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Livros efémeros e outras notas

1. Apesar de toda a pressão para ler os clássicos e gostar dos grandes autores, continuam a fascinar-me os livros efémeros. Livros enquadrados nesta categoria costumam ser expostos em destaque nas lojas, alcançar os tops de vendas e obter uma ou outra referência na imprensa. No entanto, menos de um ano após o seu lançamento, já ninguém se lembra deles. Obras de auto-ajuda, biografias e autobiografias de celebridades no activo, livros baseados em textos de blogues ou páginas do Facebook e a maioria dos volumes sobre política ou futebol publicados em Portugal constituem exemplos de livros efémeros. Habitualmente surgidos para responder a temas da actualidade e/ou fornecer um veículo promocional aos autores, estes trabalhos depressa ficam datados, mas tornam-se documentos preciosos sobre um determinado período e resumos das ideias mais em voga no tempo em que nasceram. Apesar da existência de livros efémeros estar longe de ser nova, as variações no mercado e as necessidades financeiras urgentes das editoras contribuem para a recente proliferação deste tipo de obras nas livrarias.

 

 

2. Entrevistado pela revista da Bertrand, Somos Livros, o escritor Richard Zimler atribui a ascensão da extrema-direita à “ignorância em relação à própria história”, visível no voto dos americanos pouco instruídos em Donald Trump e no suposto desejo de Jair Bolsonaro de manter no Brasil “milhões de pessoas ignorantes, que votem num fascista”. Na verdade, as sondagens para a segunda volta das presidenciais brasileiras indicavam que Fernando Haddad apenas obtinha a maioria das intenções de voto entre os eleitores mais pobres e menos escolarizados, enquanto Bolsonaro dominava facilmente as preferências das elites e da classe média, dotadas de melhor educação. Além do acesso à informação, muitos outros factores, mais emocionais que racionais, influenciam as opções políticas, pelo que acreditar que uma boa educação das “grandes massas ignorantes” a que Zimler alude fá-las-á votar da maneira correcta revela-se ilusório. A um nível mais geral, duvido muito que a leitura de livros possa tornar o leitor uma pessoa melhor. Claro que os livros facilitam a transmissão do saber, mas não ensinam necessariamente a maneira de lidar com ele. Acima de tudo, as obras literárias constituem uma forma de passar o tempo nem mais nem menos válida que a música, o cinema, a televisão ou qualquer outra. Quando se pergunta a um leitor porque lê, a resposta mais directa e sincera continua a ser “porque gosto”. Tudo o resto é acessório.

 

3. Primeiro a televisão, depois os videojogos, agora a Internet. Ao longo das últimas décadas, houve sempre uma qualquer distracção a afastar os jovens do contacto com os livros. Da mesma forma, também existiram sempre vozes a lamentar a ignorância e a iliteracia dos portugueses mais novos, em óbvio contraste com os hábitos das gerações anteriores. Não há comentador que não tenha passado a adolescência a ler incessantemente, a discutir Dante e Shakespeare com os amigos e a escrever poemas num excelente português. É preciso relativizar todas estas queixas. Afinal, os compradores e consumidores de livros foram sempre uma minoria num país onde os analfabetos representavam ainda 40% da população maior de 7 anos em 1950, mas registaram-se desde então enormes avanços, estimulados pelo ensino, pela rede de bibliotecas públicas e pela crescente vulgarização da leitura no quotidiano. Actualmente, pessoas habituadas desde cedo ao imediatismo das redes sociais podem ter dificuldade em suportar a lentidão e a concentração necessárias à fruição dos livros. No entanto, estes últimos sobreviverão, como sobreviveram sempre, mesmo que tenham de se adaptar.

 

4. Uma biblioteca pessoal é um retrato do seu dono, podendo uma observação atenta detectar os gostos, manias, opiniões e até episódios da vida de quem reuniu um dado conjunto de livros. O número de obras, as línguas em que estão escritas, a sua disposição na estante, os autores mais frequentes, os temas e géneros predominantes ou ocasionais, a idade, o tamanho, o grau de conservação dos livros… Tudo pode ser útil para analisar, mesmo antes de uma pesquisa por datas, autógrafos, anotações, dedicatórias, trechos sublinhados e outras marcas escritas do bibliófilo. Terão os livros sido tijolos de um muro construído para separar o leitor do resto do mundo (sim, gosto dos Pink Floyd) ou revelam uma sucessão de viagens, contactos e experiências novas? Abundam no acervo os best-sellers ou textos obscuros lidos por minorias? Obras antigas compradas em alfarrabistas ou livros ainda a cheirarem a novos? Colecções completas ou volumes desgarrados? Além de revelarem pistas sobre o percurso dos seus criadores, as bibliotecas contribuem para preservar a memória individual e colectiva e transmiti-la às gerações futuras. Como pode alguém dispensar os livros em papel?

