possível. As ignições de 15 de Outubro foram bem mais devastadoras para a imagem da Geringonça, quer pela repetição da tragédia quer pela desastrosa resposta política dada por governantes pródigos em frases infelizes ou inconvenientes. Neste contexto, o discurso feito pelo Presidente da República em Oliveira do Hospital acalmou a crescente indignação do país, influenciou a demissão de Constança Urbano de Sousa (lamento, Daniel Oliveira, mas é assim que vai ficar escrito nos livros de História) e, como foi visível nos editoriais da imprensa dos dias seguintes, acendeu nos corações de PSD e CDS a esperança de que o “casamento” até aí harmonioso de Marcelo e António Costa tinha chegado ao fim. A partir daí, o ex-director do Expresso confortou as vítimas dos incêndios e pressionou o Governo através de sugestões semelhantes a ordens dadas por um pai a um filho mal comportado. Quanto às motivações marcelistas, creio ser perfeitamente possível que a preocupação cristã e genuína do Presidente com o sofrimento das populações conviva com a plena consciência por parte de Marcelo do efeito político de tudo o que faz à frente das câmaras de televisão. A popularidade esmagadora e a omnipresença mediática de Rebelo de Sousa arriscam-se a ter dois efeitos perversos: orientar o regime num sentido mais presidencialista e resumir a política a uma competição onde ganha quem for mais “bom” e sensível.
Programa de televisão do ano:História a História – África (RTP2)
Com as suas camisas e suspensórios coloridos, Fernando Rosas percorre os antigos territórios coloniais portugueses em África para ilustrar através de paisagens e vestígios do passado (como as ruínas de Nambuangongo) a sua visão do “ciclo africano do Império”, delimitado entre finais do século XIX e a descolonização realizada em 1974-1975. Além do modelo televisivo de divulgação historiográfica estabelecido por José Hermano Saraiva, aqui adaptado a temas e linguagens bem diferentes, o programa da RTP2 apresenta uma combinação eficaz da exposição oral com mapas, gráficos e imagens de arquivo, sem deixar de identificar os autores das investigações académicas na base da síntese elaborada por Rosas. Aspectos como os massacres, o trabalho forçado, a opressão quotidiana, a discriminação racial e a hipocrisia do discurso oficial do Estado Novo sobre o “Ultramar” são desenvolvidos de forma crua e objectiva, trazendo à superfície uma violência cuja memória Portugal tentou não propriamente apagar, mas antes meter numa caixa, escondê-la num sótão escuro e rezar para que ninguém a viesse abrir. Apesar da sua qualidade e carácter de verdadeiro serviço público, História a História – África tem gerado escassas reacções, para lá dos insultos dirigidos por cronistas de O Diabo ao incómodo Rosas.
Surpresa do ano: João Lourenço
Ao longo de 38 anos no poder, José Eduardo dos Santos converteu Angola numa colónia da sua família e da restrita elite a ela associada. Forçado pela doença a sair da presidência, “Zédu” confiou a sua sucessão a João Lourenço, eleito sem problemas de maior (apesar de uma descida da votação no MPLA) e cuja missão seria, na opinião dos analistas, mudar alguma coisa para deixar tudo na mesma na ex-colónia portuguesa. No entanto, o terceiro presidente de Angola empenhou-se no combate à corrupção, exigindo o repatriamento dos capitais saídos do país, e promoveu uma autêntica purga no aparelho estatal. Quando a todo-poderosa Isabel dos Santos foi afastada da Sonangol e os outros filhos de José Eduardo perderam as suas fontes de rendimento no Estado, compreenderam-se, no meio da estupefacção geral (que atingiu, aparentemente, o próprio “Zédu”, empenhado agora em recorrer à sua influência no MPLA para sabotar Lourenço), as mudanças decisivas a decorrer em Luanda. Existe a hipótese de se verificar apenas uma dança de cadeiras guiada pelo objectivo de colocar nos lugares-chave pessoas fiéis ao novo presidente, sem alterar o essencial do sistema, mas as impressões positivas de opositores do regime angolano como Luaty Beirão e José Eduardo Agualusa obrigam a conceder a João Lourenço o benefício da dúvida.
Fosse por estar à espera do colapso que João César das Neves prometeu e das consequentes legislativas antecipadas, fosse por não ter quase ninguém no partido disposto a chegar-se à frente, Pedro Passos Coelho preparou mal as eleições autárquicas de 1 de Outubro. Os resultados “laranjas” foram humilhantes, sobretudo no Porto e em Lisboa, concelho no qual a habilidade de Assunção Cristas contrastou com o desnorte total da candidatura social-democrata. Nem o promissor André Ventura, candidato ideal do PSD do século XXI, compensou em Loures o carinho recebido do líder. O afastamento de Passos (que talvez sonhe com um regresso à Portas lá para 2019) poderia levar o PSD a uma recuperação no ânimo e nas sondagens durante o próximo ano, mas o perfeito vazio da campanha interna em curso torna esse cenário muito duvidoso.
