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Desumidificador

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Ainda há tempo?

Já resumi aqui os primeiros 41 anos de história do CDS. Depois disso, Paulo Portas concentrou-se em tornar-se rico e fazer política na TVI, deixando o caminho livre para a sua discípula Assunção Cristas (“Boss AC”), escolhida como solução de consenso dentro do partido. Cristas criou progressivamente uma marca própria, ao apostar na omnipresença mediática, e procurou combater a imagem de satélite do PSD que se colara ao CDS, distanciando-se dos “laranjas” à medida que Passos Coelho se desgastava. O vice-presidente centrista, Adolfo Mesquita Nunes, começou a destacar-se pela sua inteligência, moderação e habilidade política. Nas autárquicas de 2017, Cristas surpreendeu ao alcançar o segundo lugar em Lisboa, embora o resultado nacional do CDS tenha sido exíguo. As hostes da bola ao centro viveram um período de ilusório entusiasmo, semelhante ao que a extrema-esquerda conhecera em 1976 ao ver Otelo Saraiva de Carvalho penetrar no eleitorado do PCP e alcançar o segundo lugar nas presidenciais. A viragem ao centro do PSD de Rui Rio desviaria teoricamente muitos eleitores para a verdadeira direita, que a “futura primeira-ministra” Assunção tentou encarnar em ruidosos despiques nos debates quinzenais com António Costa. Com o passar do tempo, as sondagens desmentiram essa esperança. Mesquita Nunes abandonou a direcção do CDS para administrar a Galp e o seu partido entrou num desnorte cada vez maior. O estilo da direita miguelista de Nuno Melo levou a um mau resultado nas europeias, pelo que Assunção Cristas tentou corrigir o rumo e marcelizar a sua imagem, com uma aproximação ao cidadão comum baseada mais na emoção que na ideologia, visível na exibição da família de “Boss AC” nas redes sociais e no inesquecível livro Confiança. No entanto, nada resultou e, durante a campanha para as legislativas, enquanto Rio desabrochava, Cristas mergulhava cada dia mais no desespero. Votos na urna, CDS com apenas cinco deputados, Assunção demissionária, Chega e Iniciativa Liberal a ocuparem terras no antigo latifúndio azulado.

Depois de um período de receio generalizado em ocupar aquele que passara a ser um dos piores empregos do mundo (presidente do CDS), acabaram por surgir seis candidatos, que se reduziriam a apenas dois durante o congresso de Janeiro de 2020. De um lado, um ex-presidente do Belenenses, João Almeida, aceitava sem grande convicção a tarefa de representar o legado da direcção de Assunção Cristas. Do outro, o antigo dirigente do Sporting Francisco Rodrigues dos Santos, conhecido nos bastidores da política por “Chicão”. Nos três anos anteriores, Francisco destacara-se como líder da Juventude Popular e, em Janeiro de 2018, fora considerado pela revista Forbes um dos jovens mais influentes e promissores da Europa. Rodrigues dos Santos ficara conhecido por recrutar novos apoiantes do CDS em regiões improváveis como o Alentejo, mas também pelo tom dos posts que escrevia no Facebook, bem mais radicais que a linha pragmática de Cristas. Os trabalhos do congresso de Aveiro revelaram uma situação semelhante à de 1992: depois de um péssimo resultado eleitoral, os militantes de base do CDS rompiam com os barões, considerados responsáveis pela derrocada, e entregavam a um jovem de discurso inflamado a tarefa de refundar o partido. O próprio Rodrigues dos Santos dava força à analogia ao apadrinhar o regresso de Manuel Monteiro ao seu antigo lar. Os comentadores políticos ficaram na expectativa quanto ao futuro do Centro Democrático Social, que enfrentava com uma direcção renovada a ameaça dos novos partidos.