 

 

Alguém protesta? Sou contra!

Na série de livros As 10 Questões…, publicada pela D. Quixote, João César das Neves resume a situação económica portuguesa em obras destinadas ao grande público. Iniciada em 2011 com As 10 Questões da Crise, a colecção prosseguiu através de As 10 Questões da Recuperação (2013) e As 10 Questões do Colapso (2016). Neste último livro, César das Neves apontou como provável a curto prazo um cenário de colapso financeiro que obrigaria o país a pedir novamente ajuda externa, formulando a chamada “teoria do Diabo”. O fracasso da previsão expôs César ao escárnio da esquerda, mas, no seu novo trabalho, As 10 Questões do Interlúdio, o professor da Universidade Católica responsabiliza os seus “avisos e sinais de alarme” de 2016 pelo facto de se ter conseguido “adiar a catástrofe” (p. 10). O académico designa por “interlúdio” o período actual, situado entre a crise de 2008 e uma futura recessão e no qual a aparência de normalidade esconde que “nada voltará ao que era” (p. 12). No conjunto da obra, César das Neves procura arrefecer o optimismo do Governo de António Costa e realçar os perigos ainda a pairar sobre a economia nacional e mundial.

 

As primeiras três “questões do interlúdio” retratam o ambiente internacional, com João César das Neves a recorrer a uma perspectiva global para mostrar que se vive um período de prosperidade, marcado nas últimas décadas por avanços significativos na redução da pobreza e na melhoria do acesso à saúde e educação. Além de contestar a ideia de decadência, César rejeita a “arrogância intelectual” daqueles que falam de mudanças radicais em curso e tentam prever o futuro. Na verdade, muitas das inovações do presente seriam meros aperfeiçoamentos de invenções passadas. Por exemplo, “o impacto real da web é muito inferior ao que a televisão, o telefone ou o automóvel tiveram nos hábitos sociais do seu tempo” (p. 29). Trata-se, na minha opinião, de um enorme erro de análise, mas a afirmação integra-se no esforço de César em mostrar que nada há de novo debaixo do Sol. O economista católico não ignora, contudo, as perturbações criadas pelo progresso da globalização e o “perigo civilizacional” resultante do descontentamento, traduzido na chegada ao poder de Donald Trump e de uma vaga de populistas na qual César inclui nomes tão díspares como Putin, Erdogan, Salvini e Catarina Martins. A principal ameaça representada por Trump está no regresso do proteccionismo e na ruptura dos acordos comerciais (pouco receoso das alterações climáticas, César das Neves não menciona a saída americana do Acordo de Paris) ligados ao capitalismo liberal. Contra o extremismo e a polarização, César propõe “o regresso à solidariedade” defendido pelo Papa Francisco.

 

 

Em contraste com a agitação lá fora, Portugal “parece ter entrado num período mágico” (p. 73) durante o qual conquistas enumeradas por César das Neves, como o Europeu, a Eurovisão ou os cargos internacionais de António Guterres e Mário Centeno, reforçaram as boas vibrações. Na economia, César admite que a Geringonça, mais moderada do que ele previra (“Em Portugal os extremistas ladram mas não mordem”, p. 223), alcançou resultados positivos no crescimento económico, na redução do défice e da dívida pública, na queda do desemprego e na recuperação do investimento, mas considera que tudo ficou aquém do desejável, representando “Um alívio, não uma cura” (p. 86), até porque as necessárias reformas na estrutura do Estado pararam. O professor da Católica associa o crescimento da economia portuguesa ao legado de Passos Coelho e à conjuntura externa favorável, além de atribuir o sucesso orçamental de Centeno ao efeito das cativações e do aumento dos impostos indirectos. Talvez por considerá-la demasiado absurda, César nunca chega a desmentir a tese governamental da existência de uma relação entre a “reposição de rendimentos” e as melhorias económicas e financeiras. Indiferente a detalhes supérfluos, o autor justifica a sua oposição ao aumento do salário mínimo destacando o efeito negativo deste na criação de emprego, sem explicar porque é que tal não aconteceu nos últimos três anos.

