O estado actual da imprensa diária portuguesa está longe de ser brilhante. Entre os diários generalistas, o Público permanece aquele que fornece a informação mais completa e aprofundada, embora por vezes se resuma à palavra de ordem “Marcelo bom, Costa mau”. O Correio da Manhã é um caixote de lixo. Por sua vez, embora apresente algumas entrevistas interessantes, o i enfraqueceu muito depois de sofrer uma redução de pessoal, cometendo lapsos inacreditáveis. Quanto ao Jornal de Notícias, não o costumo ler, dado que parece destinado apenas aos habitantes do Norte do país. Além do JN, o grupo Global Media, presidido por Daniel Proença de Carvalho, controla ainda o Diário de Notícias, periódico que, após 154 anos de publicação contínua, está prestes a conhecer uma profunda transformação, ao passar a surgir diariamente apenas em formato digital. Manter-se-á uma edição semanal em papel lançada aos domingos, ou seja, um semanário chamado Diário de Notícias. Na prática, trata-se do fim do DN tal como sempre o conhecemos, ditado não por uma opção empresarial mas por verdadeira penúria de recursos.
Desde que comecei em 1998 a ler o Diário de Notícias, houve três projectos associados ao jornal que considerei particularmente marcantes. O DN Jovem, um espaço de divulgação de novos escritores e desenhadores, foi uma rampa de lançamento para numerosos artistas. Ver um texto nosso aparecer no site ou numa página do jornal de domingo (alcancei esse feito várias vezes entre 1999 e 2000) constituía uma honra imensa, devido ao prestígio do DNJ e ao critério apertado da selecção. Entretanto, o suplemento DNA, coordenado por Pedro Rolo Duarte, apresentava aos sábados vestígios do lado bom da irreverência e criatividade outrora ligadas a O Independente. Já na actual década, a revista semanal Notícias TV, de início apenas mais um rol de fofocas das celebridades, tornou-se, sob a direcção de Nuno Azinheira, um espaço de verdadeira análise da televisão feita e exibida em Portugal. As três iniciativas desapareceram sem nunca terem sido substituídas por nada de semelhante na imprensa lusa. Em paralelo aos projectos especiais, o DN era um diário competente, dotado de bons colunistas e preenchido por informação rigorosa sobre o essencial da actualidade.
No entanto, evitando a hipocrisia típica daquelas pessoas que lamentam em público o encerramento de lojas históricas nas quais há muito não punham os pés, preciso dizer que nos últimos anos passei a comprar o Diário de Notícias apenas de forma esporádica. Em comparação com o Público, o DN pareceu sempre algo cinzento e quadrado, sem imaginação nem capacidade de inovar, como que a viver à sombra da sua marca centenária. A crise económica e o abalo vivido na imprensa devido à expansão do digital agravaram essa imagem de dificuldade do DN em adaptar-se aos novos tempos. Enquanto o Público conheceu apenas três directores (José Manuel Fernandes, Bárbara Reis e David Dinis) nos últimos 20 anos, o seu concorrente da Avenida da Liberdade viveu no mesmo período uma frequente instabilidade directiva que também dificultou a renovação do DN. A partir de 2014, os despedimentos de jornalistas como Eurico de Barros e Nuno Galopim (essenciais na secção cultural) fizeram o Diário de Notícias entrar num ciclo vicioso em que falta de recursos, perda de qualidade e afastamento dos leitores estimularam-se mutuamente. Surgiram também acusações de manipulação dos diários da Global Media por Proença de Carvalho, em benefício do próprio e de José Sócrates. A soma destes factores mergulhou o DN numa espiral de insucesso e reduziu as tiragens a valores ínfimos, tornando cada vez mais provável o desfecho agora anunciado.
Para lá da preferência pessoal por jornais em papel e do desgosto pela evolução negativa de um jornal tão importante na história do país como o DN, custa perceber a tendência que a imprensa portuguesa está a seguir. Os poucos periódicos sobreviventes parecem obrigados a optar entre os estilos do Correio da Manhã e do Observador, ou seja, entre o sensacionalismo e a manipulação política, um cenário preocupante devido à inexistência de uma alternativa credível aos jornais tradicionais. Para angariarem leitores dispostos a pagar por informação, estes últimos têm recorrido a campanhas publicitárias cujo tom lembra mais instituições de caridade que órgãos de imprensa. O resultado desta degradação, no meio da desconfiança do público consumidor da comunicação social, conduz ao empobrecimento da democracia. Ir a um quiosque ou papelaria comprar um jornal era, no final do século XX, um acto quotidiano e corriqueiro. Hoje, parece um gesto heróico de resistência à opressão.
