O manicómio redondo
Corre-se o risco de Joaquín Lavado, o desenhador argentino mais conhecido por Quino (1932-2020), ser recordado exclusivamente pela criação de Mafalda, quando a obra do humorista gráfico é bem mais vasta e possui muitos trabalhos com uma qualidade semelhante ou superior à das tiras da menina contestatária. Numa comparação algo bizarra, seria como se Luís de Camões fosse considerado apenas o autor de Os Lusíadas, ignorando-se toda a restante poesia do vate. Em Portugal, onde Quino esteve em 2003 para promover o álbum Quanta Bondade!, os livros do autor encontram-se dispersos por várias editoras e, apesar da perenidade de Mafalda, cujo meio século de presença no nosso país mereceria um texto à parte, as compilações mais antigas de cartoons de Quino (Mundo Quino, Gente, Não Me Grite!, Sim… Meu Amor!, Bem, Obrigado, e Você?, etc.), publicadas pela Dom Quixote na colecção Humor com Humor se Paga, não são reeditadas há muito tempo. No final dos anos 90, porém, ainda era fácil para um miúdo como eu descobrir a obra completa de Quino e ficar maravilhado com aquele humor ao mesmo tempo simples e complexo, realista e absurdo, sisudo e irreverente, datado e tão actual. Não exagero se disser que o génio da BD argentino foi um dos autores dos séculos XX e XXI que mais me influenciaram até hoje.
Como é sabido, Quino escreveu e desenhou entre 1964 e 1973 a série Mafalda, composta por tiras publicadas diariamente e depois semanalmente na imprensa argentina e cuja reprodução em livros depressa alcançou grande popularidade na Europa e noutras regiões do mundo. Podemos comparar o universo de Mafalda com outras séries de BD protagonizadas por crianças, como a influente Peanuts, de Charles Schulz (que a própria Mafalda lê), ou a Turma da Mônica, criada pelo também sul-americano Maurício de Sousa. No entanto, as diferenças são múltiplas. Charlie Brown e outros miúdos americanos vivem num mundo limitado, do qual Snoopy foge através da imaginação, e preocupam-se sobretudo com as suas inseguranças e amores não correspondidos, enquanto Mônica e o grupo por si liderado são crianças a agir como tal num Brasil dulcificado pela fantasia. Por seu turno, Mafalda, os pais, o irmão e os amigos (Filipe, Manelinho, Susaninha, Miguelito e Liberdade, na versão portuguesa) aparecem como habitantes do mundo real, ouvem os Beatles e acompanham a actualidade através da rádio, dos jornais e da recém-chegada televisão. Perante o contexto da Guerra Fria, da ameaça nuclear e, a nível nacional, das oscilações da Argentina entre a ditadura e a democracia, Mafalda enfrenta a incompreensão das outras personagens e começa a pensar e questionar, combinando o sofrimento e a vontade de lutar por um mundo melhor. Para lá da análise política, destaca-se o talento humorístico de Quino e a habilidade do artista na articulação das diferentes personalidades das suas criaturas. Apesar do êxito, a criatividade de Quino foi-se desgastando à medida que o desenhador se cansava das limitações do espaço da tira, até decidir regressar ao modelo dos cartoons que explorara antes do nascimento de Mafalda. O facto desta continuar, após quase 50 anos sem novidades, viva e marcante ao ponto de sobreviver ao seu criador constitui uma prova espantosa da capacidade de Quino de compreender o mundo.
Os trabalhos pós-mafáldicos de Quino abordam com um misto de nonsense e mordacidade um vasto conjunto de temas como o amor, a arte, a morte, a comida, a família, a medicina, o ambiente, a tecnologia e muitos outros. Apesar da diversidade temática e da evolução do traço e da linguagem do autor (talvez menos eficaz quando se alarga no texto ao invés de exprimir a mensagem apenas por imagens com uma breve legenda), existe uma linha de continuidade ao longo do tempo. Politicamente, Quino revela uma perspectiva de esquerda focada nas desigualdades sociais, visível nos seus numerosos desenhos de ricos mergulhados no luxo enquanto ignoram, oprimem ou desprezam a maioria da população, assolada por dificuldades quotidianas para sobreviver. Contudo, o humorista vai além da espuma dos dias ao identificar com assombrosa precisão os mecanismos do poder, independentemente deste ser exercido num país, numa empresa, numa família ou dentro de um casal. Como o próprio Quino admite ao autocaricaturar-se, o seu olhar sobre a vida está longe de ser optimista e, à medida que os anos passam, vê o mundo a piorar em vez de melhorar. Neste cenário, uma vez observada a confusão que vai no planeta, só nos resta enlouquecermos ou aproveitarmos para rir do absurdo que tudo comanda. Quino escolheu a segunda opção e, de facto, é ela que permite obter uma relativa serenidade e ganhar o impulso para iniciar a mudança das coisas. No prefácio à antologia Quino, 60 Anos de Humor (Documenta, 2017), José Pablo Feinmann compreende isso ao afirmar que, com o seu “impiedoso cepticismo” de quem não acredita em utopias, “Quino impele-nos a isso: ao futuro, à coragem, às nossas mais verdadeiras potencialidades”.
O legado de Quino, autor de uma obra dominada por esse olhar melancólico de quem ri para não chorar, reside no apelo à inquietação e ao questionamento dos dogmas e clichés, facilitado pela consciência de que todos somos ridículos e o poder é feito de aparências que ocultam a sua verdadeira fragilidade. Ao nível específico da BD, o sul-americano deu a formatos como a tira ou o cartoon um impacto, um significado e uma durabilidade bem maiores do que se poderia imaginar antes dele. Através de desenhos aparentemente simples, mas dotados de uma grande atenção ao pormenor, Quino foi desde a década de 60 um dos artistas que melhor explicaram o que é esta coisa trágica e hilariante de ser humano. Nunca lhe saberemos agradecer por tamanho feito.