 

Após apresentar as estatísticas económicas, João César das Neves costuma dar grandes saltos em frente para tecer considerações morais e políticas. O que mais incomoda César na época actual é ver os cidadãos a criticarem “as regras e as instituições básicas do sistema” (p. 53), ao invés de compreenderem que “tudo o que temos e somos devemo-lo à sociedade como ela é” (p. 71). As greves e manifestações são, no caso português, a marca dos “subversivos, resmungões e contestatários” da esquerda (pp. 142-143), agora calados por estarem no poder. Na verdade, não passam de “privilegiados” insaciáveis, apesar de possuírem mais direitos que os restantes trabalhadores. César não tem nada contra os ricos ou contra os pobres, mas as classes médias, superiores em número e beneficiárias da “linha política do interlúdio” (p. 189), mantêm despesas insustentáveis para o país, numa atitude irresponsável estimulada pelos políticos nos quais votam. A ausência de autocrítica, visível na atribuição ao euro e à UE das culpas da crise, contribui para “o excesso de gastos, a falta de poupança e a escassez de capital” (p. 225), fraquezas que tornam Portugal vulnerável a um qualquer abalo externo, do qual resultará o fim do interlúdio.

 

Os livros de João César das Neves possuem informação útil e apresentam de forma sucinta e acessível a leigos os principais traços da nossa economia. No entanto, mais do que apenas um economista, César das Neves é uma das principais referências do pensamento conservador luso, dotado de uma narrativa sobre o país que deseja o regresso dos portugueses a uma certa pureza original, perdida algures durante as quatro décadas após o 25 de Abril. Embora César recuse aproximações à extrema-direita trumpista, nada tem para oferecer ao povo além de dever e resignação. Entretanto, o catedrático aguarda pelo início da próxima crise económica, altura em que poderá soltar um triunfante “Eu bem avisei”.

 

P.S. Algumas frases de As 10 Questões do Interlúdio enfermam de falta de rigor, como se verifica no anacronismo de situar a “fundação” da democracia portuguesa em 1820 (pp. 126-127), uma vez que o conceito de democracia era diferente do actual durante o século XIX, quando o liberalismo impunha limites à soberania popular e “democracia” era sinónimo de “república”. De igual forma, afirmar que “Nos tempos áureos do império, Portugal foi o povo (sic) mais rico do mundo” (p. 232) é um lugar-comum sem nenhum facto a apoiá-lo.

 

Num filme sempre igual

O economista e professor universitário Nuno Garoupa, ex-presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos, constitui uma figura singular no conjunto da direita portuguesa. De acordo com a introdução do seu novo livro, A Direita Portuguesa: Da Frustração à Decomposição (Ego, 2018), Garoupa, membro da geração das personagens da série televisiva 1986, foi atraído para a política pela campanha de Freitas do Amaral, vindo a tornar-se militante do CDS. No entanto, sairia do partido em 2004, desiludido com a liderança de Paulo Portas e a incapacidade reformista dos governos PSD/CDS presididos por Durão Barroso e Santana Lopes. A partir daí, observou de forma independente, mas não imparcial, a evolução da política portuguesa, numa perspectiva transposta para artigos de opinião publicados na imprensa e na blogosfera e agora reunidos em dois livros de crónicas. O primeiro destes a vir a público centra-se na actividade de PSD e CDS no Governo e na oposição entre 2004 e 2018, embora os textos compilados incluam referências a outros temas, a que se somam por vezes comentários actuais de Garoupa sobre o sucesso ou falhanço das previsões feitas no passado pelo académico.

 

O primeiro capítulo da obra, designado por Nuno Garoupa como “A Frustração”, recupera dois ensaios antigos do autor sobre as “reformas estruturais” e a Constituição de 1976, mas centra-se sobretudo na colaboração regular de Garoupa com o Jornal de Negócios, iniciada em 2008 e durante a qual o economista abordou o descrédito dos governos de José Sócrates, acompanhado pela dificuldade da direita em construir um programa alternativo. A vinda da troika e a queda de Sócrates deram início à fase da “Desilusão” em 2011, quando Garoupa viu na crise económica a legitimação necessária às profundas mudanças de que Portugal carecia e considerou haver em Pedro Passos Coelho a vontade de as concretizar. No entanto, o executivo de Passos e Portas revelar-se-ia uma oportunidade perdida, devido à “completa ausência de um programa reformista, sério, consistente e coerente” (p. 12). Após uma pausa em 2013, Nuno voltou a escrever na imprensa sobre política nacional em vésperas das eleições legislativas de 2015, ponto de partida da “Decomposição” ainda em curso. Garoupa denunciou a negação do verdadeiro significado do resultado da PAF, marcado por uma forte perda de eleitorado, e os clamorosos erros estratégicos do PSD passista, sempre em crescendo até à derrota das autárquicas de 2017, a que se seguiram Rui Rio e a fragmentação da direita.

