O concelho de Odivelas não motivou grandes referências nos media quer antes quer depois da votação para as eleições autárquicas, provavelmente devido à existência de um vencedor anunciado. Tal como se previa, a abstenção não deu hipóteses e melhorou o seu resultado de 2017, atingindo 56,58%. Este forte abstencionismo odivelense, um fenómeno específico das autárquicas, está ligado ao afastamento da política local (que parece só surgir de quatro em quatro anos) do quotidiano das populações, devido a factores como o reduzido espírito comunitário dos munícipes, a falta de contacto destes com o trabalho das autarquias ou a ausência de cobertura mediática que impede o desenvolvimento de um espaço comum onde as diferentes correntes políticas possam discutir. Ao longo da campanha, verificou-se apenas um debate promovido pela Iniciativa Liberal, cuja má organização e falta de imparcialidade levaram à ausência de praticamente todos os candidatos à presidência da Câmara de Odivelas. A impressão permanente foi a de que as diferentes candidaturas faziam os seus percursos sem nunca se cruzarem, de tal modo escasseavam o diálogo e o contraditório. Entretanto, apesar dos meios de campanha tradicionais como cartazes, arruadas e folhetos serem ainda essenciais para familiarizar o eleitorado com os potenciais autarcas, multiplicam-se as dúvidas sobre a capacidade desses métodos para despertar o interesse do público-alvo. Ao fim e ao cabo, quem liga aos cartazes, quem fala com as comitivas, quem lê os programas? Neste tipo de sufrágio, as redes sociais pouco contribuem para atenuar o problema, uma vez que as páginas dos candidatos no Facebook e no Instagram apenas alcançam os já convertidos às respectivas causas. Em resultado disto tudo, só os odivelenses mais politizados se dão ao trabalho de frequentar os edifícios públicos do município no dia dos três boletins.
O facto da população votante ser praticamente a mesma de eleição para eleição torna improváveis mudanças na liderança do concelho. Como sempre desde 2001, o PS sagrou-se vencedor, renovando a maioria absoluta e a presidência das quatro juntas de freguesia. Os autarcas socialistas têm realizado um trabalho positivo, embora a falta de alternância torne difícil imaginar o que poderia ser feito de diferente na terra da marmelada. O triunfo de Hugo Martins foi ao ponto do PS somar mais do dobro dos votos na coligação de Marco Pina. Sem colocar em causa as qualidades pessoais de Pina, parece óbvio que o comentador da CMTV errou em aspectos como a aposta excessiva na sua faceta de estrela da televisão e amigo da Maya e do Futre (esses cargos não garantem necessariamente votos) ou a confusão entre a campanha odivelense e a pré-campanha para as directas do PSD, marcada pela ausência vistosa de Rui Rio e pelas presenças nada discretas de Paulo Rangel e Miguel Pinto Luz em solo odivelense. Noutro sector político, a CDU já teve uma presença importante na vida política do concelho, apoiada no carismático Ilídio Ferreira, ex-presidente da Junta da Ramada e candidato à liderança da CMO em 2005 e 2009, mas agora não foi além de uns pálidos 10,83% que lhe retiraram um dos dois vereadores de que dispunha. O pormenor do Polidesportivo Honório Francisco ser referido como “Pavilhão Honório Novo” num folheto de Dilar Pelica, cabeça de lista da CDU à Assembleia de Freguesia de Odivelas, é um daqueles pequenos detalhes que revelam o crescente isolamento do PCP, sempre a fazer a mesma campanha desde o século XX.
A principal mudança registada nas opções da minoria participante no sufrágio verifica-se na estreia do Chega (8,71%), pontuada com o quarto lugar e a eleição de um vereador e três deputados municipais. O resultado de André Ventura (poucos dos odivelenses que votaram no Chega saberiam o nome do irrelevante candidato do partido à Câmara) no concelho é um exemplo do tipo de estatuto que a sua organização pode ganhar no mapa autárquico nacional: longe do poder, mas nem por isso irrelevante. Os estudos de mercado encomendados por Ventura para lhe permitirem escolher as ideias políticas mais rentáveis salientaram a importância de subúrbios como Odivelas, onde o discurso da direita tradicional pouco diz a gente de classe média baixa sem perspectivas de enriquecer através da criação de grandes empresas, mas que se encontra disponível para ouvir quem lhe estimule o ressentimento e uma revolta vaga contra tudo, a começar no cigano que está ali ao lado e a acabar no distante político supostamente banhado no luxo. Mais abaixo na tabela, o Bloco de Esquerda, o PAN e a IL obtiveram o escasso número mínimo de votos do qual nascem representantes na Assembleia Municipal, deixando claro que as autárquicas não são a praia destes partidos. E pronto, foi isto. Os odivelenses prosseguem o seu quotidiano, satisfeitos por saberem que só em 2025 voltarão a ser importunados na rua por grupos de pessoas com papéis e bandeiras.