Brincadeira do ano: Mário Centeno na presidência do Eurogrupo
Quando o Expresso apontou Mário Centeno, há oito meses, como o possível futuro presidente do conselho informal dos ministros das Finanças da Zona Euro, Marques Mendes e outros comentadores disseram que só podia tratar-se de uma mentirinha adequada à tradição de 1 de Abril. Tratou-se de um ligeiro erro de avaliação por parte de analistas geralmente infalíveis. Não vou especular sobre o que Centeno poderá fazer no novo cargo, mas a sua eleição, impensável há ano e meio, simboliza dois fenómenos. Por um lado, a quadratura do círculo que António Costa, para surpresa de todos, conseguiu fazer, ao conciliar a manutenção do apoio parlamentar de BE e PCP com o sorriso de Bruxelas. Ao mesmo tempo, o optimismo quase generalizado quanto à situação portuguesa só existe porque o modelo de Centeno resultou. Pormenores dos quais, por motivos misteriosos, quase ninguém fala, como a redução da dívida pública, a queda acelerada do desemprego, o aumento da receita fiscal baseado na produção de riqueza ou o contributo da procura interna para compensar a recente desaceleração das exportações, estão ligados ao crescimento de 2,6% previsto para este ano (beneficiário, obviamente, da conjuntura internacional). Portugal passou a ser um paraíso? Que eu tenha reparado, não, mas a política contra-revolucionária da Geringonça repôs a normalidade. Ambições maiores continuam, no entanto, a ser difíceis de concretizar.
Frase do ano: “Ai se isto fosse com o Passos”
Quem proferiu esta afirmação? Todo o mundo e ninguém, já que a mensagem foi transmitida através de palavras semelhantes por numerosos políticos e colunistas perante cada notícia desfavorável para o Governo. Segundo o coro, caso situações idênticas se passassem sob uma maioria PSD/CDS, verificar-se-ia um ruído imenso provocado por grandoladas, demissões de ministros, manchetes acusatórias nos jornais, indignação generalizada dos comentadores, sermões furibundos de Francisco Louçã, Mário Nogueira aos berros, greves e manifestações organizadas pelo PCP, discursos de sobrolho carregado do Presidente da República, poetas e cantores a dizer que Abril não se cumpriu, etc., mas com a esquerda no poder estão todos calados e feitos uns com os outros. Desde logo, poder-se-ia dizer que, num cenário político desses, a direita acharia normais e justificáveis as situações que agora condena, relacionando-as com a herança negativa do anterior governo socialista. Da mesma forma, este discurso deixa implícito que toda a agenda política e mediática é artificial e encontra-se ligada a interesses particulares, além de poder ser contraditado por factos como a escassez de demissões ministeriais (apenas Vítor Gaspar e Miguel Relvas, já que Paulo Portas não conta para o efeito) entre 2011 e 2015 ou a organização extra-partidária das manifestações contra a troika (situação que causou então desconforto no PCP). Outro tipo de história alternativa reside na ideia de que, com um Governo Cristas, Portugal teria saído mais cedo do “lixo”. Esta argumentação está exactamente ao mesmo nível de “Se a minha avó tivesse rodas, era um autocarro”.
Nova banalidade do ano: Terrorismo
Londres, Estocolmo, Paris, São Petersburgo, Manchester, Barcelona, Nova Iorque… Várias cidades foram alvo, ao longo deste ano, de ataques terroristas ligados ao fundamentalismo islâmico, para lá das matanças ocorridas em países psicologicamente mais longínquos como o Egipto e a Somália. A vaga de ataques do Daesh iniciada em 2015 promete prolongar-se por mais alguns anos, até porque é impossível prevenir a 100% atentados onde as armas utilizadas são facas ou carrinhas. Mesmo assim, a ocupação do antigo território do “califado” na Síria e no Iraque representa um avanço assinalável na luta antiterrorista. Entretanto, os ataques no “Ocidente” conheceram uma evolução na sua cobertura mediática, à medida que o tempo e o espaço dedicados pelo jornalismo ao fenómeno terrorista se iam reduzindo (pelo menos em Portugal) e os actos violentos passaram a ser rapidamente esquecidos no meio da voragem noticiosa. Por causa da consciencialização de que o mediatismo favorece os objectivos dos terroristas, devido a uma maior frieza e quase saturação do público ou apenas porque até o horror pode banalizar-se? Talvez a resposta seja um misto das três hipóteses.