 

 

Um traço comum a toda a cronística de Nuno Garoupa é o profundo cansaço do autor com as rotinas da política portuguesa, um filme sempre com os mesmos actores, os mesmos diálogos e os mesmos efeitos nada especiais. Nuno gostaria de assistir a uma renovação partidária semelhante aos fenómenos ocorridos noutros países europeus, mas por cá mantém-se “tudo na mesma”, sem ameaças aos interesses da “elite dominante” dos principais partidos (p. 140), num país com uma sociedade civil débil e preso ao “Estado-paternalista” (p. 24). A ideia de uma “crise da direita” é também mencionada há vários anos por Garoupa, segundo o qual as culpas devem ser atribuídas em primeiro lugar à própria direita, desprovida de um programa e uma liderança credíveis. O actual prognóstico do comentador sobre a sua área política é francamente pessimista, destacando o risco de “spdização” do PSD (ou seja, a incapacidade dos “laranjas” de ultrapassarem uma faixa entre 20% e 30% do eleitorado) e a improbabilidade do CDS de Cristas alcançar grandes voos. Os novos partidos em formação poderiam ir de encontro às preocupações de Garoupa, mas, embora o artigo mais recente incluído em A Direita Portuguesa date de Abril de 2018, o autor manifesta descrença nas hipóteses de sucesso de um “partido personalista”, centrado na figura do seu líder, como a Aliança viria a ser. A Iniciativa Liberal e a “nova direita” (?) personificada por André Ventura também não parecem a Garoupa projectos capazes de atrair eleitores e contrariar o crescimento da abstenção.

 

Numa prosa bastante clara e escorreita, Nuno Garoupa traça um diagnóstico preciso da situação da direita e dos problemas actuais da democracia lusa, onde muitos cidadãos não se sentem representados pelos partidos do sistema. As críticas do economista contribuem para desfazer várias ilusões dos opositores da Geringonça, que ganhariam se ouvissem os alertas de Garoupa. Mas… o que estou eu a dizer? Nada disso! Rui Rio, claro que o seu estilo de fazer política vai trazer imensos votos. Pedro Santana Lopes, o senhor não só voltará ao Governo como pode pensar em mudar-se outra vez para S. Bento. Assunção Cristas, continue a fazer estrilho no Parlamento e verá o CDS subir cada vez mais nas sondagens. Sofia Afonso Ferreira, força aí na pá. A direita terá um futuro radioso e António Costa não sabe com quem se meteu.

 

"Fahrenheit 11/9"

O realizador Michael Moore alcançou a fama nos EUA com o filme Roger & Me (1989), mas só se tornou conhecido em Portugal a partir de 2003, quando Moore aproveitou a atribuição do Óscar de Melhor Documentário a Bowling for Columbine para fazer um discurso inflamado contra George W. Bush e a invasão do Iraque. No ano seguinte, o cineasta tentou sem sucesso evitar a reeleição de Bush através de Fahrenheit 9/11, documentário que gerou uma acesa discussão na nossa blogosfera, onde a esquerda considerou o filme digno da Palma de Ouro que recebera e a direita resumiu a obra a um monte de mentiras e manipulações. Durante os anos Obama, contudo, os ecos do activismo de Moore começaram a esbater-se, apesar do realizador ter vindo a Portugal filmar parte de E Agora, Invadimos o Quê? 14 anos depois da mediática polémica em torno de Fahrenheit 9/11, a nova longa-metragem de Michael Moore estreou num único cinema de Lisboa e praticamente sem referências fora das páginas de crítica cinematográfica. Na verdade, no meio de tantos conteúdos audiovisuais hoje disponíveis em todo o lado, um filme destes não chama a atenção de quase ninguém.

