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Crónica de el-rei D. Jorge

Quando D. Jorge era apenas um fidalgo da corte do rei D. Américo, o Reino Azul atravessava uma época difícil. Anos e anos de sucessivas derrotas contra os reinos vizinhos do Leão e da Águia tinham limitado o território azul a pouco mais do que o velho burgo na foz do rio dourado. Mal se afastavam da cidade, os guerreiros azuis sentiam-se invadidos pelo medo e entravam já vencidos nos campos de batalha. Enquanto subia na hierarquia dos cargos palatinos, D. Jorge estabeleceu uma aliança com outro nobre do reino, D. José Maria, convencendo D. Américo a escolher este último como condestável. D. Jorge e D. José melhoraram o planeamento das batalhas e motivaram os combatentes com um discurso belicoso que promoveu o ódio contra os inimigos que viviam a sul e há muito oprimiam os nortenhos. Após duros recontros com as tropas do Reino da Águia, a hoste azul saiu vitoriosa pela primeira vez em muito tempo. No entanto, ao regressarem à corte instalada no Palácio das Antas, D. Jorge e D. José não receberam as mercês esperadas de D. Américo, por eles considerado um rei frouxo que estabelecia acordos com os rivais através de cedências humilhantes. Na tentativa de mudar o estado de coisas, os dois fidalgos avançaram com parte das tropas para tomar o palácio, mas a revolta foi sufocada. Contudo, durante o seu breve desterro, D. Jorge esperou pacientemente, até porque sabia que o poder de D. Américo estava minado. Seria só uma questão de tempo até o monarca abdicar e, quando o trono ficasse vago, D. Jorge estaria pronto para avançar. Apesar de cultivar sempre boas relações com os bispos, D. Jorge preferiu ser ele próprio a colocar na sua cabeça a coroa de rei azul. Logo a seguir, apontou com a espada para o topo do brasão abençoado do reino e proclamou que a partir de agora o território seria conhecido por Reino do Dragão.

Regularizadas as finanças da Coroa, D. Jorge definiu o objetivo ambicioso de, além de retomar os ataques a sul, derrotar as tropas dos reinos mais ricos e poderosos da Europa. Todos lhe disseram que era impossível, mas D. Jorge não desanimou, nem após o fracasso numa primeira batalha, até porque, pelo sim pelo não, ordenou a um mago que fizesse feitiços propícios aos futuros êxitos do Dragão. E algum tempo depois, numa surpreendente reviravolta na Batalha do Prater, uma contra-ofensiva vitoriosa trouxe a glória aos homens azuis. Quando os guerreiros, trazendo consigo despojos nunca vistos, foram recebidos no velho burgo por uma multidão em delírio, D. Jorge começou um discurso em que afirmava que, com aquele triunfo, a sua missão estava cumprida e talvez ele devesse renunciar à coroa e retirar-se para o seu paço nos arrabaldes. De imediato, tal como D. Jorge previra, o povo aclamou-o e suplicou-lhe que permanecesse no trono até morrer. Não seria a última vez que o rei usaria aquele discurso.

Além de possuir uma sede insaciável de conquistas, D. Jorge nascera para o combate. Só se sentia realmente vivo ao contemplar as fileiras dos exércitos inimigos, dar a ordem de ataque e ouvir o retinir de lanças, espadas, escudos e armaduras. Todos os que o conheceram recordariam o deleite com que banhava a lâmina fina da ironia no sangue dos vencidos. E muitos foram eles, à medida que os sucessos e a expansão do Reino do Dragão traziam novos súbditos a D. Jorge e enriqueciam a sua Coroa. Rodeando-se dos homens mais competentes em todas as áreas, o monarca sabia que o inimigo de hoje é o aliado de amanhã e vice-versa. Mesmo dentro do Palácio das Antas, depois substituído pelo mais moderno Palácio do Dragão, D. Jorge travou as ambições de possíveis rivais ao dar a entender que poderia nomeá-los seus herdeiros e depois, à medida que os anos passavam, ser sempre o seu próprio sucessor. Enquanto o reino prosperava, os súbditos louvavam sem cessar o soberano, que alimentava discretamente aquilo a que em épocas posteriores se chamaria “culto da personalidade”. Nobres, clérigos, burgueses, mesteirais, almocreves, camponeses, pescadores, todos faziam fila para beijar a mão de D. Jorge, um rei protetor das artes que apreciava poetas, trovadores e a boba Joana. Os outros monarcas acusavam o senhor do Reino do Dragão de triunfar recorrendo a grossas peitas e truques sujos, mas não podiam impedir que os seus próprios súbditos sonhassem em ter alguém assim como rei.