A imprensa clubística representa uma fonte importante para o estudo do desporto português, não só pela cobertura pormenorizada que faz das diferentes modalidades dos emblemas que a produzem, mas também por permitir conhecer o discurso oficial dos clubes e a forma como estes reconstituem a sua própria história. Os periódicos editados pelos três “grandes” são, naturalmente, as publicações deste género com maior impacto nacional. Pouco depois de ascender à presidência do FC Porto, Pinto da Costa substituiu o velho semanário O Porto pela revista mensal Dragões (actualmente indisponível em papel), mais arrojada a nível do grafismo e conteúdo. Por sua vez, os rivais lisboetas mantiveram a publicação semanal dos jornais O Benfica e Sporting, herdeiros de periódicos surgidos no início do século XX. Hoje em dia, embora a Internet e os canais televisivos dos “grandes” constituam plataformas de difusão de propaganda mais eficazes e rápidas que a imprensa, os jornais benfiquista e sportinguista permanecem ainda nas bancas. No caso de Sporting, a direcção do semanário encontra-se confiada a José Quintela, um dos membros do Conselho Directivo do SCP que decidiram acompanhar Bruno de Carvalho até ao fim.
A capa da edição de 24 de Maio do jornal Sporting encontra-se dividida por vários temas, como o regresso de Augusto Inácio à direcção do futebol profissional do clube ou o feito dos jogadores de ténis de mesa “verdes e brancos”, tricampeões nacionais da modalidade e retratados num poster nas páginas centrais. No que respeita à situação de crise do Sporting, agravada pelos incidentes de Alcochete, a primeira página fornece apenas o título “Atletas, treinadores e dirigentes ao lado do Presidente”, acompanhado de uma fotografia de Bruno de Carvalho abraçando o andebolista leonino Carlos Ruesga. A chamada de capa remete para o artigo da última página do jornal, cujo lead afirma que “Muitos profissionais usaram as suas contas nas redes sociais para mostrar gratidão a Bruno de Carvalho, pelo apoio nunca regateado do responsável máximo do Clube às modalidades”. Seguem-se reproduções de posts escritos no Facebook ou no Instagram por Ruesga e outros atletas de desportos como futsal, voleibol, atletismo, futebol feminino e hóquei em patins, alguns dos quais mais dedicados a manifestar apoio ao clube num momento difícil do que propriamente a louvar Bruno. Muitas das 32 páginas da edição de Sporting relatam o sucesso do SCP nas modalidades, tema do editorial de José Quintela, onde encontramos apenas uma referência na primeira frase aos “últimos acontecimentos”, depois ignorados pelo director do semanário. O outro artigo de opinião deste número é assinado pela jornalista Sofia Oliveira, dominada por “um enorme sentimento de vergonha alheia” perante o trabalho da sua classe profissional, a qual acusa de “trocar o rigor e a exactidão pela sede das vendas ou das audiências”, sem apontar exemplos.
Sofia Oliveira escreveu igualmente a crítica ao jogo da final da Taça de Portugal de futebol, tema que preenche uma página incompleta de Sporting. A breve análise da partida não atribui a derrota do SCP ao “azar”, mas sim aos futebolistas leoninos (“Que culpa tem o azar se os jogadores se apresentavam estáticos?”), infelizes nos lances dos golos do Desportivo das Aves. Não se verifica no artigo qualquer alusão à violência na Academia ou aos efeitos psicológicos desta nos “leões”, excepto numa curta citação de Jorge Jesus. De resto, em todo o jornal, as agressões só são mencionadas nos comunicados da direcção sportinguista e na transcrição integral da declaração dos representantes dos órgãos sociais, encimada pelo título “Não nos demitimos a bem do Sporting”. O jornal chefiado por Quintela não acolhe quaisquer mensagens de sportinguistas contestatários de Bruno e mostra um clube em plena normalidade. Business as usual, acima de tudo. Não se esperava, obviamente, que o jornal oficial leonino fizesse uma cobertura isenta dos últimos eventos ligados ao SCP. Contudo, o grau de alheamento de Sporting relativamente à situação actual do clube roça a alucinação. Quem não seguir a restante comunicação social, tão criticada pelos brunistas, acreditará que o emblema de Alvalade vive a melhor fase da sua história centenária (excepção feita à inépcia dos irrelevantes futebolistas masculinos). Mais do que um órgão de propaganda do clube, Sporting constitui um veículo para o auto-elogio da direcção presidida por Bruno de Carvalho, num cenário que deveria revoltar os sportinguistas.