 

O cinema de Michael Moore é marcado pelo humor certeiro e pelo talento do americano obeso para expor as realidades mais inacreditáveis, mas também pelo egocentrismo de Moore e pela exploração do sofrimento alheio a que por vezes recorre. Um pouco disto tudo pode ser encontrado em Fahrenheit 11/9, que, tal como o seu antecessor de 2004, começa por imaginar que tudo não passou afinal de um pesadelo, antes de enfrentar a dura realidade, vivida agora sob a administração de Donald Trump. Desta vez, contudo, Moore não se limita a desancar o presidente dos EUA e procura lançar um olhar mais abrangente sobre a paisagem política americana. A profusão de acontecimentos referidos torna Fahrenheit 11/9 algo ineficaz na ligação entre os seus capítulos, com a história da contaminação da água de Flint, a terra natal do realizador, a parecer um filme dentro do filme. No entanto, a ideia de apresentar a devastada cidade do Michigan como um microcosmos dos Estados Unidos actuais revela-se compensadora.

 

 

Uma das lições deste documentário é a de que vivemos na era da polarização. Quando Moore entrevista eleitores democratas que se sentem traídos pela elite moderada do partido, percebe-se que a conversa sobre as eleições que se ganham ao centro e a classe média receosa do radicalismo já não faz grande sentido. De resto, surgem no filme várias das novas congressistas recentemente eleitas nas intercalares, mais próximas do anticapitalismo de Moore que da linha tradicional do Partido Democrata. Fica também claro como o discurso de Trump vai pouco a pouco transformando o impensável na nova normalidade. Há sempre quem diga que os Trumps e os Bolsonaros acabarão por ser controlados pelas instituições e pela necessidade de compromissos, mas antecipar o pior cenário e alertar para a fragilidade da democracia constitui a atitude mais prudente, antes que um dia destes mil Alcochetes aconteçam.

 

A gravidade da situação americana contribui para que Fahrenheit 11/9 seja menos chocarreiro que o habitual na filmografia de Moore e dominado por um apelo urgente à destruição do sistema viciado no qual Trump cresceu e venceu. A esperança do cineasta está nos jovens e em todos os resistentes que confrontam os políticos, fazem greves e manifestações e participam na democracia (ou seja, aquelas pessoas que Raquel Varela adora e João César das Neves odeia). Além de descrever uma época conturbada, Fahrenheit 11/9 reflecte sobre os erros da esquerda e o regresso às origens de que esta precisa para fazer os cidadãos recuperarem a fé na soberania do povo. Sem essa fé, o tempo dos presidentes vitalícios estará para ficar.

 

 

Um filme para… Pensarmos em como raio é que podemos sair disto.

Nota: 7/10.

 

P.S. Eram dispensáveis as insinuações de Moore acerca da suposta relação incestuosa entre Donald Trump e a sua filha Ivanka. Por outro lado, as imagens dos dois juntos são bastante creepy. Enfim, adiante…

 

Povo, povo, eu te pertenço

Durante o PREC, tudo parecia simples. De um lado estava a “classe trabalhadora”, do outro a burguesia, os capitalistas, os latifundiários, os monopolistas, “enfim, os parasitas”, no resumo de José Jorge Letria. Representados nos cartoons dos jornais de esquerda como um grupo de gordos (ainda não existiam gorduras baratas no mercado) de cartola, charuto, fato e gravata, os banqueiros e empresários saíam do país ou originavam apelos à união dos trabalhadores, através da qual, segundo Fausto, “espalhamos a morte entre esta cambada". No entanto, percebeu-se que havia vários povos dentro do povo quando manifestações de sinal contrário se referiram a si próprias através do slogan “Se isto não é o povo, onde está o povo?” Nas décadas posteriores à Revolução, a luta de classes acalmou, fruto da estabilização política, da maior mobilidade social trazida pelo impacto da adesão à CEE e da redução da mão-de-obra nas actividades económicas mencionadas na “música de intervenção” (pesca, indústria, agricultura) em simultâneo com o crescimento do Estado e dos serviços, entre outros factores propícios à expansão da classe média, enquanto as relações laborais passaram a orientar-se pelo princípio da concertação social. Nas telenovelas, os pobres não queriam derrotar os ricos, queriam ser iguais a eles. Nem o abalo da crise económica forneceu particular sucesso ao discurso classista de esquerda, com BE e PCP a serem mais prolixos no ataque às “imposições da União Europeia” que na crítica ao sistema capitalista.