Na verdade, D. Jorge sentia-se acima das leis de Deus e dos homens. Para permanecer no poder, reuniu forças como um grupo de mercenários, composto por rufias que livrou da prisão e a quem responsabilizou quer pela sua defesa pessoal quer por expedições de saque em território inimigo, controlando-os de perto para não terem ideias perigosas. A corte do Palácio do Dragão tornou-se cada vez mais numerosa, incluindo fidalgos que recebiam avultadas tenças para fazerem não se sabia exatamente o quê. O caso do infante D. Alexandre era o mais curioso. Embora D. Jorge tivesse dúvidas quanto às suas capacidades para herdar o trono, permitia que o filho vivesse no luxo à custa do erário régio. O Reino do Dragão conseguia recrutar os melhores guerreiros, mas parte do dinheiro usado para recompensar os seus serviços desaparecia misteriosamente. Entretanto, como se comentava entre risinhos nos corredores do palácio, o rei conseguia, mesmo já velho, trazer para o seu leito as moças mais formosas, que depressa repudiava antes delas terem tempo para se sentirem rainhas. O certo é que corriam as décadas e mudavam-se os tempos, as vontades, o ser e a confiança, mas D. Jorge continuava sempre no trono, aparentemente imutável e imperturbável, enquanto as Cortes se reuniam de forma cada vez mais rotineira de quatro em quatro anos para manifestar o seu apoio ao rei.

Pouco a pouco, contudo, os reinos vizinhos aprenderam com o exemplo de D. Jorge e copiaram os seus métodos. Ressentido pela humilhação do dia em que vira o pendão do Dragão hasteado no pináculo da sua catedral, o Reino da Águia tornou-se a potência dominante da região e desviou muitos dos guerreiros que antigamente combateriam por D. Jorge. Os gastos excessivos da corte nortenha e uma série de ataques falhados instalaram no Reino do Dragão uma sensação de decadência e levaram o povo a murmurar, enquanto mesmo os maiores devotos de D. Jorge começavam a duvidar da manutenção da clarividência do soberano idoso. Num palácio agora menos frequentado, D. Jorge procurou uma solução barata e o seu olhar pousou em D. Sérgio, um nobre irascível que o rei vira crescer e aprender a manejar a espada ainda nas Antas. Feito condestável, D. Sérgio conseguiu, com apenas meia dúzia de campónios mal armados, travar o avanço das águias e distinguiu-se por, mesmo após sofrer investidas, conseguir reagrupar as tropas e recuperar a iniciativa. Apesar dos seus esforços, o condestável indispôs-se com vários cortesãos e, limitado pela falta de recursos humanos e materiais, enviou da frente para o Palácio do Dragão várias cartas com queixas sobre a dificuldade em substituir os cavaleiros que perdia por combatentes de igual valor.

Por essa altura, regressou ao velho burgo ribeirinho um fidalgo abastado que antes oferecera grandes vitórias a D. Jorge mas recebera uma oferta irrecusável para servir outro monarca. O nobre contou que estavam a surgir outras formas de governo, com a substituição da monarquia por uma República onde os súbditos se tornavam cidadãos com direito a decidirem sobre os seus destinos e serem informados dos assuntos coletivos. As revelações do aristocrata foram transmitidas entre a população do reino e a ameaça de um motim contra D. Jorge tornava-se a cada dia mais real. Quando as notícias da agitação chegaram ao palácio, o perigo dotou o ancião de uma energia que não se via nele há muitos anos. D. Jorge vestiu a armadura, recuperou a espada e montou no seu cavalo, o Marques Lopes, enquanto dava ordens aos mercenários para avançarem à frente e atacarem sem piedade todos os rebeldes. À medida que cavalgava rumo a mais uma batalha, o rei prometia a si mesmo que os seus fiéis cronistas do velho burgo (a atravessarem então dias de privações e incerteza) ainda teriam muitos capítulos para escrever sobre os feitos gloriosos do senhor do Reino do Dragão.

 

Pinto da Costa: Recandidatura com a ambição de 1982 - FC ...