Depois do congresso, passou-se um ano e, no meio da pandemia, “Chicão” transformou-se em Chicão. Ninguém consegue designar o líder do CDS de outra maneira. A humilhação a que o chef Ljubomir Stanisic, um modelo do Homem Novo que a direita portuguesa sonha criar, submeteu o “querido” presidente centrista nada teve de surpreendente. O momento em que Chicão apresentou uma queixa na ERC contra a empresa autora de uma sondagem que atribuiu ao CDS apenas 0,3% de intenções de voto (antes do partido subir este mês para uns estonteantes 0,8%) resumiu na perfeição o ridículo e a irrelevância em que a instituição fundada por Freitas do Amaral e Amaro da Costa caiu enquanto o Chega ascendia à glória. A estratégia delineada por Chicão para enfrentar André Ventura foi classificá-lo como um populista extremista que tem razão em tudo o que diz e promover uma radicalização do CDS que o transformou num “Chega para betos”, nas palavras de Henrique Raposo. Chicão proclama sem dúvidas que é impossível fazer acordos com o Chega, esse partido tão moderado a quem os democratas-cristãos vão ligar no dia seguinte às próximas eleições. Entretanto, o presidente centrista abriu múltiplos conflitos com o grupo parlamentar escolhido pela sua predecessora e transformou fracassos em êxitos retumbantes. As redes sociais do partido e do seu líder, apontadas como uma prioridade no discurso de vitória de Chicão em Aveiro, revelam uma pobreza franciscana.

 

 

Em abono da verdade, o trabalho de Chicão nunca seria fácil numa época em que o CDS parece ter perdido a sua função histórica. Entre 1975 e 2019, o Centro Democrático Social foi o partido mais à direita representado no Parlamento. Ao votar contra a Constituição de 1976, integrara no sistema os sectores avessos a qualquer tipo de socialismo, enquanto Freitas e Amaro impunham à extrema-direita a renúncia à violência anticomunista e a aceitação das regras democráticas. O CDS tornou-se uma federação de várias direitas que conviviam sob o domínio de um líder unificador, apresentando uma imagem de modernidade sem nunca ter a coragem de deitar fora as velharias com valor sentimental guardadas no sótão do Caldas. O partido era sobretudo o abrigo do velho Portugal conservador, ligado ao patronato agrícola e industrial, preocupado com as tradições e orientado por um catolicismo oficioso. Com Paulo Portas, foi aquilo que estivesse na moda em cada momento, como quando o actual combatente dos “populismos de esquerda e direita” experimentou o discurso anti-imigração e denunciou o “subsídio à preguiça” chamado RSI. Na actualidade, o que resta é apenas o CDS-PT (Partido da Tourada). Com a crescente laicização da sociedade, o conservadorismo nos costumes dá poucos votos, como o próprio André Ventura reconhece ao não insistir muito nesses temas. O cliché do partido dos ricos aproxima-se da realidade à medida que a já reduzida presença do CDS nos subúrbios se torna microscópica e o chicanismo não apresenta um discurso minimamente atractivo para a classe média baixa. Os liberais possuem agora um partido onde não têm de conviver com a malta de Deus, da Pátria e da Família. Os fascistas já não precisam de fingir que são democratas. Neste cenário, para que serve e quem representa o CDS?

O alarme parece ter finalmente soado no aparelho centrista e Adolfo Mesquita Nunes voltou do exílio para desafiar Chicão a enfrentá-lo num torneio. Não será fácil obrigar o jovem rei a sair do castelo, guardado por uma peonagem rude que gosta de dar um toque pessoal e rasteiro a todas as lutas. Contudo, no momento em que uma enorme Acácia se prepara para devorar a cenoura da direita, Adolfo é a única pessoa capaz de evitar que aquela loja de Arroios que compra “cds antigos” (sic) faça negócio. O problema é que, se Chicão tornou o CDS redundante em relação ao Chega, Adolfo teria dificuldade em distinguí-lo da Iniciativa Liberal. Basta lembrar a amizade de Mesquita Nunes com Carlos Guimarães Pinto, também fundador do Instituto Mais Liberdade, para perceber como seria confuso se IL e CDS pescassem nas mesmas águas. O produto CDS já está impregnado do fedor do fracasso (o melhor repelente para jornalistas) e a aposta numa nova campanha publicitária poderá não bastar para torná-lo competitivo. Será que é tarde demais para o Centro? Bem, se a solução encontrada for Nuno Melo, posso indicar já o endereço da loja.

Amem-me muito

O nome Marcelo Nuno Duarte Rebelo de Sousa substitui de forma eficaz qualquer tempo de antena. Afinal, a popularidade de Marcelo supera a de qualquer outro político português e, admitamos, é difícil não gostar de alguém que se leva tão pouco a sério e notoriamente se diverte à brava no exercício da chefia do Estado. Ideologicamente, Marcelo apenas repele os extremos. Pessoalmente, o Presidente sabe sempre dizer a palavra certa ao público certo. Fisicamente, o tronco nu de Marcelo Nuno dessacraliza o poder e faz o cidadão sentir-se mais próximo de quem o lidera. Mediaticamente, o antigo jornalista não faz política na televisão, mas sim televisão na política (há muito que tento sem sucesso fazer esta frase pegar). Politicamente, Rebelo de Sousa apresenta-se como aquele que tudo controla e tudo influi. Não há como fugir do olhar penetrante desta estátua colocada no centro do Largo da República, até porque, invulgarmente, a estátua fala e mexe-se imenso.  