O mais interessante deste caso, no entanto, é que o semanário não publica (que se saiba) qualquer mentira, nem retira frases do contexto ou faz especulações. Para exprimir uma visão deturpada da vida do Sporting, limita-se a seleccionar determinados factos e ignorar outros. Esta é talvez a forma mais eficaz de manipulação jornalística, dentro ou fora da informação desportiva. Ninguém precisa de fake news quando basta restringir o conteúdo noticioso aos acontecimentos verídicos que confirmam uma dada narrativa, enquanto são ocultadas quer situações inconvenientes para quem domina o meio de comunicação em causa quer opiniões alternativas a determinada ideologia. O brunismo fez do Sporting um exemplo em escala reduzida de fenómenos políticos associados ao autoritarismo, entre os quais não falta o controlo da informação. É certo que ninguém seguiu o boicote a toda a comunicação social não dirigida por Alvalade ordenado por Bruno, num contexto em que a resistência leonina se agrupa nos blogues e redes sociais. No entanto, se isto se passasse à escala de um país onde os media afinassem todos pelo mesmo diapasão e a propaganda ignorasse a realidade ao garantir que tudo corria às mil maravilhas, o que aconteceria?
O ataque à Academia leonina não foi uma acção espontânea de alguns tipos excitados pelo álcool, dado que envolveu logística, mobilização e planeamento. Do ponto de vista de quem atacou, parece ter sido uma espécie de operação militar. Após identificarem o inimigo (os técnicos e jogadores do seu próprio clube), os agressores reuniram um pequeno exército, muniram-se de armamento, asseguraram o transporte e dirigiram-se ao alvo da incursão. A execução do plano foi eficaz devido a uma série de características: rapidez, efeito surpresa, superioridade numérica, uso maciço da força de modo a provocar o medo nas vítimas. No entanto, embora as claques estejam habituadas a combater entre si, atacar civis desarmados não é guerra, é terrorismo. Isto foi chato, mas temos de nos habituar, faz parte do dia-a-dia, acontece em todo o lado, não é? Pois, realmente não há muito mais a dizer. Excepto talvez procurar compreender como chegámos aqui.
Vivemos tempos estranhos no que respeita àquilo que pode ou não ser dito no espaço público. Por um lado, há quem se preocupe constantemente com a possibilidade de alguém se sentir ofendido por um determinado discurso, em particular no caso do humor. O “politicamente correcto” tem sido associado ao mundo académico e à esquerda ligada ao feminismo ou à defesa das minorias, mas políticos de direita como Nuno “Je ne suis pas Charlie” Melo também gostam de lembrar que com a religião não se brinca. Ao mesmo tempo, e enquanto tantos se queixam de já não poderem dizer nada, Bruno de Carvalho e vários comentadores de futebol dispõem de rédea solta para exprimir as opiniões mais rudes e ofensivas. A permanente compreensão pelos excessos verbais da tribo do futebol tem sido justificada com a natureza específica e irracional do desporto-rei. No entanto, o debate sobre política e outros temas que decorre sem cessar nos media e na Internet sobe igualmente de tom. Insultos, simplismo, arrogância, sectarismo, preconceitos, maniqueísmo, insinuações, efeito de manada e acusações sem provas tornam-se cada vez mais comuns. Afinal, tudo é proibido ou tudo é permitido?