 

Actualmente, o anti-elitismo constitui uma marca do discurso da direita, pródiga em referências à “oligarquia”, às “elites bem-pensantes” ou aos “Donos Disto Tudo”, cujo domínio estaria a provocar o descontentamento da maioria do eleitorado e explicaria a emergência dos fenómenos populistas. As eleições no Brasil foram consideradas por analistas como Rui Ramos, João Miguel Tavares e Manuela Moura Guedes a prova de que os eleitores já não obedecem às ideias políticas das elites e aos princípios julgados indiscutíveis por estas. Confrontados no seu quotidiano com problemas a que o establishment não consegue dar uma resposta capaz, os populares europeus e americanos estariam a optar por soluções de ruptura, numa situação a que Portugal poderá não escapar caso o regime da Constituição de 1976 mantenha o seu bloqueio e a falta de reformas. Existe, no entanto, uma incógnita: quem faz parte das elites? Os comentadores referem-se a elas num tom de “vocês sabem do que eu estou a falar”, mas são parcos em exemplos de personalidades e grupos sociais colocados em posições de topo. A “oligarquia” que Rui Ramos tanto despreza aparentemente não integra os accionistas do Observador, mas apenas uma vaga faixa de dependentes do Estado situada algures entre Rui Rio e Mário Nogueira. Poder-se-ia pensar que os anti-elitistas se referem aos políticos tradicionais, ocupantes frequentes dos cargos públicos, mas, nesse caso, porque é que Cavaco Silva e Passos Coelho, com décadas das suas vidas dedicadas à política, não fazem parte do “sistema” decadente?

 

Numa posição surpreendentemente idealista, a direita considera a produção cultural mais influente que o poder económico e emite abundantes queixas relativas ao domínio dos media, das artes e da educação pela esquerda, que se serviria dessas posições para moldar ao seu gosto o pensamento das massas. O efeito hipnótico estará, no entanto, a desvanecer-se, servindo o exemplo brasileiro para João Miguel Tavares avisar as “elites artísticas, intelectuais e jornalísticas” (nas quais Tavares se auto-inclui) de que o “povo” já não segue as suas orientações e, embora acompanhe o trabalho de figuras da cultura de esquerda, não vota em quem elas indicam. Na verdade, existem motivos para questionar se isso alguma vez aconteceu. No caso português, os numerosos artistas e intelectuais ligados ao PCP e à extrema-esquerda no final dos anos 70 não impediram as vitórias eleitorais da AD. Quanto aos comentadores políticos, mesmo quando estes eram poucos (antes da “explosão” trazida neste século pelos canais de notícias), não haveria muita gente a orientar o seu voto por aquilo que Vasco Pulido Valente ou Miguel Sousa Tavares escreviam na imprensa. Já no presente, o artista engagé constitui uma espécie rara, quando se espera das celebridades que tenham muitos sentimentos e falem constantemente da sua vida privada, não da situação política.

 

 

As críticas dirigidas às “elites” visam não tanto aquilo que fazem, mas sobretudo aquilo que dizem e o facto das suas opiniões não acompanharem o suposto sentimento do cidadão comum. Assim, enquanto as “elites” vivem protegidas numa bolha, o “povo” sabe o que custa a vida. Ao passo que as “elites” iludidas julgam que podemos ser todos amigos, o “povo” identifica os riscos trazidos pelo fluxo de imigrantes e refugiados. As “elites” adoram falar dos direitos das minorias, o “povo” tem coisas mais importantes em que pensar. Os ateus pedantes das “elites” desprezam a religião cristã, cujos princípios são preservados pelo “povo”. Os sindicalistas ligados às “elites” fazem greves e manifestações, apesar do “povo” só querer trabalhar e criar empresas. A hipocrisia do “politicamente correcto” das “elites” contrasta com a rudeza sincera do “povo”. De uma maneira geral, as “elites” desejam mais Estado, mais impostos, mais regras, menos polícias, mais “cultura” que ninguém vê, mais homossexualidade e mais RTP2, enquanto o “povo” exige menos subsídios, mais armas, mais anos de cadeia, mais futebol, menos Islão e mais CMTV. As “elites” são Isabel Moreira. O “povo” é André Ventura. No meio de tudo isto, não sei quem é mais insultado, as elites ou o povo (agora sem aspas).

 

Num mundo em que um milionário nova-iorquino se apresenta como a voz dos pobres e excluídos e um ex-militar apoiado pelos grandes empresários anuncia ir libertar o povo brasileiro da elite corrupta, o anti-elitismo tornou-se uma arma das verdadeiras elites e uma forma de silenciar quem resista à tendência crescente para agravar a violência das práticas e dos discursos. A distinção povo/elites revela-se ainda insuficiente para compreender o fenómeno político. Numa sociedade individualista, onde as redes sociais reforçam a atomização e o isolamento, factores como a classe social ou o nível de escolaridade dos eleitores terão a mesma influência de outrora nas escolhas destes? Apenas estudos académicos poderão responder a esta dúvida.