O que é que eu e o meu pai sempre vimos juntos na televisão? Telenovelas. Sim, gastei muitas horas da minha vida a ver cavalos, criadas fardadas, pequenos-almoços para 50 pessoas e todos os outros clichés parodiados em Pôr do Sol. No entanto, um conjunto de acasos e a tentativa de serem engraçadas feita a certa altura pelas novelas portuguesas levaram-nos a um afastamento dos folhetins, com jantares preenchidos a ver notícias, comentário político e assim. Até que em 2023 a RTP Memória iniciou a transmissão integral da série americana Dallas, criada em 1979 por David Jacobs (falecido há poucos meses). A princípio, desconfiámos da longa história da família texana Ewing. Afinal, quem tem paciência para seguir uma série com a duração de 14 temporadas e 350 episódios? Eu sabia que a produção da Lorimar tinha sido um enorme êxito nos anos 80, mas só me apercebera dele através de algumas histórias da revista de BD Hiper Disney com referências irónicas ao sucesso e longevidade de Dallas. Nunca ouvi ninguém da minha geração falar dos donos do rancho de Southfork, exceto o autor do projeto Ainda Sou do Tempo, que viu uma reposição já no século XXI. E, no entanto, a pouco e pouco, o tema reconhecível aos primeiros acordes dos genéricos inicial e final de Dallas entrou para ficar nas nossas mentes.
O que explica o impacto que Dallas continua a ter tantos anos depois? Em primeiro lugar, o talento de atores como Larry Hagman (JR Ewing), Patrick Duffy (Bobby Ewing) ou a hitchcockiana Barbara Bel Geddes (Mrs. Ellie), essencial na construção eficaz das personagens. Além disso, existem os velhos temas das disputas intra-familiares e da luta pelo poder, neste caso dentro do oil business, conduzida com esquemas ardilosos por JR, o mestre da sacanice, e a habilidade dos argumentistas para introduzirem sucessivas mudanças na história deixando o essencial na mesma e criando cliffhangers tentadores no final de cada episódio e cada temporada. Destaquem-se as duas reviravoltas mais célebres. O mistério em torno do atentado contra JR, no final da terceira série, foi concebido na perfeição, embora perca impacto se já soubermos a resposta à questão Who shot JR (na conclusão da sétima temporada, foi lançado um Who shot Bobby bem mais fraco)? Mais à frente, no fim do nono ano de exibição e já depois dos produtores terem convencido Duffy a voltar, a sua personagem “ressuscitou” com o esclarecimento de que todos os eventos dos 30 episódios anteriores tinham sido um mero sonho. Foi uma opção despropositada, metida a martelo e insultuosa para os espetadores, mas permitiu imprimir na décima temporada um novo fôlego a Dallas, que se estava a tornar melosa e desinteressante. Seria bom se outras séries tivessem a oportunidade de dizer “esqueçam, não funcionou, agora experimentamos outro rumo” (ah, se isso fosse possível na vida real…).
O elemento mais datado na série não são as roupas ou os penteados do elenco, mas sim o facto de ninguém revelar aos Ewing que o negócio deles está a destruir o planeta. De facto, a criação de Jacobs contribuiu para o fascínio dos anos 80 pelo mercado livre e pela ostentação da riqueza, embora a sua apologia do capitalismo possua cambiantes. Como é sabido, o ditador romeno Ceausescu permitiu a exibição da série no seu país para mostrar aos cidadãos do “socialismo real” os valores decadentes da burguesia ocidental, mas o que os romenos constataram foi que havia na América quem vivesse no luxo e sem a vigilância eterna da polícia, enquanto eles sobreviviam na miséria e opressão. A dualidade de comportamentos entre os irmãos “bons” e o irmão “mau” e a crítica das restantes personagens à falta de escrúpulos de JR, enquanto Bobby conduz a atividade empresarial com ética e respeito pelos outros, conduzem a uma legitimação do estilo de vida dos Ewing, sustentado no empreendedorismo do patriarca da família, embora por vezes se questione a validade da ambição e competição permanentes incutidas por Jock Ewing nos filhos. Não existe em Dallas uma perspetiva moralista do tipo “O dinheiro não traz felicidade”, mas há também quem lembre que, como citou Rui Reininho, “oil ain’t all, JR”.
