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Desumidificador

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"Pôr do Sol"

Ao contrário do que se possa pensar, o humor nonsense de Pôr do Sol, a série agora finda da RTP criada pelo argumentista Henrique Dias, pelo realizador Manuel Pureza e pelo actor Rui Melo, não é propriamente uma novidade na televisão portuguesa. Outros projectos escritos na última década por Dias, em parceria com Roberto Pereira e Frederico Pombares, também recorreram à introdução de elementos estranhos num contexto familiar ao espectador e buscaram a comicidade através do exagero, do absurdo e de referências inesperadas a figuras da cultura pop. Em 2019, já na RTP, Dias, Pureza e Melo estiveram ligados a Desliga a Televisão, uma espécie de O Tal Canal do século XXI que parodiava, além das novelas, concursos, reality-shows e outros formatos das estações nacionais. No entanto, sentia-se sempre que os diálogos com imensa graça no papel soavam apenas esquisitos ao saírem das bocas dos actores, enquanto faltava um esquema coerente que desse sentido ao disparate para lá dos sketches sem continuidade.

Mais tarde, em 2021, o director de programas da televisão pública, José Fragoso, aceitou a ideia da “novela” centrada na Herdade do Pôr do Sol, que estreou em Agosto (um mês no qual os canais generalistas entram em pousio), com escassa publicidade e aparentemente sem perspectivas de sucesso superiores às de muitas outras séries de diferentes géneros exibidas a seguir ao Telejornal. E, no entanto, um ano depois, aqui estamos, com o derradeiro episódio de Pôr do Sol a ser visto na televisão, na Internet e em várias salas de cinema por um público fiel e entusiasta que sente estar a viver um momento único. Como é que isto aconteceu numa época em que as surpresas pareciam impossíveis na televisão lusa? Em primeiro lugar, obviamente, através das redes sociais, local privilegiado do boca-a-boca e da partilha quer de vídeos quer de imagens da série com as frases das personagens em rodapé, tornando-se o “tens de ver isto” a melhor forma de divulgação. A plataforma RTP Play, onde Pôr do Sol é o programa mais visto de sempre, deu ao projecto uma vida muito para além da transmissão convencional e atraiu uma larga porção de novos espectadores entre os Agostos das duas temporadas, além de garantir a durabilidade do produto, mas tudo isto poderia ter acontecido com outra série, pelo que há que analisar a composição da poção mágica.

 

 

A qualidade do argumento constitui um dos principais trunfos de Pôr do Sol, dotada de uma história disparatada mas habilmente construída, personagens exageradas mas que não são bonecos e um ritmo lento mas com novidades em cada episódio. A série realizada por Manuel Pureza, cada vez mais arrojado ao longo dos 36 episódios, veio responder à necessidade de uma paródia às telenovelas actuais que referisse e desmontasse todos os clichés destas sem perder o respeito e carinho pelo formato satirizado. Aqui entra o factor que resolveu o problema verificado noutras aventuras dos argumentistas: a experiência do elenco em novelas, que permite aos actores dizer as suas falas absurdas com o ar mais sério e convicto do mundo. Embora todos os intérpretes estejam em bom nível, é justo destacar que Rui Melo (Simão) e Gabriela Barros (as gémeas Matilde, Filipa e Salomé) levam a série às costas com desempenhos espantosos. A banda sonora, dividida entre um Toy que não nos sai da cabeça, os temas em inglês macarrónico dos Jesus Quisto e a música muito carregada que assinala os momentos mais “dramáticos”, revela-se também essencial para a identidade de Pôr do Sol. No meio do turbilhão de piadas lançadas, aquelas que falham o alvo são insuficientes para comprometer um todo onde a vastidão do universo de referências permite a qualquer espectador encontrar algo com que se identifique. À semelhança dos melhores programas de Herman José (que nunca aparece em Pôr do Sol mas está sempre lá), esta comédia soube parar no momento certo e atingiu a intemporalidade por não ter medo de ficar datada.

Nas revistas de televisão, a crítica tem abordado Pôr do Sol com simpatia, mas também com a condescendência reservada a um programa de nicho visto apenas por miúdos ligados ao mundo digital e não pelas grandes e ignaras massas que seguem os conteúdos líderes de audiências. Além da heterogeneidade do público da série (vista em conjunto por numerosas famílias) ser maior do que se julga, é preciso ter em conta que, com o crescente êxodo de telespectadores dos canais generalistas para o cabo, todos os programas feitos hoje em dia em Portugal são vistos por minorias, independentemente da dimensão destas. Ao fim e ao cabo, quantas pessoas conhecem boa parte das personalidades que enchem as páginas das revistas? O deslize dos autores de Pôr do Sol foi não terem partido do princípio fundamental na nossa televisão de que o público é estúpido. Assim, as audiências da paródia comparam mal com as das novelas “a sério”, mas quando daqui a 20 anos, depois de muitas coisas e pessoas mencionadas na série já terem desaparecido, alguém referir numa conversa os Bourbon de Linhaça, o cavalo Testículo ou o colar de S. Cajó, haverá sempre outro alguém a saber do que se trata e a sorrir com a recordação.