A agressividade faz parte de todos nós e não ficámos repentinamente mais violentos no século XXI, mas o gigantesco megafone fornecido pelas redes sociais e a sensação de impunidade vivida dentro destas (uma espécie de mundo paralelo ao real onde podemos deixar sair o que nunca diríamos em voz alta) têm contribuído para aumentar o impacto da violência verbal, que alguns convertem em violência física. Também se verifica um forte interesse da comunicação social, desejosa de audiências num mercado em contracção, por tudo o que envolva polémica e confronto, com a lógica do reality-show a contaminar outros géneros televisivos. Contudo, os media e as redes sociais, apesar dos seus defeitos inegáveis, têm as costas largas e servem hoje de bode expiatório para tudo. Existem decerto causas sociais mais profundas para a crescente agressividade pública, mas, enquanto elas não são descobertas, o que me assusta é o facto de, a pouco e pouco, a linha de fronteira entre o normal e o inaceitável se ir movendo. A moderação passa a ser confundida com frouxidão, o apetite pela purga cresce, os fins justificam os meios, as regras democráticas começam a ser descritas como um obstáculo à segurança, à luta anticorrupção ou a qualquer outro objectivo nobre. Trump e Bruno já não parecem ser uma anomalia, antes um sinal do tempo que se aproxima.
Como travar o crescendo da tensão? Através de uma comissão de censura reguladora daquilo que se pode dizer? Não, “apenas” através do bom senso, do respeito mútuo, da luta quotidiana pela frágil democracia em que vivemos. 44 anos depois, nunca precisámos tanto da memória do 25 de Abril como agora.
P.S. Apesar da estridência do Prolongamento, nem todos os debates televisivos sobre futebol são iguais. O programa Trio de Ataque (RTP3), com Miguel Guedes, João Gobern e Augusto Inácio, é sobretudo uma conversa entre três amigos que gostam de futebol e cujas diferenças clubísticas nunca os levam a cair na má educação.
Este reboot do Super-Homem, agora encarnado por Henry Cavill, deu início a uma série de filmes dos personagens da DC Comics, numa tentativa pouco frutuosa de competir com o êxito cinematográfico da Marvel. Apesar de Zack Snyder revelar uma saudável heresia ao contar a origem do herói de maneira diferente da convencional, tudo parece um mero pretexto para o realizador divertir-se de forma infantil a arrasar prédios e multiplicar explosões, sem tornar compensadora a bizarria de várias opções narrativas. A tecnologia actual permite mostrar qualquer coisa no ecrã, mas os actores do cinema de super-heróis costumam surgir perdidos no meio de uma atmosfera irreal de videojogo, sobretudo quando, como em Homem de Aço, os diálogos são demasiado pobres para dar espessura às personagens. À imagem do Festival da Eurovisão (agora regressado à normalidade), o Super-Homem de Snyder tem muito foguetório e pouca alma.
Um filme para… Concordar com os Simpsons: o Super-Homem já não é tão divertido como antes.
Nota: 5/10.
Assalto à Casa Branca (2013)
Na altura em que Donald Trump e Kim Jong-un estão prestes a encontrar-se para beber umas cervejas e falar sobre gajas, convém recordar o passado pouco distante em que a Coreia do Norte era retratada por Hollywood como a principal ameaça aos Estados Unidos. Neste caso, Antoine Fuqua filma com relativa habilidade, sobretudo nas cenas de batalha, um ataque norte-coreano a Washington, onde os asiáticos bombardeiam vários monumentos, tomam a Casa Branca e fazem refém o corajoso Presidente (Aaron Eckhart). O erro deles foi não contar com o ex-chefe da segurança presidencial, o agente Banning (Gerard Butler), disposto a tudo para salvar o país e o mundo. A inspiração da série Die Hard, salientada pelo título português, é mais do que óbvia, mas Butler está longe de possuir o carisma e o desembaraço de Bruce Willis e limita-se a despejar palavrões enquanto limpa o sebo aos atacantes. Se eu tivesse anotado todos os clichés dos filmes de acção cumpridos sem falhas por Assalto à Casa Branca, teria enchido umas cinco folhas A4 (evidentemente que não falta o relógio em contagem decrescente para o holocausto nuclear evitado no último momento). Esta história bem patriótica conheceu pouco depois uma sequela, Assalto a Londres.
Um filme para… Pensar que o mau cinema por vezes documenta uma determinada época melhor que o bom cinema.
Nota: 4/10.