Os melhores hinos políticos

A nova campanha eleitoral veio relembrar a importância da utilização da música como meio de propaganda política em Portugal. Os novos hinos de campanha que surgem periodicamente aquando das eleições, sobretudo nas autárquicas, têm sido muito satirizados, mas ainda no século XX vários temas obtiveram sucesso assinalável ao aliarem a qualidade musical a um conteúdo político claro e eficaz. Destacamos aqui alguns deles, ordenados de forma totalmente subjetiva. Importa referir que apenas tivemos em consideração canções escritas propositadamente para o marketing de um dado partido ou candidato, pondo de lado, por exemplo, as versões de "A Internacional" adotadas em 1974 por vários partidos ou temas com utilização política muito posterior à sua gravação inicial, como "Liberdade", de Sérgio Godinho, o hino informal do Bloco de Esquerda.

 

5. "Hino do CDS-PP" (Rosa Lobato Faria/Dina), 1995.

A renovação da marca CDS, com a sua transformação no Partido Popular realizada por Paulo Portas e Manuel Monteiro, incluiu um novo hino do partido, que substituiu o tema lançado em 1975 e foi difundido aos quatro ventos por carros com altifalantes durante a campanha das legislativas de 1995. Apesar de apelar ao "orgulho de nascer português", Dina musicou e cantou um poema de Rosa Lobato Faria sem uma carga assumidamente ideológica, que procurava alargar a base de apoio do PP a todos os que fossem "solidários numa mesma canção" e quisessem fazer o país "vencer outra vez". Com uma curiosa piscadela de olho a "Avante Camarada" no verso "Junta a tua voz à nossa voz", o hino centrista é orelhudo, mas torna-se um pouco repetitivo ao longo de cinco minutos de duração.

 

4. "Hino da Aliança Democrática" (Natália Correia/José Calvário), 1979.

Editado num single com "A Portuguesa" no lado B e uma mensagem assinada pelos três líderes dos partidos da AD no verso, o hino da coligação de direita serviu-se da qualidade poética de Natália Correia para marcar uma vontade de rutura com os "escuros véus" da Revolução e, numa atitude que hoje se consideraria polarizadora, deixar "os réus" esquerdistas de fora da festa nacional. A evocação dos "antepassados" e da literatura trovadoresca pretende estabelecer uma ligação entre o passado e o futuro, sendo este assegurado não só por homens mas também pelas mulheres aguerridas da AD, que "trazem Portugal no ventre". Com um ritmo animado e um espírito mobilizador, falta à canção apenas um refrão mais fácil de memorizar. De qualquer forma, é bem mais audível do que o hino da segunda AD, que, sinceramente...

 

3. "Avante Camarada" (Luís Cília), 1967.

O hino oficioso do PCP nasceu quando Luísa Basto deu voz a uma composição de Luís Cília destinada a ser ouvida "no interior" através da emissão da Rádio Portugal Livre e ganhou nova vida logo a seguir ao 25 de Abril, quando vários artistas interpretaram "Avante", cuja difusão ultrapassou em muito as fronteiras do universo comunista. Novas versões, incluindo uma em língua japonesa, seriam gravadas posteriormente. Aludindo à clandestinidade do partido de Álvaro Cunhal e à prisão de muitos dos seus membros, "heróis supremos da batalha", o tema passa uma mensagem de esperança apontando como realizável o objetivo final de uma sociedade igualitária ("o sol brilhará para todos nós"), conseguido através da mobilização de um coletivo onde se incluem, numa novidade para a época, militantes do sexo feminino. "Avante Camarada" tem algo de hino religioso, sendo ainda hoje entoado em coro como tal nos eventos do PCP:

 

2. "Rock da Liberdade" (António-Pedro Vasconcelos/Rui Veloso), 1986.

Na disputa renhida da segunda volta das eleições presidenciais de 1986, enquanto a candidatura de Diogo Freitas do Amaral lançava o solene single "Prá Frente Portugal", o MASP procurava atrair os jovens com uma "batida para curtir" e a voz do ídolo Rui Veloso, que recorreu a uma sonoridade típica dos seus trabalhos na década de 80. Apesar da sua inexperiência na escrita de canções, o realizador António Pedro-Vasconcelos conseguiu versos notáveis ("Ai que bom nós podermos discordar", "Andar de braço dado com a razão") numa letra que, sem dizer o nome de Mário Soares, salientava que "a esperança tem um rosto e uma voz", associando o candidato aos valores da paz e da tolerância e afirmando implicitamente que Soares (ao contrário de Freitas) era a garantia de que a ditadura nunca mais voltaria. O resultado foi um tema que uniu a esquerda, ficou no ouvido de muita gente, mesmo do lado dos derrotados, e, apesar do seu caráter efémero, mantém uma frescura impressionante.