Considerada ou não formalmente como tal, Dallas é uma telenovela que apresenta o melhor do que o género possui, entre dramas passionais, momentos de suspense, relações felizes ou tóxicas e a definição de um universo fechado mas com o qual um público heterogéneo pode identificar-se. O quotidiano da elite texana, tal como é descrito, parece estranho de acordo com os valores atuais, apesar de, curiosamente, Dallas ter sido pioneira na abordagem do tema da eutanásia. No entanto, contactar com a produção audiovisual do passado serve também para mostrar como evoluímos (ou nem tanto) e estabelecer padrões de qualidade na ficção. Dificilmente uma série americana seria hoje marcante ao ponto de influenciar nomes de estabelecimentos comerciais em Portugal, quando na década de 80 isso era possível não só devido à escassez da oferta televisiva da RTP mas também pela forma como os Ewing, com os seus bailes, churrascos e helicópteros privativos, não pareciam assim tão diferentes das famílias portuguesas. Trata-se da magia interclassista das telenovelas.
Em 1996, a única biblioteca pública existente em Odivelas era a Biblioteca António Maria Bravo, pertencente à Sociedade Musical Odivelense. No final desse ano, o arranque da construção da Biblioteca Municipal D. Dinis (BMDD), inaugurada em novembro de 1997, começaria a alterar a situação. Contudo, já poucas pessoas recordarão que nessa altura surgiu outra biblioteca na cidade, criada por iniciativa da Junta de Freguesia de Odivelas (JFO). De facto, desde 1978 que a JFO pedia à Fundação Calouste Gulbenkian (FCG) que estabelecesse uma das suas bibliotecas fixas em Odivelas, cedendo os livros e o restante material necessário, enquanto a Junta disponibilizaria o espaço de acolhimento. Só em 1995, porém, a Gulbenkian daria uma resposta positiva, com a situação a ser desbloqueada pelo escritor David Mourão-Ferreira, que dirigiu entre 1981 e a sua morte em 1996 o Serviço de Bibliotecas e Apoio à Leitura da fundação. O acervo bibliográfico e o mobiliário para o seu armazenamento, fornecidos pela FCG, seriam instalados na Casa da Memória, o velho edifício junto ao Cruzeiro no qual funcionara outrora a sede da JFO. A inauguração da “Biblioteca Pública Fixa de Odivelas” ocorreu em 19 de dezembro de 1996, numa cerimónia com discursos de Vítor Peixoto, presidente da Junta, e Carlos Lérias, secretário da JFO e “grande impulsionador” do projeto (Odivelas, n.º 6, 1997). A nova biblioteca, com um espólio de 8500 volumes, alargado mais tarde, após doações de particulares, para cerca de 12 mil, funcionaria de segunda a sexta-feira e disponibilizaria para consulta o diário A Capital, o jornal musical Blitz e os periódicos regionais Vento Novo e Loures Magazine.
Quando comecei a deslocar-me à Biblioteca Fixa, em finais de 1997, o espaço reduzido da Casa da Memória já se revelava acanhado quer para o espólio quer para as mesas de consulta dos livros. O número de pessoas com cartão de leitor, que começara à volta de 200, ultrapassava ligeiramente os 500, sendo duvidoso que alguma vez tenha atingido os mil leitores. Entretanto, a abertura da BMDD e o dinamismo que rapidamente adquiriu tornavam redundante a existência de duas bibliotecas na mesma rua. Conhecedor desta situação, Vítor Peixoto optou pela transferência da biblioteca da JFO para outras instalações da Junta, mais concretamente uma cave da Rua José Gomes Ferreira, na Quinta Nova (perto do local da futura estação de metro de Odivelas), até aí utilizada provisoriamente pelo centro infantil do Vale do Forno e cuja ocupação libertaria a Casa da Memória para a realização de exposições. Após arranjos na cave, a Biblioteca Fixa reabriu em janeiro de 1999 num local bem mais amplo, com um espaço reservado às crianças e um computador ligado à Internet. Ainda nesse ano, a atividade do serviço, assegurada por duas funcionárias, alargou-se aos sábados.