Sei Lá (2014)
Realizador versátil, Joaquim Leitão possui na sua filmografia a particularidade de ter adaptado romances tão diferentes como Até Amanhã Camaradas, cuja versão para cinema estreou em 2013 (dez anos depois da série televisiva baseada na obra de Manuel Tiago/Álvaro Cunhal), e Sei Lá, de Margarida Rebelo Pinto. Levar a sua primeira ficção ao grande ecrã era um sonho antigo da escritora, também argumentista da longa-metragem, e podemos saudar Rebelo Pinto pelo feito de conseguir pegar na história do romance e torná-la ainda pior. Neste filme, vemos imagens de Leonor Seixas com cerca de 15 penteados diferentes, Rita Pereira na pele de “bimba da Margem Sul”, António Pedro Cerdeira a interpretar o pior agente secreto da história do cinema e outras curiosidades, por entre uma voz off tão opressiva como a intensidade cromática da fotografia. O vazio e futilidade das mulheres retratadas em Sei Lá fazem o espectador mais liberal pensar que, se isto é a elite, então viva o proletariado. A obra de Leitão revela-se, assim, mais coerente do que parecia.
Um filme para… Celebrar o bicentenário de Karl Marx.
Nota: 4/10.
Verdade ou Consequência (2018)
Um grupo de estudantes universitários passa férias no México e, ao regressar aos EUA, traz consigo uma maldição que torna o jogo “verdade ou consequência” inquietantemente real. Filmes de terror como este existem aos pontapés e não há muito a dizer sobre a obra realizada por Jeff Wadlow, para lá do ridículo da história, dos sustos nada assustadores e das personagens de cartão cuja vida ou morte causa total indiferença. São feitas numerosas referências a redes sociais e plataformas da Internet (Google, You Tube, Facebook, Instagram, Snapchat, etc.), no intuito de ganhar proximidade ao público-alvo do filme.
Um filme para… Constatar o desinteresse dos americanos em falar uma língua que não o inglês quando vão ao estrangeiro.
No passado mês de Janeiro, escrevi: “O mérito pertence todo a Sérgio Conceição, o psicólogo que melhorou o estado de um paciente cujo quadro clínico era marcado há quatro anos por sintomas como ansiedade, depressão, insegurança e perda de auto-estima”. A frase continua a resumir bem a época de 2017/18 do Futebol Clube do Porto, prestes a encerrar num ambiente de festa motivado pelo fim do jejum, após cinco anos sem um único troféu. Ninguém de boa-fé pode negar a justiça do triunfo dos “dragões” no campeonato, liderado pelo conjunto portista em mais de metade das jornadas.
No entanto, o quadro encontrado por Sérgio Conceição ao regressar ao Porto estava longe de ser favorável. Em resultado da falência do modelo “quem paga mais, ganha mais”, a SAD vivia (e vive) uma péssima situação financeira, na origem da intervenção externa e de uma política de austeridade. O mais grave, porém, era a nítida sensação de declínio vivida no clube e alimentada pela persistência do fracasso, independentemente dos plantéis e treinadores em permanente renovação. O próprio Pinto da Costa, eternizado no poder, produzia mais notícias sobre a sua vida amorosa que declarações relevantes. As peças disponibilizadas a Conceição eram velhas, baratas, escassas e aparentavam um mau estado de conservação, ao mesmo tempo que a concorrência dispunha de material reluzente comprado nas lojas mais caras. Surpreendentemente, Conceição desceu à cave para ir buscar artigos já abandonados e concluiu ainda poderem ter uso. Através de limpezas e reparações, Sérgio deu novo brilho às peças e com elas montou uma geringonça. O aparelho parecia improvisado, pouco eficiente, com parafusos mal apertados e propício a avariar ao mínimo percalço, mas o inventor ligou-o e, apesar de ligeiros tremores, a geringonça funcionou e avançou a todo o vapor.