 

1. "Hino do PPD/PSD" (Paulo de Carvalho), 1974.

Conhecida também por "Povo Livre" ou "Paz, Pão, Povo e Liberdade", a canção escrita por Paulo de Carvalho, a pedido de Francisco Sá Carneiro, para um partido de centro-esquerda como era o PPD em 1974 apresenta uma gravação original com coro e orquestra ligeiramente superior à versão folk atualmente difundida pelos sociais-democratas. A letra centra-se nos quatro pontos essenciais da "paz", do "pão", do "povo" e da "liberdade", ligados à democracia e enunciados num refrão viciante. O apelo à participação do público ("Canta, povo, canta"), o crescendo final e a transmissão da mensagem em apenas dois minutos e meio contribuem para o impacto emocional pretendido e ainda hoje alcançado.

 

Livro Francisco Sá Carneiro - PPD disco vinil - Alfinete AD - PSD Pin

Manifesto contra a indignação

Somos pessoas oriundas de vários setores sociais e políticos e, no início de uma campanha eleitoral que nos deverá deixar exaustos muito antes de 10 de março, gostaríamos de fazer um apelo. O nosso apelo não se dirige aos líderes partidários, que estão só a fazer o trabalho deles, mas sim a todos aqueles que discutem a situação política nos cafés, nos táxis, nas escolas, nas redes sociais, nos casamentos, nos jantares de curso ou nas festas de aniversário. O que pedimos é simplesmente que não se levem demasiado a sério. Não atuem como se estivessem a salvar o mundo, mesmo que queiram salvá-lo. Tenham um pouco de sangue-frio para evitarem cair na armadilha da indignação permanente. Sejamos liberais, fascistas, centristas, socialistas, comunistas, ecologistas, conservadores, democratas-cristãos ou outra coisa qualquer, todos devemos partilhar o terreno de jogo.

Reconhecemos que é um objetivo difícil de alcançar. Muito se tem falado de moderação, mas hoje em dia tudo estimula o radicalismo no ambiente mediático. A única maneira de um moderado conseguir atenção é ser radicalmente moderado (se for moderadamente radical, já não funciona). De facto, a indignação vende bem. Há traficantes de indignação a edificarem casas tão luxuosas como a de Tony Montana em Scarface, sem caírem no erro de consumirem o produto vendido. Os media servem doses generosas de indignação, temperadas com umas gotas de suspeição e um travo de ressentimento, e quando os clientes já estão enfartados de um prato apressam-se a fazer outro. A indignação torna-se viciante e dá origem a um ruído contínuo que abafa qualquer conversa inteligente. Nunca imaginámos dizer isto, mas, para sobreviver, a democracia precisa de mais indiferença e encolheres de ombros. Menos “É uma vergonha!” e mais “Pois, é capaz”, “Não estava a ouvir”, “Não percebo nada disso”, “Sei lá se é verdade”, “Deixa-me ver o Seinfeld”, etc. Sem o ar quente da fúria, o populismo esvazia-se devagar como um balão.

Todos vivemos em bolhas, mas é necessário lermos ou ouvirmos opiniões com que não concordamos. Façam isso mais vezes. O mais provável é reforçarem as vossas convicções ou repararem que há outras maneiras de encarar o mundo. Sem terem de “compreender” nada, podem conhecer melhor aquilo a que se opõem. E se encontrarem uma afirmação inaceitável, recorram a uma arma temível, o silêncio. Quando tudo o que dizemos pode ser mal interpretado, será melhor não arriscarmos sequer um “bom dia”, manifestando-nos apenas na mesa de voto. Ficarem calados também é útil por razões calculistas: se os vossos oponentes só ouvirem os aplausos, sobrestimam o apoio que têm, tornam-se demasiado confiantes, cometem mais erros e na noite eleitoral ficarão estupefactos com os resultados. Se apesar de tudo resolverem partir para a discussão, lembrem-se sempre de onde fica a saída mais próxima e, por favor, mantenham um mínimo de crença na boa-fé de quem está na outra tribo. Quando passamos de “os nossos adversários estão errados” para “os nossos adversários são uns bandidos”, um pequeno mestre Fernando Madureira nasce dentro de nós.