Palhaçada do ano: Administração Trump
Após a eleição de Donald Trump, houve quem acreditasse que o sistema político americano acabaria por normalizar o milionário e levá-lo a abandonar a arrogância da campanha e ceder ao estilo tradicional dos presidentes republicanos. Todavia, o discurso da tomada de posse revelou Trump como um candidato ao lugar de ditador dos Estados Unidos da América. A partir daí, o governo de Donald, Melania, Ivanka e Jared envolveu-se num impressionante turbilhão de acontecimentos que se sucedem a um ritmo não diário, mas sim horário, de acordo com a cadência dos tweets. Entre o Médio Oriente, a Coreia do Norte e a ameaça de impeachment, ninguém arrisca prever no que isto vai dar. Pelo meio, apesar da satisfação da sua base de apoio (formada por um terço dos americanos e António Ribeiro Ferreira), o dono da Trump Tower sujeita os EUA à maior humilhação em mais de dois séculos de história.
Rua de má fama do ano: Acusação da Operação Marquês
Após três anos de espera, o país ficou a conhecer o conjunto de alegados crimes pelos quais José Sócrates, Ricardo Salgado e os restantes arguidos da Operação Marquês vão responder em tribunal, num julgamento cuja conclusão demorará vários anos. Até lá, é inquietante pensar que, caso a versão do Ministério Público (bem mais credível, diga-se, que a da defesa de Sócrates) esteja correcta, o Estado foi usado descaradamente para construir uma rede de poder e satisfazer os interesses privados de meia dúzia de influentes. Pelo meio, os pormenores caricatos do processo tornaram claro que José Sócrates, a quem amigos e inimigos reconheciam carisma e capacidades intelectuais, nunca passou afinal de um vulgar charlatão. Para quem permitiu através do voto, como eu, que o ex-líder do PS enriquecesse à margem da lei, o embaraço é inegável. Contudo, não me vou juntar à recém-formada legião de pessoas perspicazes que perceberam tudo sobre Sócrates quando os Delfins ainda estavam na moda nem louvar o jornalismo do Correio da Manhã, publicação que se limitou a detectar no antigo primeiro-ministro um filão inesgotável.
Incapaz de resistir à pressão na ponta final da I Liga de futebol de 2016/17, o FC Porto não pôde impedir o Benfica de sagrar-se tetracampeão pela primeira vez na sua história. Esta é a parte menos relevante do ano futebolístico, pois, como se sabe, o que acontece dentro de campo não passa de um mero pretexto para o ruído que verdadeiramente alimenta o quotidiano desportivo nacional. Assim, o director de comunicação do FCP, Francisco J. Marques, tem divulgado vários mails e mensagens indicados como prova de uma cumplicidade suspeita entre o SLB e as estruturas dirigentes da arbitragem e da Liga de Clubes, no âmbito do “polvo encarnado” essencial aos títulos benfiquistas. Por seu turno, o Benfica não deixou de acusar o “Futebol Clube do Polvo” de pressionar os árbitros, enquanto Bruno de Carvalho espalha a paz, o amor e a tolerância sempre que fala ou escreve. A discussão sobre a cor do polvo mantém-se e atinge diariamente tons de violência cada vez mais absurdos. Claro que o clima de tensão poderia acabar hoje mesmo, mas isso deixaria adeptos, dirigentes, jornalistas e comentadores tão tristes…
Momento televisivo do ano: Jorge Gomes fala aos jornalistas em Pedrógão Grande
Ao início da noite de 17 de Junho, o fogo a lavrar em Pedrógão Grande era tratado pelos canais de televisão como um incêndio semelhante a tantos outros ocorridos em Portugal. A pouco e pouco, contudo, avolumaram-se os indícios de que algo grave se passava. Por volta da meia-noite, o então secretário de Estado da Administração Interna, Jorge Gomes, aproximou-se dos microfones dos órgãos de comunicação social já representados em Pedrógão e anunciou um balanço provisório de vítimas mortais das chamas: 19. O número foi repetido com notório espanto pelos jornalistas e confirmado pelo governante. Era apenas o início de algo sem precedentes.
