O ano político de 2020 assinalou o fim definitivo do tempo de Cavaco Silva, não apenas pelo facto de já ninguém, excepto algumas criaturas geradas no laboratório do professor, ligar àquilo que este diz e escreve, mas também pelo desaparecimento do cenário que acompanhou a história do cavaquismo. Longe vão os anos em que o então primeiro-ministro Cavaco governava como um déspota algarvio apoiado nas suas maiorias absolutas, tal como aqueles durante os quais o Presidente Aníbal apelava sem cessar a acordos de médio prazo entre o PS e o PSD, com o CDS a servir de assessor e os partidos mais à esquerda presos para lá do muro. Vivemos agora na época da fragmentação. Cada lugar na Assembleia da República pode ser decisivo.
Como é sabido, a soma das votações obtidas nas legislativas por PS e PSD desceu progressivamente entre os quase 80% dos anos 90 e os apenas 64,55% (o valor mais baixo desde 1985) das eleições de 6 de Outubro de 2019. A lenta erosão dos partidos do Bloco Central é explicável pelos muitos anos, governos, casos e processos, mas também podemos apontar a PS e PSD o erro de terem tomado a sua posição como garantida e falhado na atracção de novos públicos, enquanto o crescimento da abstenção afastou das urnas parte do eleitorado que costumava flutuar entre a rosa e a laranja. Actualmente, os socialistas não conseguem ultrapassar os 40% e o PSD enfrenta problemas estruturais que estão a transformá-lo num partido mais rural que urbano e mais do Norte que do resto do país. Os estudos académicos revelam, entretanto, que os eleitores portugueses são cada vez mais infiéis. Os casos de pessoas que votam sempre no mesmo partido têm vindo a rarear e, apesar do ruído feito nas redes sociais pelas franjas mais politizadas, o voto é crescentemente decidido em função das personalidades dos candidatos e do contexto em que decorre cada acto eleitoral, com a ideologia a ficar em segundo plano. Pelo meio, o êxito da Geringonça sabotou o “voto útil” e desmentiu a necessidade de maiorias absolutas para assegurar a estabilidade política. Neste momento, pela primeira vez desde a sua criação em 1976, ambas as Regiões Autónomas são geridas por governos sem maioria absoluta. No caso dos Açores, foi necessária uma aliança entre cinco partidos para permitir um executivo adaptado à inédita fragmentação da Assembleia Regional, num prenúncio do futuro.
Os “pequenos” partidos deveriam ser os principais beneficiários da transferência de votos outrora integrados nas vastas bases de apoio de PS e PSD, mas nenhum deles parece sentir-se confortável com o espaço de que dispõe no Parlamento. O Bloco de Esquerda bateu no tecto dos 10% e procura uma reorientação estratégica que o devolva à expansão, enquanto o PCP vive um longo declínio que o fragiliza, embora não ao ponto de o fazer desaparecer, como pode acontecer a um CDS sem rumo e desprovido da sua missão histórica. Depois das alegrias de 2019, o PAN enfrentou dissidências e novos limites à sua progressão, com a Covid-19 a retirar espaço político ao ambientalismo. Por seu turno, o Livre, agora sem representação parlamentar, tornou-se a Aliança da esquerda, ou seja, totalmente impotente e irrelevante. A Iniciativa Liberal está ainda a fazer o seu lento caminho no sentido da consolidação e o Chega, depois de uma invulgar subida vertiginosa nas intenções de voto, estabilizou no seu nicho. As sondagens revelam o agravamento da tendência de fragmentação da Assembleia da República, já que nem PS nem PSD registam subidas significativas e, entre o terceiro (Bloco/Chega) e o oitavo classificado (CDS ou IL) de cada inquérito, a diferença não costuma ultrapassar os 4%. O Parlamento torna-se assim uma soma de minifúndios pouco produtivos e limitados pelas fraquezas dos proprietários das diferentes parcelas.