Obviamente, o empréstimo domiciliário era o grande atrativo da Biblioteca Fixa, permitindo a leitura gratuita de um volume por um período de duas semanas, prorrogável por mais duas. O acervo estava um pouco envelhecido, mas disponibilizava livros então difíceis de encontrar como, por exemplo, Um Homem Não Chora, de Luís de Sttau Monteiro, os três primeiros romances de Jorge Amado ou uma edição em dois volumes da Peregrinação com ortografia atualizada por Maria Alberta Meneres. Graças à biblioteca da JFO, pude ainda ler obras de autores tão diversos como António Lobo Antunes, Aquilino Ribeiro, Fernão Lopes, Gabriel García Márquez, Gil Vicente, Jacinto Lucas Pires, Manuel da Fonseca, Margarida Brum, Mário Zambujal, Pepetela ou Rui Zink. Parecia ser um lugar silencioso, um abrigo à margem de tudo, onde podia folhear os livros na maior tranquilidade até escolher um para levar para casa.
Na verdade, o problema era esse: aparentemente, quase ninguém além de mim frequentava a Biblioteca Fixa. Fosse devido à concorrência da BMDD, à escassa eficácia das ingénuas placa e faixa que anunciavam aos transeuntes o que existia na cave, à carência de iniciativas para atrair ao espaço os estudantes da Secundária de Odivelas ou ao mero facto de que lugares como aquele já não se usavam, o certo é que no final de 2003 a Assembleia de Freguesia odivelense discutia o destino do espólio após o encerramento definitivo da biblioteca surgida apenas sete anos antes. Depois de uma divergência da AFO com a Câmara quanto à eventual distribuição dos volumes pelas escolas do concelho, as obras foram entregues à BMDD, onde ainda hoje se encontram. A cave da Rua José Gomes Ferreira permaneceu na posse da JFO e lá se situa atualmente o Centro Augusto Pais Martins. Passaram já 20 anos desde o fecho e a biblioteca odivelense nascida graças ao mecenato da Gulbenkian parece ter caído no esquecimento. Eu lembro-me, porém, de como o acesso gratuito àqueles livros foi decisivo para a minha formação como leitor e estarei sempre grato a David Mourão-Ferreira pelo que me proporcionou.
O Odivelas Futebol Clube reclamou sempre 28 de maio de 1939 como a sua data de fundação, embora indicando que o emblema criado nesse dia não se tratava ainda do OFC que perduraria até ao século XXI, mas sim de um “clube percursor”, o Odivelas Foot-Ball Club “Os Gatinhos”. Com sede na Rua do Neto, n.º 1, perto do Mosteiro de Odivelas, “Os Gatinhos” seriam o resultado da iniciativa de um grupo de rapazes (todos bastante jovens, como a única fotografia conhecida da equipa dá a entender) que praticava futebol de maneira informal e sem grande regularidade. A coletividade encerraria as suas atividades no início de 1945, deixando um vazio que outros quatro odivelenses preencheriam com a fundação em julho desse ano de um novo Odivelas Futebol Clube, este com bases mais sólidas e o apoio da população da aldeia. Apesar do seu pioneirismo, os criadores de “Os Gatinhos” foram remetidos para a obscuridade de uma época remota. Ignora-se também se o facto da pequena associação ter sido formada no 13.º aniversário da “Revolução Nacional” constituiu um sinal de apoio ao Estado Novo ou resultou do mero acaso de se tratar de um feriado que teria fornecido aos jovens tempo disponível para a reunião fundadora.
Um cartão de sócio de “Os Gatinhos” datado de 11 de abril de 1943 apresenta as assinaturas do presidente do clube, Celestino Baptista Roque, e do secretário, José da Conceição Jorge. Pouco depois, uma assembleia-geral da agremiação elegeu um novo presidente, o açoriano Ernesto Cabral, aluno da Escola Ferreira Borges, em Lisboa. Uma entrevista concedida por Cabral e publicada na edição de 5 de maio de 1943 de Os Sports fornece a maior parte da informação disponível sobre “Os Gatinhos”, recolhida por um jornalista anónimo. O principal interesse noticioso do diálogo com Ernesto Cabral estaria na insólita “precocidade diretiva” de um presidente com apenas 14 anos de idade, líder de um clube de jovens no qual o futebolista mais idoso, o tesoureiro Manuel Barrão, não ultrapassava os 17 anos. Na entrevista, Cabral recordou o início da coletividade, cujo nome remetia para a “pequenez física e numérica dos associados”, rodeados pela descrença da comunidade local. A curta vida dos vários clubes anteriormente surgidos em Odivelas não augurava um grande futuro para “Os Gatinhos”, mas o primeiro jogo de futebol disputado pelos adolescentes, uma vitória por 4-3 sobre o Ameixoeira FC, despertou aplausos dos adultos que o observaram. Convidados para jogar em Caneças com uma equipa local formada por seniores, os jovens de Odivelas alcançaram um surpreendente empate e tiveram de atravessar terrenos rurais para fugir das pedras atiradas por canecenses furiosos com o resultado, numa situação recordada entre risos pelos “Gatinhos” e que poderá ter influenciado a lenda sobre a morte de Diogo José Gomes.