Nova celebridade do ano: Salvador Sobral
Com uma interpretação do tema “Amar Pelos Dois”, escrito pela sua irmã Luísa, o jovem cantor Salvador Sobral obteve a primeira vitória portuguesa no Festival da Eurovisão. Apresentado desta forma seca, o facto não expressa as diferentes fases da ainda curta relação entre Salvador e os portugueses. Primeiro, vivemos uma sensação de surpresa, quando uma canção nada festivaleira obteve o primeiro lugar no Festival RTP da Canção (renascido das cinzas) e, ao longo das semifinais em Kiev, o caneco europeu pareceu realmente alcançável. Depois, surgiu a euforia do triunfo, sob a qual os irmãos Sobral se tornaram ídolos nacionais e criticá-los passou a ser crime de lesa-pátria. No entanto, desconfortável com a súbita popularidade, Salvador Sobral ignorou todas as regras do estrelato e, em directo nas três televisões, fez uma piada relacionando gases e histeria. De imediato, parte do público sentiu-se ofendido pelo ex-herói e denunciou o fedelho arrogante no tribunal das redes sociais. Pouco depois, Sobral interrompeu os concertos para aguardar no hospital por um transplante de coração. A partir daí, as capas das revistas foram inventando, digo, acompanhando a evolução do estado de saúde do cantor, cada vez mais perto de entrar na barca de Caronte, num crescendo de ansiedade e desespero que, para choque da imprensa, o sucesso do transplante desmentiu. Volta depressa, Salvador, e canta uma música dedicada à TV Guia.
Objecto do ano:Smartphone
Os telemóveis multifuncionais já tinham há muito dominado o quotidiano e criado uma geração privada da nobre arte de olhar para o ar. Contudo, o ano de 2017 revelou a influência do smartphone na agenda política e mediática. Por um lado, as imagens captadas e partilhadas por cidadãos anónimos chamam a atenção para situações de violência ou mau serviço público, obrigando as autoridades a agir. Por outro, nas redes sociais, alagadas de indignação, todos os dias nascem, crescem e morrem sucessivas polémicas, tão intensas quanto breves e que os políticos e jornalistas tentam apressada e desajeitadamente seguir. A realidade não existe fora do ecrã do telemóvel.
Suspiro de alívio do ano: Presidenciais francesas
O ano começou sob a ameaça do regresso do fascismo, depois de um 2016 marcado pelos resultados eleitorais surpreendentes que separaram o Reino Unido da UE e instalaram Donald Trump na Casa Branca. Entre as eleições causadoras de maior receio na Europa, avultava a escolha do novo presidente francês, cargo ambicionado pela líder da extrema-direita gaulesa, Marine Le Pen, cuja presença na segunda volta do sufrágio era há muito assegurada pelas sondagens. Para a defrontar sob a bandeira da democracia, emergiu o surpreendente candidato centrista Emmanuel Macron, desconhecedor da ternura dos 40 e beneficiário do colapso de um PSF “pasokizado” e da descredibilização da direita tradicional. A 7 de Maio, Macron obteve cerca de dois terços dos votos e fez os europeístas descontraírem. Na verdade, se no início de 2017 muitos entraram em pânico demasiado depressa, é ainda cedo para achar que os ratos voltaram para o esgoto. Afinal, Le Pen obteve a preferência na segunda volta de mais de 10 milhões de franceses e prepara-se para um novo assalto daqui a cinco anos, enquanto a extrema-direita avança firme no Leste da Europa e levanta a cabeça em solo alemão.
WTF do ano: Tancos
Uma quantidade significativa de armamento militar desaparece misteriosamente da base de Tancos, num sinal de falhas na vigilância dos paióis. Depois da especulação sobre o furto e o possível destino das armas se propagar nos media, as chefias militares e o primeiro-ministro procuram tranquilizar os portugueses, realçando o carácter obsoleto do material desaparecido. Sem qualquer indício disponível, o ministro da Defesa, Azeredo Lopes, coloca a hipótese de não ter havido roubo, enquanto o Expresso divulga um relatório oficial arrasador para Azeredo. Nenhum organismo militar assume a autoria do documento, mas o director do Expresso mostra na SIC um molho de folhas encadernadas, cuja capa apenas tem escritas as palavras “Relatório Tancos”, antes do semanário esquecer o assunto para sempre. Um belo dia, uma chamada anónima revela que o material roubado de Tancos se encontra perto da base, na Chamusca. A PJ Militar recolhe o armamento, entre o qual se encontra uma caixa não referida no inventário. Azeredo Lopes e os militares encerram, aliviados, o problema e remetem a explicação do que aconteceu para uma futura investigação, ainda sem produzir resultados conhecidos. Esta atribulada história pode resumir-se numa pergunta: mas está tudo doido?!
