Por este Rio acima
Ao longo de dois anos e meio como presidente do PSD, Rui Rio nunca fez muitos amigos dentro da sua área política, mas o acordo com o PS para a extinção dos debates quinzenais na Assembleia da República foi a gota de água que levou inúmeros anti-socialistas a declararem que, se pudessem, desembainhariam a espada para trespassar o traidor revisionista. Na verdade, o dirigente social-democrata tem sido sempre um incompreendido, causando a estupefacção genuína de jornalistas e comentadores (“Mas o homem é doido?!”) pelo seu comportamento bizarro e aparentemente dissonante das actuais convenções da política portuguesa. De resto, a antipatia instantânea entre Rio e a comunicação social ajudou o portuense a ser feito em picadinho com dedicação pelas gazetas e pelas tertúlias televisivas. O certo é que, apesar de todas as críticas, vinda mais da direita que propriamente da esquerda (ela própria algo baralhada com um líder do PSD sempre a despir o fato tradicional), Rio permanece na liderança do PSD e mantém-se mais estável no cargo do que muitos antecipavam.
Depois de uma surpreendente vitória nas autárquicas de 2001, Rui Rio foi o presidente da Câmara do Porto com a coragem de enfrentar um Pinto da Costa cuja mão direita era então osculada por todos os outros políticos, mas também o edil birrento envolvido em conflitos inúteis com músicos como os GNR e Pedro Abrunhosa. Mesmo assim, ganhou uma imagem de homem de acção e político moderado. Nos idos de 2013, quando o Governo PSD/CDS ameaçava implodir e Portugal vivia o seu pior momento económico pré-Covid, algumas vozes na imprensa ansiavam para que os autarcas de Lisboa e Porto transformassem as suas boas relações numa aliança política, tomando conta dos respectivos partidos e estabelecendo um acordo de salvação nacional. António Costa conquistou o PS no ano seguinte, mas Rio teria de esperar pelo colapso do passismo em 2017 para avançar para a liderança do PSD e obter a vitória sobre Santana Lopes nas eleições internas, então atribuída ao facto dos militantes “laranjas” considerarem Rio um candidato mais forte a primeiro-ministro. Em contraste com a radicalização discursiva preconizada pelo Observador e derrotada nas autárquicas, Rui Rio anunciou uma viragem ao centro do PSD e uma aproximação ao PS com a qual Rio ganhou mais fama que proveito. Ultrajado, Rui Ramos começou a escrever as até agora 329 crónicas (números da última segunda-feira) nas quais explica a Rio que os socialistas não são potenciais aliados, mas sim inimigos a abater como cães. Pelo meio, o caminho do PSD até às legislativas foi no mínimo animado, entre casos na entourage de Rio, constantes querelas internas, um desafio falhado com o qual Luís Montenegro fez figura de parvo e resultados desastrosos nas europeias. As sondagens do início de Setembro de 2019 apontavam números na ordem dos 20-21% dos votos para o PSD. De repente, contudo, a nuvem negra que perseguia Rio passou a chover sem parar sobre a cabeça de Assunção Cristas e o economista nortenho fez uma campanha eleitoral inspirada, aproveitando os receios de uma maioria absoluta do PS para alcançar um score superior ao esperado, com o prestígio de Rui a evitar uma derrocada do PSD no Grande Porto semelhante à de Lisboa. Assim, após uma noite eleitoral em que vibrou com o segundo lugar e puxou do caderninho onde apontara os nomes de todos os que o tinham chateado, Rio decidiu recandidatar-se ao trono laranja e, mesmo sem esmagar, derrotou um Miguel Pinto Luz criado a pensar nas eleições seguintes e um Montenegro que nem os seus apoiantes viam a liderar fosse o que fosse. Até que chegou a pandemia e Rio adoptou uma postura “patriótica” de colaboração com o Governo que caiu bem num ambiente de acalmia política forçada pelo medo. Quando esse nevoeiro se dissipou, Rio aproveitou para mudar o regimento da AR e reavivar o incêndio na direita fragmentada.