Esta situação não seria necessariamente má, uma vez que traduz melhor a pluralidade social e ideológica do país, obriga o Governo a negociações permanentes que evitam derivas autoritárias e confere ao Parlamento uma importância no sistema que pode fornecer aos deputados uma revalorização do seu estatuto superior à trazida pela eventual criação de círculos uninominais. No entanto, já existem sinais de malefícios a curto prazo. Ao dirigirem-se a sectores cada vez mais restritos do eleitorado, os partidos tendem a radicalizar o discurso para mobilizar os seus poucos seguidores inabaláveis, levando a uma maior crispação. A retórica centra-se ainda mais naquelas frases bombásticas que dão bons vídeos para o You Tube mas não resolvem quaisquer problemas concretos. As forças com menos cadeiras, ao aperceberem-se do poder de bloqueio que o novo cenário lhes fornece, tornam-se mais exigentes perante os pedidos de apoio dos “grandes” e reclamam contrapartidas cada vez maiores. Os deputados focam-se apenas em causas muito específicas e, para satisfazê-las, os ministros recorrem à limianização, numa distribuição de cedências que permita a aprovação do Orçamento de Estado. Maiorias bizarras e voláteis criam obstáculos à acção governativa e impõem despesas inesperadas. O dono da coelha Acácia sabe que lhe basta meter o seu pauzinho para fazer a engrenagem parar e fica sentado à espera das oferendas dos outros líderes da direita. Em resumo, tudo se torna mais precário, instável e imprevisível, num equilíbrio sempre à beira da ruptura, e se esta acontecer as eleições seguintes criarão um quadro ainda mais confuso. É neste terreno de jogo que a política portuguesa se moverá nos próximos anos, com o Presidente da República, único elemento de consenso e apoiado numa votação esmagadora, a sofrer a tentação de intervir mais para acalmar a turbulência.
Há que dizer que a fragmentação está actualmente longe de ser um fenómeno exclusivo da política. Os produtos comerciais visam públicos cada vez mais específicos e, no cinema, na música ou na televisão, abundam projectos com amplo sucesso dos quais a maioria da população nunca ouviu sequer falar. A pandemia assumiu-se como a grande fragmentadora, ao fechar cada um de nós na sua casa, distinguir concelhos por níveis de risco e produzir efeitos económicos e sociais heterogéneos que agravam as desigualdades. Nunca estivemos tão divididos e repartidos por fatias. Curiosamente, a excepção é o futebol, no qual os jogos da selecção nacional são vistos em directo por todo o país e os três maiores clubes nunca perdem adeptos para as colectividades mais pequenas.
P.S. Ao fazer uma referência ao episódio do queijo Limiano, ocorrido em 2000, reparei que poucos portugueses nascidos depois de 1995 saberão do que estou a falar. É o mesmo que mencionar a UEDS e a ASDI numa conversa com a minha geração. Estamos a ficar velhos…
Numa altura em que se aproximam os debates da campanha para as eleições presidenciais (bocejo), é inevitável imaginar outros confrontos verbais, nunca realizados até agora, que poderiam proporcionar momentos de verdadeira discussão acerca de temas relevantes. Nesse sentido, lanço algumas ideias para arrojados duelos a organizar no espaço público. Quanto a convencer as personalidades referidas a participar e arranjar-lhes tempo de antena na rádio, na televisão ou na Internet, isso já não é comigo.
Irene Flunser Pimentel Vs. José Rodrigues dos Santos: Se Pimentel não conhece os romances de Rodrigues dos Santos, também não há indícios de que este tenha lido as investigações historiográficas da autora de A História da PIDE. Assim, os dois partiriam do mesmo ponto para uma discussão sobre o Holocausto, com Irene a sintetizar a cronologia do genocídio, enquanto Zé apresentaria as novas informações por ele descobertas e que mais nenhum português conhece. Ambos passariam rapidamente a abordar o conjunto da história do século XX, usada como pano de fundo em várias ficções do jornalista. Se houvesse tempo, seria bom que Irene comentasse as definições da literatura e dos seus objectivos feitas por Zé nas entrevistas em que nenhum dos colegas deste verdadeiramente o questiona. No final do debate, mesmo que Pimentel denunciasse Rodrigues dos Santos como um charlatão, o criador das aventuras de Tomás de Noronha (esse sim, um historiador a sério sem as manias da elite) sairia do ar com um sorriso e uma piscadela de olho. Afinal, teria ganho mais publicidade aos seus livros e a ocasião de aparecer como uma vítima incompreendida.