Em quatro anos de atividade, “Os Gatinhos” tinham conquistado três taças e quatro medalhas, para cuja exibição não havia espaço disponível na minúscula sala da Rua do Neto, alugada pelo valor mensal de 35$00 e onde a direção do clube se reunia à luz de candeias de azeite. Ernesto Cabral refere a existência em 1943 de 120 sócios, que pagavam 50 centavos semanais de quota, suficientes para financiar a renda da sede e o equipamento usado pela equipa no campo do “Alto da Mina” (o recinto situar-se-ia na localização futura de um depósito de água em Odivelas), um espaço com más condições, mas “melhor do que nada”. O próprio Cabral jogava na posição de interior esquerdo, embora estivesse disponível para ser substituído em breve por um futebolista da equipa de reservas. Além do futebol, o Odivelas Foot-Ball Club “Os Gatinhos” organizava provas de atletismo, quase todas vencidas por Francisco Martins, um corredor do clube odivelense que se transferira entretanto para o Benfica. Os jovens planeavam ainda criar uma equipa de basquetebol assim que dispusessem de um campo adequado à modalidade. A construção deste dependeria da ajuda do inspetor escolar José Furtado Leite, benemérito dos “Gatinhos” e personalidade relevante do União Futebol Lisboa, que se fundira em 1942 com o Carcavelinhos para criar o Atlético Clube de Portugal. Em março de 1944, Furtado Leite seria eleito presidente da mesa da assembleia-geral dos Bombeiros Voluntários de Odivelas, corporação à qual concedeu um empréstimo para a compra de uma moto bomba.
O artigo de Os Sports menciona Augusto, João Francisco, Delfim, Adão, Carcavelinhos, Mário, Manuel Barrão, Olímpio, Joaquim Sardento, Ernesto Cabral e Francisco Martins como a formação mais comum da equipa principal de futebol de “Os Gatinhos”. Em 19 de dezembro de 1943, uma linha com várias mudanças deslocou-se a um campo de Lisboa para defrontar o Grupo Desportivo da Almirante Reis. Os odivelenses Armando, Augusto, Delfim, Adão, Sotero, Rogério, Ferreira, Jorge, Marques, Álvaro e Martins não puderam evitar uma derrota por 3-2 num dos muitos desafios particulares que então ocorriam à margem das competições da AFL (Os Sports, 29-12-1943). Não se conhecem, por enquanto, outros momentos documentados da ação desportiva dos “Gatinhos”, uma agremiação desaparecida no final da II Guerra Mundial.
Apesar da distinção clara feita nas fontes entre o Odivelas Foot-Ball Club “Os Gatinhos” e o OFC ativo a partir de 1945, as semelhanças dos nomes e emblemas das duas associações e a presença no Odivelas FC de vários antigos membros dos “Gatinhos”, como Celestino Baptista Roque, tornam admissível uma relação de continuidade entre ambos os clubes. Essa ligação salvou “Os Gatinhos” da queda no esquecimento comum a numerosas coletividades surgidas no distrito de Lisboa na primeira metade do século XX. Nascidos do entusiasmo com a prática do desporto, em particular do futebol, estes clubes, frequentemente associados a um bairro, uma empresa ou uma localidade, sobreviviam em condições precárias, sem meios ou organização para disputarem competições oficiais, e deles ficaram escassos registos na imprensa da época. Contudo, foram importantes na expansão do movimento associativo e na popularização do futebol, praticado espontaneamente em campos improvisados por muitos jovens que acompanhavam as prestações das estrelas dos principais clubes da capital.
