Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Desumidificador

Desumidificador

Azul e branco é o coração

A humorista Joana Marques, que poderia ser uma das mulheres referidas por Marco Paulo no tema “Eu Tenho Dois Amores” (“Mas a outra, tão morena/É tal qual o homem quer/Mesmo sendo mais pequena/Ela é muito mais mulher”), tem comentado assiduamente o futebol, em iniciativas como o livro Viver Com Um Adepto: Manual de sobrevivência (2009), produzido em co-autoria com Susana Romana e Ricardo Galvão. Numa nova obra, O Meu Coração Só Tem Uma Cor, ilustrada por Pedro Vieira, Joana reúne 92 crónicas (uma para cada minuto de jogo) sobre o universo do Futebol Clube do Porto, o emblema amado pela argumentista lisboeta, herdeira da orientação clubística do pai, o historiador João Pedro Marques. O livro é prefaciado por Jorge Nuno Pinto da Costa, fã da escrita de Joana Marques, “uma espécie de Rui Barros” do humor português (p. 13).

 

Nos 92 textos, legíveis por ordem aleatória, Joana Marques viaja, servindo-se de uma escrita cuidada e um humor irresistível, pela história do FC Porto, embora, ao contrário do que uma das badanas promete, não descreva a fundação do clube, para lá de se mostrar mais à vontade no relato dos episódios dos quais possui memórias, ocorridos a partir da década de 90 do século passado. Além das finais europeias e de outros desafios célebres do FCP, são evocados Pinto da Costa, os treinadores mais marcantes dos “dragões” e alguns dos muitos futebolistas que brilharam com a camisola azul e branca, sem ignorar outros jogadores menos felizes cuja memória perdura apenas nas piadas dos adeptos. Joana atinge Benfica e Sporting com numerosas farpas irónicas, relativas sobretudo à protecção dos árbitros ao SLB e à escassez de títulos do futebol leonino. Mais que um ataque, trata-se de um precioso incentivo ao sentido de humor dos apreciadores de futebol, numa altura em que o desporto-rei serve tantas vezes de mero pretexto para fomentar o ódio.

 

 

Num livro feito de emoções e não do registo seco de factos, Marques transmite como poucas aquilo que significa ser adepto de um clube. Trata-se de uma experiência na qual convivem um lado profundamente pessoal e outro marcado pela dissolução no colectivo, além de constituir um “passaporte para regressarmos à infância” (p. 11). Ser outra vez uma criança permite sentir alegrias puras e imensas aquando das vitórias do nosso clube, mas também causa amuos e birras ruidosas quando os resultados não são os desejados. Ir ao estádio é uma experiência semelhante a “participar num ritual litúrgico” (p. 98) e estabelecer ligações com desconhecidos convertidos à mesma fé. Durante os jogos, no entanto, tornam-se frequentes o sofrimento e os pensamentos agressivos que “muita gente tem, mas ninguém quer admitir” (p. 37). Os golos dos “nossos” jogadores, homens quase divinizados pela multidão, acabam por fazer esquecer tudo e estimulam a continuação de uma paixão quotidiana, orgulhosamente parcial e irracional. Os melhores testemunhos escritos por adeptos expressam esse turbilhão de sentimentos que Marques apresenta com um sorriso nos lábios.

 

O Meu Coração Só Tem Uma Cor, um livro essencial na biblioteca de qualquer portista que se preze (apesar de lhe faltar a credibilidade científica da tese do mestre Macaco), representa um contra-ataque de Joana Marques após a jogada ofensiva de outro autor das Produções Fictícias, o benfiquista Ricardo Araújo Pereira, cujas crónicas futebolísticas foram compiladas em A Chama Imensa (2010). Falta ainda nas livrarias um olhar satírico proveniente da hoste do leão, onde humoristas como Eduardo Madeira ou Zé Diogo Quintela poderiam dar um contributo a esse nível. Entretanto, a nação portista espera que os próximos anos do clube forneçam a Marques, entre craques, troféus e matanças do polvo, abundante material inspirador de um futuro trabalho do mesmo género.

 

P.S. A dada altura, Joana Marques apercebe-se de que apenas sabe de cor “o nome de um presidente do meu clube”, Pinto da Costa, cujo palmarés riquíssimo tornou os seus antecessores “quase irrelevantes”, embora Marques imagine que os adeptos de outros clubes recordem os respectivos presidentes associados a “momentos de glória” (pp. 211-212). Na verdade, muitos benfiquistas não saberão identificar Maurício Vieira de Brito e Fezas Vital, líderes dos “encarnados” durante a conquista das duas Taças dos Campeões Europeus. Durante muito tempo, os jogadores e treinadores dos “grandes” recebiam quase toda a atenção do público, enquanto os presidentes cumpriam geralmente apenas um ou dois mandatos de forma discreta. Nos anos 80, Pinto da Costa e outros dirigentes instauraram o modelo do presidente protagonista, alvo de intensa cobertura mediática, uma tendência que seria levada ao nível do grotesco por Bruno de Carvalho.