Resoluto, Rui Rio retoma rigorosamente (OK, já chega) um modelo já apresentado com sucesso pelos presidentes Eanes e Cavaco: o político que não gosta de políticos. De resto, é sempre com algum enfado que Rio menciona o PSD, um partido cheio de gente oca e enredada em questiúnculas pessoais mas a que infelizmente tem de presidir para poder um dia governar. Essa visão do político como alguém que faz coisas, mais do que alguém que diz coisas, está ligada ao antiparlamentarismo de Rui, para quem a Assembleia não deve fazer os governantes perderem tempo a ouvir perguntas parvas e discursos inúteis, como se já não tivessem de aturar jornalistas parciais e irritantes e magistrados do Ministério Público sempre em busca de mais poder. Em inúmeras ocasiões, Rui enumerou comportamentos condenáveis dos políticos portugueses para acrescentar em seguida a frase “Isso é uma coisa que não faço”, por mais fácil que esse caminho pudesse ser. Desde o início da sua liderança, Rio procura passar a imagem de um homem sério, honesto, credível, razoável e patriota que põe o interesse nacional à frente dos seus interesses pessoais e partidários. Trata-se de um neocavaquismo que atrai ainda um vasto eleitorado disponível para o acolher, até porque Rio baseia as suas opções numa espécie de senso comum pequeno-burguês, não em princípios ideológicos retirados dos autores clássicos do pensamento político.
O estilo de Rio, tal como o dos seus predecessores na personagem que encarnou, afasta-se do radicalismo verbal que afastaria o eleitorado mais ao centro. Na retórica do presidente social-democrata, abundam improvisos, parênteses, reduções do tom de voz, considerações laterais ao tema abordado e uma mitigação de qualquer revolta com as palavras “agora, também não vamos…”, opostas aos exageros demagógicos típicos dos políticos de quem Rui se distingue. Esta oratória nada galvanizante não levou propriamente ao rubro os participantes nos congressos “laranjas” que entronizaram Rio, mas apela aos eleitores pouco apreciadores de gritaria, bem mais numerosos do que as redes sociais indicam. Pegando numa frase dita por André Silva num debate com Rio, o antigo autarca é visto hoje por muitos como um representante daquela direitazinha dos anos 80, a década de Freitas, Balsemão e Cavaco, quando os então poucos liberais e fascistas eram obrigados a aceitar como mal menor aquele discurso pragmático, tecnocrático e ideologicamente asséptico do PSD hegemónico. Nesses tempos duros, Sá Carneiro ainda era recordado como um homem e não se tornara uma bola de plasticina moldável à nossa vontade, enquanto o PS beneficiava da memória do PREC para ser visto como um parceiro em reformas que isolavam o PCP. Para Rui Rio, eram anos doces em que até havia bons discursos no Parlamento. Para os seus opositores, voltar a essa modorra é o mesmo que passar o MacGyver em horário nobre fora da RTP Memória.
Se as sondagens não revelam uma subida do PSD nas intenções de voto após as legislativas, o certo é que também não detectam uma descida significativa, indicando uma estabilização à volta dos 25%, quando grande parte dos eleitores e militantes do PSD que supostamente iriam deixar o partido para se juntarem à “verdadeira” direita do Chega e da Iniciativa Liberal já o fizeram. Neste contexto, Rui Rio parece ter decidido esperar que a crise económica e o desgaste do poder abalem o PS e equilibrem os pratos da balança, numa jogada política conhecida como “táctica Durão Barroso”. A verdade é que já não estamos no início do século e os cálculos do boavisteiro podem sair errados, até porque o PSD enfrenta problemas estruturais ligados à sua ruralização e perda de influência nas grandes cidades. Contudo, subestimar Rui Rio e apontá-lo como um líder a curto prazo será um erro crasso. Afinal, os políticos que anunciam aos quatro ventos o seu desapego ao poder são os mesmos que, quando chegam lá, nunca mais saem.