É claro que Marcelo Rebelo de Sousa trabalha imenso para obter tanta admiração. Sobretudo, operando a máquina secreta que lhe permite detectar a qualquer hora aquilo que a maioria dos portugueses está a pensar. E se a maioria gosta de uma coisa, o Presidente tem de gostar também. É preciso seguir a moda, sob pena de cair no abismo horroroso da impopularidade. Claro que Marcelo sabe que há um tempo para tudo. Por exemplo, nos anos 90 ficava bem a um político católico condenar programas de televisão com sketches sobre Jesus Cristo, mas no século XXI já ninguém quer saber disso. O Presidente dispõe ainda de um quadro de cliques que identifica as notícias alvo de maior atenção, de modo a que Marcelo possa imediatamente mergulhar nelas como no mar de Cascais. Não há desastre, vedeta desportiva nem sem-abrigo supostamente herói que escapem ao radar de Belém. O supremo magistrado tem que entrar no filme, de preferência no timing certo. Às vezes (familygate, assassinato no SEF, encerramento das escolas, etc.), Marcelo distrai-se por um segundo e apanha o comboio já em movimento, mas quer logo ser o maquinista. Afinal, o público tem sempre razão e convém lisonjeá-lo de vez em quando. O estilo de Marcelo não se assemelha à berraria da “política CMTV” agora em expansão, aproximando-se mais da velha RTP de Júlio Isidro: programas ligeiros para toda a família, nem demasiado complexos nem demasiado estúpidos, com um apresentador afável que surge no ecrã como o tio de todos nós. Quem seria capaz de odiar isto?

 

Este comportamento marcado pelo desejo de agradar a todos nada tem de novo, pois Marcelo foi sempre assim, desde os tempos do PREC em que se afirmava um marxista não leninista. Nem sequer se trata de oportunismo, mas de uma maneira de estar na vida. O antigo (e actual) director do Expresso gosta de ser amado e só dá tanto afecto porque possui uma capacidade única de recebê-lo. Quem mais teria espaço no disco para tanto carinho recolhido ao longo de inúmeras sessões de autógrafos e milhares de milhões de selfies? Na verdade, Marcelo Rebelo de Sousa não nasceu para ser Francisco Martins Rodrigues, quer no sentido de propor rupturas violentas, quer no de defender ideias só aceites por uma pequena minoria, quer ainda naquele de andar pelas ruas de Lisboa sem nunca ser reconhecido.

Pelo seu perfil, idade e currículo, Marcelo Rebelo de Sousa é um dos últimos políticos da era da televisão generalista na área da direita. A geração dos blogues, que começou a ganhar destaque partidário na primeira década deste século, encontrou em Pedro Passos Coelho o político popular por ser impopular (“que se lixem as eleições”), autor de medidas de que muitos portugueses não gostavam por, coitados, serem um bocado burros, mas que um dia viriam a compreender. Mais recentemente, a geração das redes sociais, ligada ao Chega e à Iniciativa Liberal, descartou de vez a ideia de agradar a todo o eleitorado e construiu-se na base da avaliação da parte esquerda do espectro político como uma erva daninha que seria necessário arrancar. Claro que André Ventura, filho de Passos Coelho e Rui Ramos, ultrapassou todos os limites de forma propositada, renegando o espírito natalício marcelista para atrair todos aqueles que só querem ver o mundo arder. Este fim da lógica catch-all pode comprometer a prazo a capacidade da direita de descobrir novos Presidentes da República, uma vez que é difícil imaginar políticos como Passos e Paulo Portas a alcançarem mais de 50% numa eleição.