Os profetas

Num canal de notícias, o intervalo publicitário acaba e uma pivô entra no ar. A jornalista apresenta um painel de convidados formado por quatro comentadores políticos e pergunta a cada um deles quais serão os resultados das próximas legislativas e que governo sairá do acto eleitoral. O primeiro responde: “Não sei”. O segundo exclama: “Sei lá!” O terceiro encolhe os ombros: “Ainda falta muito”. O quarto tenta ser engraçado: “Deixei a bola de cristal em casa”. Imediatamente, a apresentadora conclui: “E assim termina o nosso programa de análise política. Já a seguir, não perca três horas de discussão sobre futebol. Boa noite”.

 

Obviamente, isto nunca aconteceria na vida real. Grande parte do comentário político português é preenchida por descrições daquilo que ainda não aconteceu. Nas últimas semanas, multiplicaram-se os prognósticos acerca do futuro da Geringonça, das eleições a realizar em 2019 e do governo que delas resultará. Com certezas inabaláveis, os analistas prevêem ao milímetro tudo o que vai suceder daqui a mais de um ano. Da mesma forma, apesar do mandato de Marcelo Rebelo de Sousa ainda ir a meio, já se discute a sua recandidatura em 2021. Esta impaciência não é nova, uma vez que Marcelo, quando era comentador da TVI, lançou durante anos nomes de possíveis candidatos às presidenciais de 2016, à excepção de si próprio. Fala-se muito em falta de visão de futuro na política portuguesa, mas esta vive sempre com os olhos postos na próxima ida a votos. Embora Marques Mendes, o “bruxo de Fafe”, se considere o mestre da profecia, todos os comentadores têm um pouco de adivinhos.

 

 

A tradicional previsibilidade da política nacional tem facilitado o trabalho dos videntes, que geralmente necessitam apenas de prever os movimentos de meia dúzia de actores políticos, conhecidos há muito tempo e cujos avanços ou recuos são antecipáveis a longa distância. Nos últimos anos, porém, enquanto os peritos estrangeiros eram desmentidos por reviravoltas políticas inesperadas como o Brexit e a vitória de Donald Trump, o comentariado português também vivia momentos de estupefacção. Nas legislativas de 2015, a vitória do desconhecido PAN no “campeonato” dos pequenos partidos, quando se esperava a chegada ao Parlamento de celebridades como Rui Tavares ou Marinho e Pinto, constituiu uma pequena surpresa, ultrapassada pelo que se passou nas semanas seguintes. Tendo em conta que a previsão mais comum dos analistas é que o futuro será semelhante ao passado, o aparecimento de circunstâncias inéditas, neste caso uma coligação parlamentar entre PS, BE e PCP, causou desorientação geral nos opinion makers. As previsões catastrofistas não concretizadas foram o efeito lógico da falta de imaginação e de precedentes. Já em 2017, quase ninguém antecipou a queda com estrondo de Pedro Passos Coelho após o mau resultado do PSD nas autárquicas. Apesar dos abundantes erros de previsão, nenhum dos comentadores pediu desculpa. Afinal, quem se enganou foi a realidade, não foram eles.

 

A que se deve tamanha insistência nos vaticínios relativos ao futuro político, como se o inesperado não existisse? Acima de tudo, à necessidade de preencher tempo de ecrã e espaço no papel ou no digital. Entretanto, muitas questões políticas e económicas revelam-se demasiado graves para serem deixadas ao sabor do acaso, pelo que o público, desejoso de um mínimo de previsibilidade que lhe permita “fazer planos do que virá depois”, exige implicitamente a realização pelos analistas de um trabalho análogo ao dos meteorologistas do IPMA. Por seu turno, a opinião publicada serve-se da futurologia não apenas para interpretar os factos, mas também para influenciá-los. Além de elaborarem augúrios favoráveis aos seus interesses pessoais e partidários, os videntes ajudam a criar dinâmicas de vitória e derrota capazes de influenciar os resultados eleitorais. Profetizar sucessivamente o triunfo ou o fracasso inevitável de um candidato pode estimular os votantes a colocarem-se do lado do provável vencedor ou, num raciocínio mais rebuscado, considerarem desnecessário o “voto útil”, já que o resultado está predefinido.

 

A natural inquietação humana com a incerteza do amanhã contribui para que as descrições de factos ainda não acontecidos proliferem nos media. Contudo, seria bom se os comentadores políticos acompanhassem as suas previsões das cautelas seguidas pelos seus colegas do desporto. Afinal, a política não é assim tão diferente do futebol, onde uma bola que entra ou não entra na baliza pode alterar o rumo de um jogo ou mesmo de um campeonato inteiro. Existem sempre cenários mais prováveis que outros, mas, se os comentadores fossem infalíveis, o muro de Berlim e as Torres Gémeas ainda estariam de pé.