Evitem bloquear pessoas, exceto em caso de insulto aos vossos familiares diretos. Recorram à ironia e ao humor e mantenham o nível do português à tona de água. Procurem, mesmo sabendo que é impossível, ser tão polidos e educados como o prof. Marçal Grilo. Apelamos a que façam isto tudo (e prometemos tentar aceder aos nossos próprios pedidos) para reduzir o dramatismo e relativizar a discussão política. O país vai continuar a existir depois das eleições e é demasiado pequeno para que não precisemos de conviver pacificamente com as mesmas pessoas que “combatemos” durante a campanha. Nas palavras imortais de Mário Soares, “Era só o que faltava que nos chateássemos por causa da merda da política”.

 

Os abaixo-assinados,

 

1. Pedro Serra, historiador

2. (assinar nos comentários)

 

Os meus jornais e revistas

(Para a minha mãe)

 

Hiper Disney: José Pacheco Pereira costuma dizer que, entre tudo o que leu na sua juventude, nada o “fez” tanto como a revista Cavaleiro Andante. De igual forma, eu não seria o mesmo sem todas as publicações da Disney, da Turma da Mônica e doutras personagens que enchiam os quiosques e papelarias nas décadas de 80 e 90. Para representá-las, menciono o Hiper Disney, uma revista lançada em 1989 que se diferenciava dos outros periódicos da Abril Morumbi por caraterísticas como o tamanho, a encadernação (as lombadas das edições de cada ano formavam uma imagem ao juntarem-se) ou o traço dos desenhos provenientes da escola italiana da Disney, numa altura em que a produção brasileira era ainda a mais conhecida dos miúdos portugueses. As histórias da revista possuíam também argumentos de maior arrojo, com vários finais alternativos ou experiências como recontar Os Miseráveis com as personagens da Disney. Por volta de 1994, Hiper Disney era já apenas uma compilação de histórias antigas semelhante a outras existentes no mercado.

Visão: A partir de 1996, li e guardei a newsmagazine dirigida por Cáceres Monteiro e pelos seus sucessores, dando origem a uma coleção que com o passar do tempo se tornou um monstro incontrolável. Quando a pandemia chegou, em março de 2020, aproveitei para deixar de comprar a Visão, devido a razões como cansaço, falta de espaço em casa e a perda da “mística” alcançada pela revista nas suas primeiras duas décadas. O jornalista Luís Ribeiro recordou nas redes sociais o apogeu e a decadência (ainda em curso) da Visão, pelo que me basta salientar a forma como a publicação soube compreender os interesses e preocupações da classe média portuguesa e oferecer-lhe aquilo que desejava ler. Tal como o seu antecessor, O Jornal, a Visão tinha uma perspetiva do mundo que a levava por vezes a tomar posição (a favor da despenalização do aborto, contra a invasão do Iraque, etc.), mas sem esfregá-la na cara do leitor e dando-lhe informação para pensar por si próprio, para além de colunistas como António Lobo Antunes e Ricardo Araújo Pereira. Espero que não seja necessário em breve que eu recue para aderir a uma campanha destinada a assegurar a sobrevivência da Visão.

 

Visão | 30 anos

 

20 Anos: Subsistem poucas memórias da versão lusa da revista francesa 20 Ans, dirigida por Paula Ribeiro e publicada mensalmente entre 1997 e 1998. Com 13 anos, eu acedia à revista porque a minha irmã a comprava e, tendo em conta a faixa etária referida no título, vários artigos passavam-me ao lado, mas adorava o grafismo, a irreverência dos conteúdos, as pranchas do Loverboy da autoria de Marte (Marcos Farrajota) e João Fazenda e sobretudo os “testes” e outros artigos humorísticos escritos pelos então vintões Miguel Góis e Ricardo Araújo Pereira. A curta vida da publicação dá a entender que teve dificuldades em encontrar os jovens a que se dirigia.