Metáforas à parte, o sucesso “azul e branco” passou por um jogo essencialmente ofensivo, arriscado perante equipas de outro nível como o Liverpool, mas adequado à realidade da liga nacional. A nova atitude e a maior produção de golos atraíram ao Dragão e a outros campos um número crescente de adeptos que gostavam do que viam e sentiam uma ligação especial aos jogadores e ao treinador, um homem “da casa”. Embora critique a importância desmesurada atribuída às palavras dos treinadores dos “grandes”, admito que o discurso frontal e sentido do técnico do FCP, directo mas sem cair na má educação, contribuiu para a mobilização das hostes portistas. Acima de tudo, o efeito benéfico de Sérgio Conceição fez-se sentir ao nível da psique. Os futebolistas do FC Porto ganharam confiança e atingiram níveis de rendimento antes impensáveis, enquanto os maus resultados passavam a ser fontes de lições, em vez de combustível para a descrença. Problemas individuais como os que envolveram Casillas e Soares e teriam levado em épocas anteriores a amuos e saídas foram resolvidos por Sérgio de forma rápida e certeira. Pela primeira vez em muito tempo, deixava de haver um muro invisível a travar o caminho do FC Porto.
Como nos filmes, houve um momento em que os heróis pareceram estar perdidos. A derrota do FC Porto em Paços de Ferreira pôde ser considerada um tropeção normal após um percurso quase imaculado, mas o jogo do Restelo apresentou um quadro demasiado semelhante ao das temporadas anteriores, entre os erros defensivos, a ineficácia na finalização, a desinspiração dos atletas e a sensação de impotência perante a derrota. Ao deixar-se cair após o segundo golo do Belenenses, Casillas transmitiu a imagem de uma equipa novamente vergada pelo destino. O pentacampeonato do Benfica, então a conhecer uma longa série de vitórias que permitiu às “águias” recuperarem do mau início de época, assemelhou-se a uma realidade palpável. Todavia, Sérgio conseguiu acalmar o Estádio do Dragão na recepção ao Aves e enfrentar a partida decisiva na Luz, há apenas três semanas, com toda a coragem. De acordo com as cautelas que adoptou na segunda parte, Rui Vitória parecia querer sobretudo assegurar o empate e quase atingiu esse objectivo. No entanto, tal como no cinema, breves instantes alteraram o curso da história, quando o golo de Herrera, marcado com a convicção e naturalidade de quem se limita a fazer aquilo que tem de ser feito, deu o triunfo aos visitantes e iniciou o colapso do SLB (com oito pontos perdidos em apenas quatro jornadas). A seguir, eficácia e determinação arrasaram o Vitória de Setúbal e na Madeira, após muito sofrimento, o golo de Marega revelou a verdade luminosa: não existem maldições, não estamos fadados a nada, o futuro será aquilo que fizermos dele. A taça de campeão esperava pelo FC Porto e este não se fez rogado.
Para lá do feito dos “dragões”, a liga de 2017/18 será recordada por todas as polémicas decorridas à margem do jogo propriamente dito. Ao longo dos últimos nove meses do futebol português, pudemos imaginar os jogadores em actividade nos relvados a perguntarem “Alguém se importa de nos conceder um minuto de atenção?”, tamanho foi o alarido fora dos estádios. A tensão, o apelo ao ódio e a desconfiança generalizada atingiram níveis inéditos num habitat ocupado por polvos, toupeiras e outras espécies zoológicas. Poderíamos acreditar que este clima pesado vai aligeirar nos próximos tempos, mas claro que não vai. Desde logo, pelo facto de ser bem mais simples falar da arbitragem e dos pecados dos adversários que analisar as fraquezas próprias. As redes sociais continuam a ser o terreno ideal para espalhar a mentira e o insulto, devido à sua função de depósito do lixo existente nas mentes dos cibernautas. Além disso, sem querer meter toda a gente no mesmo saco, muitos dirigentes, jornalistas, comentadores e funcionários dos clubes obtêm dinheiro e projecção mediática graças ao circo mediático que rodeia o futebol. Por isso, interessa-lhes manter viva a agitação dentro da tenda. Se o circo pegar fogo, tanto melhor.
P.S. Este título merece uma dedicatória especial para Pedro Silva, autor de O Gato no Telhado e o portista que acreditou mais do que ninguém no modelo de jogo de Sérgio Conceição e na capacidade do técnico para levar os “dragões” ao êxito.