Tenho dois sobrinhos, um rapaz com seis anos e uma rapariga com dois. Não vou partilhar aqui os nomes e imagens deles, numa tentativa de proteger a privacidade dos miúdos até ambos terem as suas próprias contas no Instagram (ou, mais provavelmente, noutra rede social que então estará na moda). Por isso, imaginem dois sorridentes moços lisboetas que gostam de brincar no parque, ver desenhos animados no You Tube e testar os limites da paciência dos pais. Num momento, são teimosos e caprichosos como só as crianças conseguem ser, para logo a seguir se tornarem inocentes e ternurentos ao ponto de derreterem o coração mais empedernido. Ainda parecem desenhos inacabados a que se acrescenta um traço a cada dia, mas por vezes mostram características psicológicas capazes de perdurar pela vida fora.
Muito me ensinaram estes dois infantes ao longo dos últimos anos. Desde logo, revelaram-me uma forma de amor que desconhecia, sempre acompanhada pelo medo de que algo perigoso lhes aconteça. Impressionaram-me pela naturalidade com que entraram no filme, como se estivesse tudo preparado há muito tempo no plateau para eles surgirem diante das câmaras, e pela rapidez e eficácia da sequência em que o mais velho deixou a sua actuação a solo para constituir uma dupla imbatível com a irmã. Fizeram-me compreender melhor a ideia da mudança e da continuidade na história e despertaram o meu interesse pelos antepassados de que eles são herdeiros sem o saberem. Recordaram-me como correr atrás de bolas podia ser divertido, levaram a que descobrisse coisas que já deveria conhecer (como a música de José Barata-Moura ou os livros da colecção do Sapo, de Max Velthuijs) e aumentaram muito o meu interesse pelo futuro. Para além, é claro, de provarem a conclusão óbvia de que, apesar das ordens serem dadas pelos adultos, são os putos quem verdadeiramente está no comando da família desde o dia em que nascem.
Ao mesmo tempo, os catraios enchem-me de dúvidas. Para começar, seria preferível que eles continuassem pequenos e fofinhos ou que precisassem em breve de usar a senha do Portal das Finanças? E até começarem a engrossar a receita fiscal do Estado, o que posso eu fazer por eles? Conseguirei explicar-lhes que Deus está no silêncio? Contar-lhes o choque que sentimos quando as Torres Gémeas foram destruídas? Descrever-lhes o ambiente apocalíptico das semanas em que a pandemia que eles eram demasiado novos para compreenderem (ou talvez não) começou? Pedir-lhes perdão por não ter feito mais para travar as alterações climáticas? Recordar com saudade o tempo em que não havia VAR no futebol? Falar-lhes do que aconteceu com D. Afonso IV quando forem adolescentes e erguerem as espadas contra os pais? De momento, é impossível saber, mas pouco importa. Os meus sobrinhos escreverão a sua própria história usando palavras que ainda nem sequer foram criadas e eu limitar-me-ei a lê-la com uma eterna expectativa pelo que acontecerá no próximo capítulo.
Quem expulsa os poderosos não se torna o novo poderoso?
Se todos os países baixarem os impostos, as empresas investem em todo o lado?
Se os colégios privados dependem assim tanto do financiamento estatal, não há algo de errado com o negócio deles?
A ideia não era que a esquerda queria mudar o mundo e a direita mantê-lo tal como está?
Há alguma medida que garanta por si mesma que nascerão mais crianças?
Porque é que se diz que um político se aproxima do “povo” quando se comporta como se fosse um puto?
Como é que as mesmas pessoas que arrasam diariamente o Estado e a política querem que apareçam novos políticos?
Quando se diz que se quer “devolver a cidade às pessoas”, isso significa que actualmente a cidade pertence aos cães?
Se disser aos gritos que o meu adversário é intolerante, passo a ser tolerante?
Entre o politicamente correcto e o politicamente incorrecto, não será que as pessoas simplesmente têm cada vez mais dificuldade em aceitar a existência de coisas de que não gostam?
Ser egoísta é ser rebelde?
A democracia directa é uma forma radical de liberalismo?
Haverá algo mais perigoso do que um revolucionário que acredita mesmo naquilo que diz?
Para ser um conservador, é obrigatório acreditar que actualmente se vive um frenesim hedonista em que toda a gente só faz o que lhe apetece?
Porque estamos sempre a ouvir que aquilo que é público deve ser privado e aquilo que é privado deve ser público?
Há partidos com projectos de poder e outros que estão nisto da política pelo convívio?
Existirá sempre uma crença absurda para justificar algo que beneficia os nossos interesses?
Se num mundo sem religião não haveria violência, o que aconteceu na União Soviética?
Anunciar que algo não é ideológico é em si mesmo uma ideologia?
Porque é que a indignação vende tão bem?
Os portugueses estão mais exigentes com os políticos ou apenas com os políticos da outra trincheira?
Os eleitores votam sempre em quem lhes paga?