No fim de uma crónica onde lamenta a pasmaceira da campanha para as eleições internas do PSD, José Manuel Fernandes queixa-se de que “Infelizmente nem Rui Rio nem Santana Lopes parecem querer ir buscar a Sá Carneiro aquilo que realmente o diferenciava, e que não era a adesão a uma social-democracia que à época significava algo bem diferente do que significa hoje. E o que o diferenciava era a férrea vontade reformista, a coragem de fazer rupturas e acreditar mais nos portugueses do que nas suas elites bem-pensantes e temerosas.” Fernandes pega assim em Francisco Sá Carneiro (FSC), retira-lhe o que não interessa e, tal como outros colunistas, eleva-o a santo padroeiro dos liberais portugueses. As candidaturas em disputa no PSD também não deixam de lado o exemplo do advogado portuense. Pacheco Pereira, guardião do arquivo de Sá Carneiro e um dos homens de Rui Rio, vê no eventual triunfo deste a possibilidade dos “laranjas” virarem ao centro e regressarem aos princípios do fundador, enquanto Santana Lopes, assessor de FSC em 1980, sempre se apresentou como herdeiro espiritual do homem que, entrevistado por Jaime Gama ainda durante a ditadura, negou ser um liberal e identificou-se com a social-democracia.
O culto da memória de Francisco Sá Carneiro promovido pelo PSD não parece, à primeira vista, diferenciar-se da veneração que Mário Soares, Álvaro Cunhal e Amaro da Costa (o nome do outro fundador do CDS, Freitas do Amaral, só pode sair da boca dos centristas envolvido por um esgar de desprezo) recebem dos respectivos partidos. No entanto, depois da sua vida digna de uma personagem de cinema e da sua morte envolta em mistério, Sá Carneiro perdura sob uma aura mitológica que dificulta qualquer apreciação objectiva na qual o líder social-democrata não seja necessariamente brilhante e fascinante. Nas últimas três décadas, FSC ganhou a principal utilidade de um fundador morto: podemos fazer com ele o que quisermos. Numa situação semelhante às de Cosme Damião, José Alvalade e António Nicolau de Almeida (sobre os quais ainda resta muito por contar) nos três “grandes”, Sá Carneiro constitui uma personalidade cujo contínuo louvor faz parte da identidade da agremiação por si criada, mas que, no fundo, nenhum dos seus herdeiros está interessado em conhecer tal como foi.
Não analisei em pormenor os artigos, livros e discursos de Sá Carneiro, mas o político parece ter sido mais claro ao referir aquilo que não queria (antes do 25 de Abril, a continuação da ditadura; depois do golpe, o comunismo e a tutela militar) do que o modelo exacto correspondente à social-democracia adoptada pelo PPD/PSD. Na verdade, o partido, mais pragmático que ideológico, albergou desde o início gente muito diferente e, apesar das dissidências, entre 1975 e 1978, de grupos mais à esquerda ou descontentes com a liderança de FSC, o discurso “laranja” sempre foi bastante ecléctico e hesitante na hora de se auto-definir. Contudo, ao contrário do que José Manuel Fernandes acredita, o que mudou desde o tempo de Sá Carneiro não foi a social-democracia mas sim o contexto político geral. Numa época de radicalização à esquerda como o PREC, as ideias de FSC pareciam “fascistas” ou conservadoras, enquanto na actualidade, quando o debate social, político, académico e mediático na Europa está bem mais à direita, quem sabe onde o primeiro presidente do PSD estaria? Autores como Rui Ramos e Henrique Raposo escrevem que, na década de 70, o PSD e o CDS não podiam sair do armário e assumir-se como liberais porque estavam reféns da pressão esquerdista do MFA e do PCP. A hipótese de Sá Carneiro ser mesmo social-democrata e Amaro da Costa ser mesmo centrista nem passa pela cabeça dos “discípulos” actuais dos dois políticos.
Deixem Francisco Sá Carneiro repousar em paz. Não o invoquem em vão no calor de debates que pouco têm a ver com a realidade de há 37 anos. A direita portuguesa actual foi bem mais influenciada por Paulo Portas e Cavaco Silva que pelos seis anos (com duas breves interrupções) de Sá Carneiro na liderança do PSD. Os liberais já têm em Pedro Passos Coelho um líder eterno e inesquecível, não precisam de reclamar a orientação de quem não os pode desmentir.
P.S. Quanto à campanha do PSD, não são, de facto, necessários bombos na rua, como disse Rui Rio, mas podiam fazer algo um pouco mais estimulante do que sessões tépidas de fim de semana e recados nos jornais próximos do partido. Angustia pensar que ainda falta mais de um mês desta sensaboria.