Público: Muitas pessoas que cresceram nos anos 90 e 00 aprenderam a olhar o mundo com o Público. Sob a direção de Vicente Jorge Silva, José Manuel Fernandes ou Bárbara Reis, o diário da Sonae apresentava uma vasta cobertura da atualidade nacional e internacional e um conjunto de secções e conteúdos que ficaram ligados à identidade do periódico: a revista dominical Pública, o Bartoon de Luís Afonso (hoje em dia, o barman mostra a amargura cética dos comerciantes há muito tempo no negócio), as Histórias de Amor de Miguel, as tiras de Calvin & Hobbes, os suplementos culturais, O Inimigo Público, as colunas de Eduardo Cintra Torres, Miguel Sousa Tavares, Eduardo Prado Coelho ou Vasco Pulido Valente, a divulgação de BD e ilustração, etc. Até o quadrado “O Público Errou” era saudavelmente humilde. O que mudou no jornal nos últimos anos? O mesmo que em todo o lado, imagino: o tempo encolheu.

Premiere: Surgida em 1999, a edição portuguesa desta revista de cinema do grupo Hachette não tinha nada de muito original, mas era suficientemente forte para abafar quem lhe tentasse fazer concorrência, como a efémera Primeiras Imagens. As críticas aos filmes disponíveis nas salas e em VHS/DVD, as antevisões das próximas estreias e algumas entrevistas e reportagens sobre o cinema português tornavam a Premiere obrigatória para os cinéfilos que lançavam blogues dedicados à sétima arte na primeira década deste século. Em 2011, a viabilidade comercial de revistas de cinema em papel era já coisa do passado em Portugal.

Observador: O jornal digital de Rui Ramos e José Manuel Fernandes, entre outros, é eficiente no fornecimento daquelas notícias publicadas às 17.57 que já estão desatualizadas às 18.43. Essa rapidez de resposta distingue o Observador da ingenuidade de outros órgãos de imprensa politicamente orientados e atrai algumas pessoas exteriores à linha ideológica definida por Ramos e transmitida numa linguagem mais próxima das massas pelos restantes comentadores. A secção de opinião do jornal serve ainda para aprendermos a distinguir humoristas de quem podemos discordar mas têm sempre piada (Zé Diogo Quintela) de outros que se tornaram os maiores da aldeia deles (Tiago Dores). Os anuários em papel reúnem os ensaios e reportagens mais duráveis e alguns exemplos do combate cultural do Observador que farão dele um objeto de estudo fascinante para os futuros historiadores dos media.

JN História: Um projeto muito pessoal do jornalista Pedro Olavo Simões, o qual produz, em parceria com vários investigadores, uma revista de divulgação histórica que já completou oito anos de publicação, embora atualmente cada número possa ser o último, devido à situação no grupo Global Media. Visualmente atrativa e sensível aos estímulos noticiosos, a JN História consegue evitar a superficialidade sem ser exaustiva, servindo de elo de ligação entre a academia e o “grande público” interessado por temas históricos. As entrevistas a historiadores, selecionados com o cuidado de repartir a atenção pelas várias universidades do país, resultam em conversas muito interessantes sobre o passado e o presente e mostram o valor das principais figuras da historiografia lusa. É assim que se divulga a História, não com vídeos feitos às três pancadas e publicados no Tik Tok.

Livros que devíamos ler em 2024

Quando José Rodrigues dos Santos afirmou que, como os livros que gostaria de ler não existiam, ele próprio os escrevia, foi muito gozado, mas o autor de Sinal de Vida acertou até certo ponto. De facto, qualquer escritor que crie uma obra, seja de ficção ou de não-ficção, procura dar à luz material ainda não publicado, acrescentando um determinado tema ou a sua perspetiva pessoal acerca dele. Basicamente, urinar no mar como o rato. Assim, há sempre lacunas por suprir na produção bibliográfica portuguesa, pelo que apresentarei algumas sugestões de trabalhos que gostaria de encontrar nas livrarias, embora seja demasiado preguiçoso para escrevê-los.

 

Aníbal Cavaco Silva, Uma biografia: Por estranho que pareça, precisamos de saber muito mais sobre Cavaco Silva. Depois de sair de Belém, o algarvio dedicou-se de forma quase obsessiva à tarefa de definir a versão oficial da sua vida pessoal e política, aquela que os historiadores futuros deverão reproduzir vírgula por vírgula. Falta mais contraditório e, tendo em conta que o arquivo particular de Cavaco ainda está na posse do próprio, o trabalho biográfico seria sobretudo de cariz jornalístico, incluindo a recolha de depoimentos de fontes anónimas. Naturalmente, Joaquim Vieira seria a opção ideal para dedicar ao antigo líder social-democrata uma obra semelhante às suas biografias de figuras como Mário Soares, José Saramago ou Francisco Pinto Balsemão. Existe, contudo, um problema: Vieira costuma estudar apenas as vidas de homens com sucesso entre as mulheres e a entediante monogamia de Cavaco Silva pode desinteressá-lo de uma biografia do economista.