Diabinhos

O Diabo, 10 de Julho de 2018

 

 

Cândido Morais: “ (…) em Portugal, uma grande fatia do Orçamento do Estado para a investigação é gasta na área da sociologia! O povo português está a pagar para que esses doutorados em materialismo marxista descubram a melhor forma de destruir a Família e outros valores morais herdados dos nossos antepassados! Por ser o maior e mais forte, o Partido Socialista é o principal instrumento ao serviço do marxismo em Portugal. (…)” (p. 22)

 

Isaías Afonso: “ (…) O jovem cretino que lidera a bancada (do PCP) não teve a mínima noção do “fair play”. O jovem mais parecia um boçal da estepe russa a debitar “boutades”, qual “langue de bois”, numa linguagem de cloaca, própria dum guardador de varas do Alentejo, isolado na planície do que foi o “celeiro de Portugal”. (…) Atente-se às respostas dadas pelo PM Costa, quando é interpelado pela líder do CDS. Um verdadeiro trauliteiro incomodado pelo conteúdo da interpelação. (…)” (p. 16)

 

J.A. Alves Ambrósio: “ (…) Há que reiterá-lo: malangina de nascimento, V. Ex.ª (Assunção Cristas) tem por trás essa linhagem de que os lusíadas de antanho e de sempre se orgulham. (…) Quatro filhos com pouco mais de 40 anos e uma vida familiar, profissional e política, cuja urgência se intui – bem como a vigorosa combatividade perante esse Costa sem carácter – merecem uma estátua. (…) Durante a campanha para as últimas autárquicas, o retrato de V. Ex.ª frente aos semáforos poentes da Av. de Berna mostrava-a antecipadamente vitoriosa, ou seja, concreção da tal linhagem dos nossos “egrégios avós” “d’aquém e d’além mar em África…” É da mais elementar justiça curvar-me perante os que, na capital, a identificaram, ipso facto dando-lhe o voto. (…)” (p. 18)

 

João José Brandão Ferreira: “ (…) O nosso comentador, perdão, Presidente, numa ânsia de consolar tudo e todos, “integrar”, aumentar a coesão (vá-se lá saber de quê), ser inclusivo, etc., anda numa fona participando em todas as manifestações religiosas (porque não as “seitas”?) – mesmo as que são insignificantes, não têm nada a ver com a nossa matriz cultural, ou até são suas inimigas; (…) embarca numa cruzada estúpida, demagógica e perigosa, em querer trazer toda a casta de “migrantes” para dentro do País (não se esqueça de arranjar umas tendas para montar nos jardins do Palácio de Belém); condecora todo o bicho careta que lhe aparece pela frente, incluindo gente de mau porte que conspirou contra o País; e permite-se participar numa “homenagem” a um cantor “rock” cujo único mérito pessoal conhecido foi ter conseguido recuperar-se do vício da droga, num espectáculo circense, pimba, pífio e de muito mau gosto, para onde conseguiu arrastar (ou foram eles que se juntaram?) o Presidente da AR e o Chefe do Governo. (…)” (p. 17)

 

Manuel Silveira da Cunha: “ (…) Enfim, esta confusa filosofia veganista que enferma o PAN quis acabar com a tourada, querendo impor mais uma vez uma visão urbana, adocicada, branda e mole, mansa, da vida a todos os portugueses. (…) É caso para dizer aos senhores do PAN: se não gostam de touradas não vejam, não vão. Não queiram é impor a vossa doutrina totalitária a um País inteiro, não queiram matar a nossa identidade e transformar o que sobra de Portugal num pitoresco campo de férias nudista e vegetariano para turistas alemães gordos e anafados, que ainda por cima comem salchichas (sic). (…)” (p. 6)

 

 

P.S. Eu sei que associar o CDS ao fascismo é um cliché gasto, até porque Assunção Cristas e Adolfo Mesquita Nunes (nascidos já em democracia) se apresentam como representantes de uma direita moderna e arejada. No entanto, não será embaraçoso para Cristas, líder de um partido chamado Centro Democrático Social, receber o apoio de saudosistas do Estado Novo que deploram a “abrilada” e os “abrilistas”?

 

Comichões

Algumas atitudes que não são particularmente graves, mas irritam:

 

1. Dividir a paisagem política entre os “lunáticos” da esquerda e as pessoas sensatas e responsáveis.

 

2. Atacar a “oligarquia” e as “elites bem pensantes”, definindo-as de uma forma tão vaga que ambos os termos parecem significar “toda a gente que aparece na televisão e não pensa como eu”.

 

3. Colocar-se no “lado certo da História” e cheirar o bafio dos que estão no lado errado.

 

4. Esperar ansiosamente que a aberrante Geringonça termine e todos voltem às suas posições normais no jogo político.

 

5. Elaborar previsões detalhadas sobre o que acontecerá a seguir às próximas legislativas e, já agora, antecipar o resultado das presidenciais de 2026.

 

6. Criticar a moleza da sociedade actual, em que todos fazem apenas o que querem e já ninguém se sacrifica pelo bem da família e do país.

 

7. Negar a hipótese do populismo triunfar em Portugal, esta terrinha de gente pacata onde tudo continua na mesma há séculos.

 

8. Reduzir a política ao contraste entre os bravos que lutam e os cobardes que negoceiam.

 

9. Denunciar os amiguinhos dos bandidos e o seu paleio sobre os direitos e garantias, impeditivos de uma justiça mais dura.

 

10. Dizer sempre “a culpa é nossa” ou dizer sempre “a culpa não é nossa”.