Porque é que os jovens e os idosos são todos iguais e cada indivíduo de 40 anos é diferente dos outros da mesma idade?
Poderá a propaganda política não ser nem demasiado convencional nem demasiado tolinha?
O que é que os países da Europa de Leste têm que nós não temos?
Não se prevêem grandes novidades nas eleições autárquicas em Odivelas, até porque PS, CDU e BE apresentam os mesmos candidatos de 2017 (Hugo Martins, Painho Ferreira e Paulo Sousa, respectivamente) e Marco Pina, o rosto de uma coligação composta pelo PSD e por seis pequenos partidos (CDS, PPM, MPT, Aliança, PDR e RIR), não parece estar a gerar uma vaga de fundo semelhante àquela que quase levou Hernâni Carvalho à vitória em 2009. A maior incógnita diz respeito aos resultados dos estreantes Chega e Iniciativa Liberal. Embora o candidato cheguista à Câmara seja o empresário de 63 anos Nuno Beirão, parente de Francisco Sá Carneiro, a verdadeira estrela é Hugo Ernano, o célebre militar da GNR que matou uma criança cigana numa perseguição em 2008 e pode agora ser eleito deputado municipal. A IL apresenta uma lista encabeçada por Filipe de Sousa Martins, mas, como é habitual nos liberais, o candidato (uma “pessoa comum”) vê a sua individualidade anulada e limita-se a ser um pregador do programa eleitoral, no qual são referidas várias estruturas que seriam criadas pelo Município e exploradas por privados. Sem sondagens disponíveis, podemos apenas especular se o PS manterá a presidência de todas as juntas de freguesia, o PAN conseguirá ficar na Assembleia Municipal ou as novas forças à direita causarão rombos na votação de Pina. As redes sociais, onde predominam pessoas ligadas aos partidos e outras que desconfiam mal vêem um político a aproximar-se delas, não contribuem muito para o esclarecimento das tendências eleitorais. Para lá dos cartazes e dos ainda poucos folhetos difundidos, os candidatos fazem campanha através de visitas a instituições da sociedade civil (muito melhor que a sociedade militar) como IPSS, clubes ou congregações religiosas. Ignora-se até que ponto as restrições sanitárias permitirão contactos directos com o eleitorado na rua nas semanas anteriores a 26 de Setembro.
Em resumo, parece natural que se repita uma abstenção superior a 50%. Na verdade, o poder local, apesar da sua proximidade, costuma ser aquele que os odivelenses menos acompanham e escrutinam. A actividade das juntas de freguesia, centrada em funções essenciais ao quotidiano (limpeza das ruas, conservação de zonas verdes, assistência alimentar aos mais pobres, etc.) mas por isso mesmo banais, passa geralmente despercebida. Relativamente à CMO e à AMO, não existe muita informação para lá daquela que os próprios partidos e autarquias fornecem, devido à ausência de uma imprensa local credível e de um público disponível para consultá-la. A tradicional falta de espírito comunitário num concelho onde muitos habitantes vieram de outro município, país ou continente também não ajuda ao interesse pelas questões locais. A maioria dos cidadãos só contacta com as entidades autárquicas quando estas lhe fornecem algum serviço ou realizam projectos que interferem com o seu quotidiano. Por esse motivo, episódios recentes como as obras na Avenida D. Dinis e noutras artérias da sede de concelho ou o funcionamento do centro de vacinação no Pavilhão Multiusos (aquele onde Gouveia e Melo subiu para o tejadilho do carro) podem influenciar o sentido de voto da população que ainda se dirige às urnas.
Seria bom compreender como é heterogénea esta Odivelas já com 23 anos de governação autónoma. As ruas construídas por Tomás José Olaio que acolheram o crescimento populacional vertiginoso dos anos 60 e 70 parecem agora pertencer a uma época distante e até as torres de bairros como a Arroja e a Codivel sofrem a erosão do tempo. Surgidas já no século XXI, as Colinas do Cruzeiro tornaram-se uma cidade dentro da cidade e os colinenses são olhados por outros odivelenses com um misto de inveja e preconceito de classe. Pessoas muito diferentes ao nível da religião, do rendimento ou das qualificações fixaram-se em Odivelas devido às acessibilidades e aos preços da habitação, fazendo nascer gerações que cresceram numa terra em expansão quase contínua mas pouco consciente do seu passado. Sem fugir à sua condição de arrabalde, mas provando que o subúrbio não é todo igual, Odivelas oscila entre extremos e por vezes parece um microcosmos do país. Analisados em detalhe, os resultados eleitorais conhecidos já no dia 27 poderão ajudar a detectar a expressão política da pluralidade local.
P.S. Comprem na Churrasqueira Odimar, uma das lojas mais antigas de Odivelas. Estamos disponíveis para encomendas de partidos interessados em atrair eleitores ao Frango Liberal ou à Festa Socialista do Queijo de Nisa.