 

I’m in Love With a Popstar (Me). Autobiografia de Sebastião Bugalho: Por se tratar de um jovem, pode parecer bizarra esta proposta de um livro de memórias, mas Sebastião Bugalho já viveu mais experiências do que a maioria das pessoas, a começar pela pressão de ser um menino prodígio. Bugalho moveu-se à vontade nos bastidores da política e do jornalismo, conhecidos por poucos portugueses, e seguiu um rápido percurso até ao topo da pirâmide do comentário político durante o qual fez inúmeros amigos e inimigos e provou os sabores da vitória e (raramente) da derrota. Deve ser uma história apaixonante, ainda por cima vivida por alguém com um pendor autobiográfico inato. A sério, Sebastião, pense nisso.

 

 

Memórias dos Clubes de Vídeo: Numa altura em que o espólio dos antigos videoclubes está a ser literalmente atirado à rua, seria valioso dispor de uma recolha de fontes para o estudo desse tipo de lojas. A obra incluiria entrevistas a proprietários e frequentadores de clubes de vídeo, imagens de cartazes, cartões de sócio, caixas de filmes em VHS e DVD e outros objetos ligados ao ramo ou breves textos sobre as diferenças entre os videoclubes de 1985 e 2005 e o apogeu e queda do aluguer de cinema para exibição doméstica. Tendo em conta o valor comercial da nostalgia, o livro poderia constituir um produto apetecível para os editores.

 

Partido Renovador Democrático (PRD). O cometa eanista: O PRD foi o terceiro partido mais votado nas eleições legislativas de 1985. Apenas seis anos depois, tinha perdido um milhão de votos e saído do Parlamento para não mais voltar. A rapidez do sucesso e do fracasso da organização criada à volta da figura de Ramalho Eanes é em si mesma uma motivação para um ainda inexistente estudo de história ou ciência política em torno dos renovadores democráticos. Permanecem, no entanto, muitas outras dúvidas sobre esta experiência partidária. Que tipo de pessoas aderiram ao PRD? Quais eram os principais tópicos do seu discurso e textos programáticos? Que divisões internas surgiram? Quem ficou no partido durante a longa agonia dos anos 90? O PRD pode ser comparado aos atuais partidos populistas ou “de protesto”? Foi tudo um fenómeno passageiro ou traços do eanismo permaneceram na cultura política portuguesa até hoje? Alguém tem de entrevistar o casal Eanes e outros protagonistas do PRD para esclarecer estes pontos.

 

 

Sandra Felgueiras, “Doa a quem doer”: Talvez ainda não seja a altura certa para a publicação de uma investigação sobre o trajeto profissional de Sandra Felgueiras. Por um lado, porque se trata de uma figura em contínua ascensão, com novos feitos por alcançar. Por outro, porque Felgueiras certamente apresentaria uma providência cautelar para impedir a venda do livro se não gostasse do texto final. No entanto, seria bom iniciar um estudo das várias facetas da pivô da TVI: a jornalista-celebridade, a jornalista no centro da notícia, a jornalista nas redes sociais, a jornalista contra o poder, etc. Haverão certamente muitos antigos companheiros de redação de Felgueiras que terão imenso para dizer sobre a colega e as suas conceções do jornalismo.

 

Uma História da História do Desporto em Portugal: Passados cerca de 20 anos desde as primeiras investigações académicas acerca da evolução do futebol e de outras modalidades no país, é tempo de fazer um balanço para inventariar aquilo que já foi feito e o que permanece por explorar. O trabalho de historiadores nos museus clubísticos, a adesão das editoras e do público aos livros sobre o tema ou a colaboração com investigadores estrangeiros da mesma área seriam alguns dos aspetos a desenvolver. A realização de um congresso sobre a historiografia do desporto português e a publicação das respetivas atas poderia ser um meio de concretizar o “estado da arte” neste campo de estudo.