Após mais de 15 anos de produção de crónicas e ensaios, Henrique Raposo estreia-se no romance com As Três Mortes de Lucas Andrade (Quetzal, 2023), uma obra com uma estrutura eficaz que divide a vida do protagonista em quatro “livros”, à maneira bíblica, correspondentes às diferentes identidades assumidas pela personagem. O formato é o de uma biografia do escritor e jornalista Lucas Andrade, escrita já depois do suicídio deste (ou talvez não, já que Raposo apresenta propositadamente um final ambíguo) por um narrador sem acesso a todos os factos, mas que interpreta à sua maneira a informação disponível. Com numerosos traços autobiográficos, o relato de Raposo descreve a trajetória de um jovem oriundo de uma aldeia serrana que, depois do “êxodo” dos pais para os arredores de Lisboa, cresce no bairro fictício (?) do Janeirinho, marcado pela pobreza, criminalidade e toxicodependência, antes dos estudos universitários e do talento para a escrita o conduzirem ao ambiente das elites da capital, durante um período indefinido entre a década de 90 e os primeiros anos do século XXI.
A escrita de Henrique Raposo é bastante direta, sucinta e atenta ao pormenor, numa “arte do inventário” (p. 215) que resulta em descrições realistas (mas não neo-realistas) do meio suburbano e dos seus efeitos no indivíduo. Com um ritmo nem frenético nem pastoso, As Três Mortes de Lucas Andrade nunca se torna aborrecido ao longo de 640 páginas. A questão está em até que ponto o cronista do Expresso deixa o romancista respirar. As considerações sobre os temas mencionados recordam aqueles escritores românticos que se perdiam em longas digressões no meio da história, ajudando à sensação de que os percursos de Lucas Andrade e de outras personagens obedecem sobretudo à necessidade de provar o ponto do narrador/autor. De resto, Raposo pôs toda a carne no assador ao introduzir no livro numerosos assuntos frequentes na sua cronística: o cancro, a pobreza, o suicídio, a violência sexual, a descoberta da fé, as relações entre classes e dentro destas, o mito dos brandos costumes, a doença de Alzheimer, o desprezo pelo trabalho intelectual, o valor do sentido de comunidade contra a “anarquia”, as pressões sociais sobre homens e mulheres, o bem e o mal enquanto escolhas conscientes, os factos históricos desconhecidos que permanecem num “ângulo morto”, etc., etc. A abordagem de cada um destes tópicos é interessante, podendo ser lida separadamente do resto da obra, mas reunir tudo no mesmo prato deixa o leitor algo enfartado.
Refletir sobre a condição suburbana a partir das pistas fornecidas por Raposo num enredo onde tentou com algum sucesso contrariar a alegada invisibilidade mediática e literária da Margem Norte, em particular dos concelhos de Loures e Odivelas, daria outro texto. Sem querer tornar a análise demasiado pessoal (só Deus conhece o duplo sentido que atribuí a determinadas frases e personagens do livro), diria que nunca tive essa sensação de uma “muralha mental e social” (p. 255) a separar a capital dos seus arrabaldes, mantidos à pela Segunda Circular à margem do habitat da elite lisboeta. Existia, de facto, uma fronteira, a inclinada Calçada de Carriche, difícil de transpor na época anterior à chegada do metro a Odivelas e Pontinha, mas após a escala do autocarro 36 no Lumiar não se encontrava uma fauna assim tão diferente da suburbana, até porque eram geralmente as mesmas pessoas agora inseridas no contexto laboral ou em passeio de domingo. Por outro lado, é verdade que nunca falei (a não ser por telefone) com nenhum lisboeta que tivesse dinheiro a sério... Seja como for, a imagem do suburbano como coitadinho ignorado pelos poderes nem sempre condiz com a realidade. Lamento, mas há muitos subúrbios dentro do subúrbio.
Com As Três Mortes de Lucas Andrade, Henrique Raposo consolida o seu universo e atinge um novo nível enquanto escritor, apesar do livro estar longe de ser perfeito. Pelo que o autor anunciou, o segundo romance de Raposo será um western passado no Alentejo da primeira metade do século XIX, numa opção interessante pela mudança para um cenário menos familiar ao antigo aluno da Escola Pedro Alexandrino. Até lá, a biografia fictícia de Lucas Andrade servirá como panorâmica de tempos e lugares pouco explorados na literatura portuguesa, embora as suas dimensões físicas possam atemorizar leitores menos habituados ao estilo raposino.