 

Fechistas e abristas

Ao longo de um ano de Covid-19, o debate nos media e nas redes sociais tem sido marcado pelo confronto entre duas tendências que agrupam números significativos de portugueses (não se incluem aqui os negacionistas). De um lado, está o partido Fechem Tudo, com os seus membros, os fechistas, defensores de fortes restrições à actividade quotidiana que facilitem o combate ao vírus. Do outro, os abristas, ligados ao partido Abram Tudo e favoráveis a um número reduzido de limitações aos comportamentos individuais. A relação de forças entre os dois partidos é influenciada, tal como tudo o resto, pelos números da pandemia. Quando a situação da Covid-19 se agrava, verifica-se uma hegemonia cultural do fechismo, mas qualquer descida da incidência da doença estimula o pensamento abrista. De facto, algumas pessoas oscilam entre um lado e outro de acordo com a conjuntura, até porque o AT e o FT são partidos heterogéneos que recrutam membros quer à esquerda quer à direita. Apesar das variações momentâneas, os discursos de ambas as facções possuem tiques relativamente estáveis.

Para os fechistas, o país é uma criança rebelde da qual eles são as mães. Quando sai à rua ou mesmo quando se limita a olhar pela janela, o fechista anota mentalmente todos os indivíduos que prevaricam e observa onde (não) está a polícia, cujos cassetetes deveriam estar a bater com força nas carnes dos criminosos desmascarados. A vigilância permanente e a troca de informações mantidas pela comunidade fechista permite-lhe criar uma base de dados com os nomes e moradas de todos os inimigos da saúde. Os fechistas gozam de uma vasta superioridade moral decorrente da preocupação e responsabilidade que exibem. Por isso mesmo, estão investidos da missão de vituperar os irresponsáveis que não levam a doença a sério e atacar os políticos que facilitam, não mostram pulso firme e ainda reclamam privilégios. Pessimista antropológico por excelência, o fechista tem como frase preferida “eu avisei” e como segunda frase preferida “depois não te queixes quando estiveres num caixão”. O cúmulo da ira ocorre quando um fechista fascista vê um grupo de comunistas, reunido num espaço aberto ou fechado. Nessas ocasiões, uma imparável torrente de ódio sai da boca ou do teclado do FF, ganhando uma força destruidora superior à da lava do Vesúvio.

 

 

Por seu turno, o abrismo considera-se a doutrina da coragem, aquela qualidade que os medricas aterrorizados pela propaganda fechista não possuem. O partido abrista tem uma acentuada consciência de classe, mostrando-se ao lado da plebe que sai de casa para trabalhar e desprezando os burgueses privilegiados que ficam deitados no sofá a ver a Netflix. Nos períodos em que dispõe de menos camaradas, o militante abrista reforça a consciência da sua superioridade intelectual perante os “carneiros” incapazes de desobedecerem à lógica dominante. Os abristas seleccionam cuidadosamente os especialistas que confirmam a sua crença, acusando todos os outros de estarem ao serviço do Estado ou de interesses obscuros, e lamentam frequentemente os mortos não-Covid, que estariam vivos se não fosse essa maldita obsessão com a doença da moda. Implacáveis com a DGS e o Governo, que não confiam nos portugueses e estão sempre a dar ordens absurdas e contraditórias, os abristas alertam permanentemente para a necessidade de mais debate. Afinal, as pessoas hoje em dia não são ignorantes e até consultam a Internet, pelo que, se 0,1% da população manifesta dúvidas sobre as medidas contra a pandemia, os restantes 99,9% devem esperar pacientemente até que uma discussão longa, franca e aberta revele quem tem razão ou abra pistas para um novo debate.

 

 

O fechismo e o abrismo estão ligados a duas ameaças vindas de trás que ganharam maior expressão com a pandemia, da qual pode resultar um Estado mais opressivo e controlador em nome do bem comum, mas também um individualismo exagerado que, em associação com a “morte da competência” e os especialistas em tudo brotados do solo do Google, criaria uma sociedade ingovernável. Deve haver um meio-termo, e para alcançá-lo é necessária mais humildade. Afinal, encontrar uma fórmula que combine os interesses da saúde e da economia é dificílimo e implica múltiplos erros e cedências. Quando se vai atrás de algo que não controlamos, neste caso o coronavírus, a única maneira de ser sempre coerente é ser um fanático. Podemos formar as nossas opiniões, mas, numa matéria em que os próprios especialistas divergem entre si, não faz sentido que os leigos apresentem soluções definitivas que as autoridades só não seguiriam por idiotice. Também é necessária alguma tolerância quanto às diferentes reacções e comportamentos individuais perante a ameaça da Covid-19. Entre o pânico descontrolado e a irresponsabilidade total, existem muitas variantes que podem coexistir sem discussões estéreis.