Em 1991 eu tinha apenas seis anos, mas era difícil não reparar no êxito do duplo álbum de Rui Veloso Mingos & Os Samurais, lançado ainda no ano anterior e cujas vendas se traduziram na marca hoje inimaginável de sete discos de platina (cada disco de platina correspondia a 40 mil cópias vendidas). Lembro-me que a RTP passava então um anúncio no qual pessoas de várias idades cantavam “Não Há Estrelas no Céu” antes de uma voz off perguntar “Quem pode perder o novo álbum de Rui Veloso?” e o músico portuense encolher os ombros como quem não sabe a resposta. De facto, a história dos membros de uma banda nortenha do início dos anos 70 imaginada por Veloso e pelo letrista Carlos Tê marcou uma época e chegou a abafar o projecto seguinte dos dois músicos, o novo duplo Auto da Pimenta, encomendado pela comissão para as comemorações dos Descobrimentos. Anos mais tarde, assisti a três concertos de Rui Veloso, dois em Odivelas e um no Pavilhão Atlântico (a actual Altice Arena), este último a assinalar em 2000 as duas primeiras décadas de carreira do artista, num ambiente inesquecível. Curiosamente, estive mesmo ao lado de Veloso em 2007, durante um passeio no rio Douro onde o bluesman se encontrava como mero turista, condição que os outros passageiros do barco respeitaram não o incomodando (se fosse hoje, o pobre Rui não teria um minuto de sossego entre os inúmeros pedidos de selfies). Para mim como para tantos outros portugueses, Rui Veloso é um daqueles músicos que fizeram sempre parte da nossa vida e cuja obra atravessa gerações de forma quase consensual.
O feito atingido por Rui Veloso em 1980 não passou pela criação do rock português, com uma longa história anterior, mas pela prova da viabilidade comercial da música moderna cantada na língua de Camões, através do sucesso de vendas do LP Ar de Rock e dos singles “Chico Fininho” e “Rapariguinha do Shopping”. O boom do rock nacional prolongou-se por cerca de dois anos, altura em que os projectos mais frágeis desapareceram para deixar apenas quem apresentava verdadeira qualidade, como Veloso, figura essencial dos anos 80 e protagonista da fase de advento do CD. As letras de Carlos Tê, poeta do quotidiano e narrador dos amores e desamores de personagens identificáveis com qualquer ouvinte, expressam uma visão singular, politizada mas não partidarizada, de Portugal (presente em temas como “A Gente Não Lê”, “Slow da Falta de Quórum” ou “Top dos Tops”), além de possuírem uma riqueza vocabular rara na música lusa. A vida conferida ao imaginário de Tê provém do talento de Veloso, um cantor, compositor e guitarrista exímio dotado de forte empatia com o público. De facto, Rui nunca pareceu uma estrela do rock and roll, mas antes alguém como nós, um jovem de óculos e ar de lingrinhas que se viu famoso da noite para o dia e teve dificuldade em lidar com a insegurança, até dominar os palcos e chegar à maturidade consciente do seu valor. Quer os melhores álbuns (Ar de Rock, Fora de Moda, Rui Veloso, Mingos & Os Samurais, etc.) quer os apenas razoáveis (Guardador de Margens, Avenidas) deixaram a marca de Veloso no cancioneiro nacional e tornaram-no uma inspiração para músicos de gerações posteriores como Miguel Araújo.
Depois do primeiro quarto de século na ribalta, a carreira de Rui Veloso entrou numa certa estagnação, à medida que o artista parecia mais apto a reciclar os velhos sucessos que a percorrer novos caminhos. Se o período entre os álbuns de originais Avenidas (1998) e A Espuma das Canções (2005) já parecera uma eternidade aos fãs de Veloso, desde então tivemos apenas um disco de duetos, Rui Veloso e Amigos (2012), uma compilação com duas novas músicas e pouco mais. Nas agora raras entrevistas, um Rui frequentemente deprimido e pouco entusiasta chegou a anunciar uma interrupção temporária dos concertos. O afastamento de Carlos Tê da escrita de textos para música veio também dificultar o trabalho criativo do autor de “Harmónica Azul”. Contudo, quando Rui regressa aos palcos, mostra a mesma energia de antes e arrasta multidões sempre dispostas a cantar em coro os versos que todos conhecem. Ainda parece haver muito futuro para Rui Veloso, a quem já ninguém poderá negar um papel fundamental na história da música portuguesa.
P.S. Pela última vez: a canção passada no Rivoli chama-se “A Paixão (Segundo Nicolau da Viola)” e não “Anel de Rubi”. Haja rigor, meus senhores.