Raquel Varela Vs. Henrique Raposo: A princípio, teríamos um clássico debate esquerda-direita, com Raposo a proclamar-se um homem de Deus, da Pátria e da Família, enquanto Varela exaltaria as classes, o trabalho, a Revolução. Com o correr do tempo, os debatentes aperceber-se-iam, surpreendidos, dos traços que possuem em comum. A repulsa instintiva por ecologistas, animalistas e esquerdistas “identitários”. O orgulho na coragem e independência que ambos mostram durante a pandemia enquanto os burgueses cobardes entram em pânico e aceitam todas as restrições. O desprezo pelas elites urbanas que não enfiam as mãos na terra. A noção de serem heróis da classe trabalhadora sempre à espera do reconhecimento desta. Se estivéssemos em condições normais, Raquel e Henrique dariam um forte abraço depois de tirarem os microfones.
Octávio Ribeiro Vs. Pedro Marques Lopes: O comentador portista é talvez a pessoa ideal para confrontar o poderoso director do Correio da Manhã e da CMTV, encarnação do estilo tablóide. Marques Lopes está fora do jornalismo, mas também perto dele, mantendo a crença na importância de media rigorosos para a qualidade da democracia, além de recordar como poucos os sucessivos atropelos à ética cometidos pelo canal e jornal de Ribeiro. Um diálogo entre os dois permitiria saber se as chefias do grupo Cofina imaginam guiar-se por uma dada filosofia ou têm plena consciência de serem mercenários capazes de tudo por dinheiro. Mais cedo ou mais tarde, chegaria o momento em que Octávio diria “Tudo isso é muito lindo, mas eu dou, perdão, nós damos ao público aquilo que ele quer”. Da resposta de Pedro dependeria o resultado da batalha pela alma da imprensa portuguesa.
Rui Tavares Vs. Padre Gonçalo Portocarrero de Almada: É sempre interessante ver um debate entre um sacerdote católico e um ateu interessado pela religião que analisa várias questões da Igreja a partir de fora. As diferenças entre Tavares e Almada vão, porém, muito além disso. O historiador possui influências libertárias, na origem de uma atitude de tolerância para com culturas diferentes e de não interferência do Estado nos comportamentos individuais. O partido que Rui fundou chama-se, precisamente, Livre e rege-se por uma descentralização do poder que confere aos militantes autonomia face à direcção (talvez até demais). Já o padre Gonçalo é conhecido como o porteiro da discoteca de Deus, mostrando-se um vigilante inflexível desprovido de piedade para com desvios das normas às quais o crente tem de obedecer sem protestar, além de ser um crítico mordaz do laicismo radical que intelectuais como Rui Tavares supostamente divulgam. Juntar na mesma sala dois homens com maneiras tão opostas de estar na vida só pode gerar uma estimulante controvérsia.
Direita dos salões Vs. Direita das tascas: Neste caso, a identidade das figuras convidadas poderia variar, assistindo-se ao confronto de duplas como Adolfo Mesquita Nunes e Chicão, Miguel Poiares Maduro e Miguel Pinto Luz ou Pedro Mexia e Rui Ramos. O importante seria esclarecer as razões da divisão entre as duas direitas, que ainda há pouco tempo pareciam unidas numa mesma luta. No entanto, observa-se agora uma perplexidade da “direita democrática” com a deriva no sentido do “extremismo” de uma vasta falange de políticos e colunistas descontentes com a ingenuidade dos “fofinhos” da “direita de que a esquerda gosta”. Seria útil comparar a linguagem utilizada por uns e outros, através do contraste entre os esforços de uma ala por manter a polidez e a subtileza típicas do gentleman conservador, enquanto a outra procura a todo o custo ser “popular” e falar da maneira de que os “portugueses comuns” gostam. Não haveria propriamente um vencedor, mas uma apresentação de caminhos diferentes para o futuro do “espaço não socialista”.