Ideias curtas sobre sitcoms
1. Basicamente, uma sitcom é uma série de comédia com episódios semanais de cerca de 20/30 minutos, três ou quatro cenários, gargalhadas gravadas ao vivo ou acrescentadas na pós-produção e personagens fixas que reagem a diferentes situações de uma forma que se torna previsível à medida que conhecemos as suas personalidades. Com este material simples (ou a alternativa de fazer tudo em animação), é possível obter o melhor e o pior, dependendo do talento dos actores, da imaginação dos argumentistas, da empatia entre o público e as personagens ou do registo do espírito do tempo no qual é produzida. Apesar do formato estar algo ultrapassado hoje em dia, as melhores sitcoms conseguem ultrapassar os seus aspectos mais datados e chegar a diferentes gerações, como é visível no “regresso” de Friends.
2. Não há grande discussão sobre o facto de Seinfeld ser a melhor sitcom de todos os tempos. Basta recordar o episódio que termina com um George desesperado a bater no chão enquanto Jerry comenta: “And you wanted to be my latex salesman…” Se isto não é perfeição, não imagino o que será.
3. Quanto à melhor personagem de sempre de uma sitcom, ainda é difícil contornar a figura de Archie Bunker, o protagonista de All in The Family (Uma Família às Direitas, em Portugal), talvez porque o espantoso desempenho de Carroll O’Connor vá além da caricatura de uma forma de ver o mundo dominada pela ignorância e pelo preconceito e mostre um homem que lá no fundo tem bom coração e teme a mudança acima de tudo. Claro que a série recebeu um novo olhar com a influência política obtida nos últimos anos pelos Bunkers deste mundo.
4. O público-alvo de Dois Homens e Meio é igual às personagens principais da série: homens com demasiado tempo livre. E por isso, que remédio, de vez em quando lá estou a ver Charlie Sheen a insultar a mãe, o irmão e o sobrinho.
5. Depois de uma primeira temporada com várias arestas por limar, Friends melhorou muito e manteve-se estável em termos de qualidade até ao fim. Para lá dos diálogos cuidadosamente urdidos, os argumentistas da série passaram com brilhantismo sucessivos testes onde as coisas poderiam ter corrido muito mal e desenvolveram personagens cuja evolução preserva o interesse e a simpatia do público. Sim, hoje (tal como há 20 anos) Friends parece demasiado branquinha, mas, se formos atrás de todas as sitcoms da mesma época, não faltarão bruxas para caçar.
6. A Teoria do Big Bang, uma das sitcoms do vasto catálogo do produtor Chuck Lorre, pecou por ter umas quatro temporadas a mais, levadas aos ombros pela esquisitice de Sheldon (Jim Parsons) quando as outras personagens já se encontravam há muito esgotadas. Contudo, foi no início, especialmente na segunda e terceira séries, uma das sitcoms mais eficazes e divertidas surgidas no século XXI. Apesar de tudo o que Mayim Bialik e Melissa Rauch acrescentaram ao projecto, A Teoria do Big Bang funcionava um pouco melhor quando se limitava ao conceito “uma boazona e quatro paspalhões”.
7. O idiota, aquele cuja lentidão lisonjeia a inteligência do espectador, é uma figura clássica do universo das sitcoms, mas dentro dessa espécie de personagens existem numerosos subtipos. Há o idiota bonzinho (Joey Tribbiani, Friends), o idiota que se está nas tintas (Jake Harper, Dois Homens e Meio), o idiota manipulado por alguém mais inteligente (Américo Rocha, A Mulher do Senhor Ministro), o idiota que estraga tudo (Baldrick, Black Adder), o idiota que resolve as coisas no fim (Homer Simpson, Os Simpsons), a cópia do idiota que resolve as coisas no fim (Peter Griffin, Family Guy)… Em geral, o idiota desperta simpatia pela inconsciência da sua estupidez e por ser demasiado ingénuo para ser maléfico. Para saber mais sobre idiotas e outras personagens de sitcoms, consulte o livro Escrever para Comédia, de Susana Romana (Cego Surdo e Mudo, 2013).
8. Já poucos se lembrarão de que em 2001 Trey Parker e Matt Stone, os criadores de South Park, lançaram a sitcom em imagem real That’s My Bush (a SIC Radical chamou-lhe Bush Amigo), com Timothy Bottoms no papel do novo presidente George W. Bush. Para lá do humor político, o projecto era sobretudo uma paródia às histórias e personagens típicas das sitcoms: o vizinho intrometido, a empregada respondona, a sucessão de equívocos, o tipo que tem de estar em dois lugares ao mesmo tempo, etc. Na verdade, mesmo ao dirigir actores de carne e osso, as mentes de Parker e Stone estavam formatadas para a animação e o resultado final de That’s My Bush foi insatisfatório, levando ao cancelamento da série ainda antes do 11 de Setembro. Valeu pela intenção de satirizar todos os clichés que, se não forem reinventados, transformam qualquer sitcom numa valente estopada.
9. Durante muito tempo, a Britcom foi uma autêntica instituição dos sábados à noite. Para lá de duplas cómicas (Smith & Jones, French & Saunders), programas de sketches (Big Train, The Fast Show, Goodness Gracious Me) ou produtos difíceis de classificar (Little Britain, League of Gentlemen), a produção humorística da BBC oferecida aos espectadores da RTP2 incluiu sitcoms tão diferentes como My Hero, Hippies, My Family, Coupling (Friends com mais sexo), The Office, Black Adder, Yes, Minister ou Absolutely Fabulous. No entanto, há sempre um carinho especial por Allo, Allo, a série com uma visão muito particular da ocupação de França pelos nazis. Actualmente, alguns reparam que o humor do café do René é de teatro de revista; pois será, mas tem piada na mesma, tal como o vaivém de acontecimentos que se sucedem em cada episódio, disfarçando o facto de tudo estar quase sempre na mesma. Nesse sentido, Allo, Allo parece-se muito com a política portuguesa.
10. É curioso recordar agora como na década de 90 os canais portugueses estavam a abarrotar de sitcoms, entre as importadas e as nacionais. As últimas incluíam adaptações de clássicos americanos (Nico d’Obra, Marina, Marina, Sozinhos em Casa), o humor tripeiro do Centro de Produção do Porto da RTP (Clube Paraíso, Os Andrades), os veículos para Camilo de Oliveira ou, a partir do sucesso da brasileira Sai de Baixo, produções gravadas com uma plateia a assistir (Santos da Casa, Bacalhau com Todos). No meio disto tudo, as peripécias de Lola Rocha imaginadas por Ana Bola em A Mulher do Senhor Ministro e A Senhora Ministra eram o esforço mais criativo, embora eu não fosse grande fã. Pouco a pouco, as sitcoms lusas começaram a rarear, o que reforçou a singularidade de Nelo & Idália, uma experiência de Herman José no género transmitida pela RTP1 entre 2015 e 2016. De facto, o humorista deu um toque pessoal ao seriado, indo além do infeliz casal do título ao alargar o rol de bonecos interpretados por Herman e Maria Rueff e convidar outros membros do bando para participações especiais. Os restantes trabalhos na área pareceram sempre demasiado simplistas, antiquados ou sem capacidade de propulsão (Pôr do Sol não é exactamente uma sitcom). O que foi não volta a ser?