A pessoa mais apta a falar sobre a história da comunicação social na área do atual concelho de Odivelas é sem dúvida o jornalista Henrique Ribeiro. Desde os tempos do Jornal da Pontinha, criado em 1978, que Ribeiro se dedica, por vezes praticamente sozinho, a noticiar os eventos ocorridos nos arredores de Lisboa, tendo passado por periódicos como Gira Loures, Vento Novo, Nova Odivelas ou Odivelas Notícias antes de fundar o jornal digital Diário de Odivelas. O mais recente projeto do jornalista pontinhense tem sido afetado, no entanto, por sucessivos ataques informáticos que dificultam a manutenção do site, tal como pela escassez de meios e publicidade, limitativa da abrangência do noticiário. Apesar da carolice de Ribeiro, a subsistência do Diário de Odivelas, com poucos seguidores nas redes sociais, parece estar permanentemente em causa.
Na verdade, o desenvolvimento da imprensa no território odivelense nunca foi fácil. As notícias de localidades como Caneças, Odivelas e Póvoa de Santo Adrião foram habitualmente divulgadas ao longo do século XX por jornais sediados em Loures e por alguns correspondentes de periódicos lisboetas, entre eles O Século, Os Sports e Diário de Notícias. Já depois do 25 de Abril e do forte crescimento urbano verificado na zona saloia a partir da década de 50, surgiram experiências como o Jornal da Pontinha e o Jornal de Odivelas (onde escreveu o jovem Hernâni Carvalho), sem continuidade para além do início da década de 80, na qual surgiriam Acção, O Exemplar, Sexta à Tarde, Varandim e outros títulos de curta duração. Nesse período, o dinamismo encontrava-se sobretudo na rádio, através do trabalho das emissoras piratas Cruzeiro, Imprevisto e Nova Antena, a última das quais daria o salto para a legalidade, tornando-se um marco dos media locais até ao final da primeira década do século XXI.
A criação do município de Odivelas em 1998 estimulou um novo fôlego da imprensa local, quer através de títulos ligados às autarquias quer pelo lançamento do semanário Nova Odivelas, a que se juntaria em 2003 um novo Jornal de Odivelas. Tratava-se de jornais gratuitos e financiados apenas pela publicidade, mas dotados de uma qualidade assinalável, sobretudo na fase em que Nova Odivelas esteve sob a direção de Henrique Ribeiro, o qual apostou igualmente no online (parte da produção jornalística dessa época encontra-se disponível no Arquivo.pt). Os periódicos tornaram-se o terreno privilegiado para o debate entre as concelhias dos vários partidos políticos e o acompanhamento da atividade desportiva local. Ambos os jornais desapareceriam nos anos 10, quando, apesar do regresso da Rádio Cruzeiro pela via das emissões online, os media odivelenses sofreram uma nítida regressão. O empresário Francisco Godinho criou então o semanário gratuito Odivelas Notícias, distribuído nas entradas dos prédios ou em estabelecimentos comerciais. O entusiasmo do público nunca abundou perante um jornal onde praticamente tudo era publicidade, não só nos anúncios e artigos de divulgação mas também nos comunicados enviados por clubes, partidos ou autarquias e reproduzidos sem enquadramento. O espaço de opinião era relativamente interessante, apesar das crónicas desportivas de Vítor Cacito incluírem referências à política sem uma necessária clarificação acerca das funções de dirigente distrital do Chega desempenhadas pelo autor. A morte súbita de Francisco Godinho em agosto de 2022 ditou o fim do Odivelas Notícias e gerou um vazio que Ribeiro tenta preencher com o Diário de Odivelas, sem grande sucesso.
Porque é que um município habitado por cerca de 148 mil pessoas não dispõe de um jornal ou uma rádio local com audiências relevantes? Poder-se-ia apontar causas tradicionais como a fraqueza da sociedade civil odivelense ou a carência de sentimentos bairristas, mas a vastidão do movimento associativo, prejudicado pela sua fragmentação, cria algumas dúvidas. Nem sequer é certo que os munícipes não se interessem por notícias locais. Recorde-se que parte do sucesso do Correio da Manhã, o único diário nacional com vendas significativas em banca, deve-se à sua rede de correspondentes espalhada por todo o país, que lhe fornece um noticiário menos centrado em Lisboa ou Porto que o dos jornais concorrentes. Aparentemente, as pessoas gostam de ler as notícias da sua terra, mesmo que se trate de crimes (vários casos mediáticos ocorreram em Odivelas nos últimos anos, surgindo nas páginas do CM). Na verdade, o problema de Odivelas enquadra-se na crise geral do jornalismo e num ciclo vicioso em que a falta de capital das empresas de media, a braços com a falta de receitas, leva a investimentos diminutos em meios e mão-de-obra. Daí resultam produtos jornalísticos de baixa qualidade que afastam os leitores e desse modo afastam também os anunciantes, o que encurta ainda mais as receitas, e assim sucessivamente. A debilidade da comunicação social odivelense tem efeitos negativos, com a política local a ganhar visibilidade apenas em vésperas de eleições autárquicas e o conhecimento da maioria da população acerca da atividade (ou falta dela) da Câmara e das juntas de freguesia a manter-se reduzido. O que aparece nas redes sociais são sobretudo boatos, propaganda, maledicência fácil e discursos partidários sem confirmação ou desmentido. Não há jornais porque não há público ou não há público porque não há jornais? Gostaria de ter uma solução para o problema, mas não a conheço. Entretanto, o que estará a acontecer no concelho de Odivelas neste momento?
O cronista necessita de escrever mais um texto, tentando manter a cadência semanal sugerida pela psicóloga. Ele diverte-se por uns minutos a imaginar o que seria um partido populista de esquerda presidido pela liberal que se julga marxista. O paralelismo com os populistas de direita é óbvio mas injusto; o escriba desiste do plano. Pensa em escrever uma carta aberta ao antigo conterrâneo e acha a ideia absurda; mais um papel amarrotado ruma ao cesto imaginário. O cronista procura gerar prosas que demonstrem a superioridade da social-democracia, do catolicismo e do FC Porto; nem uma palavra lhe sai. Ele tem saudades do Douro, mas agora não é o momento de falar disso. No silêncio noturno, a folha de papel digital mantém-se virgem. Começa a ouvir aquele barulho irritante do frigorífico e levanta-se para lhe dar uma palmada.
O cronista recorda agora o orgulho pueril que sentia quando as suas composições eram escolhidas pela professora para saírem no jornal da escola, como aquela a favor da causa timorense. Durante a adolescência, interessado sobretudo na ficção, pouco ligava a textos escritos para a imprensa. As exceções, reunidas em livros, eram as crónicas de António Lobo Antunes e Miguel Esteves Cardoso, arte pura e inimitável. Lembra-se de ler em 2003 dúzias de artigos de opinião nos jornais a favor e contra a invasão do Iraque. Por essa altura, surgiram os blogues, movidos pelo entusiasmo cândido de jornalistas que não imaginavam que a Internet destruiria a imprensa como a conheciam e de cronistas que ainda não se levavam demasiado a sério nem tentavam salvar o mundo com cada texto. A blogosfera servia como academia para formação e scouting de novos colunistas da imprensa tradicional, dando espaço a nomes como Pedro Mexia, Rui Tavares, Daniel Oliveira ou Pedro Marques Lopes. Ele não tinha arcaboiço para os blogues políticos, mas o argumentista (que, afinal, conhecera a economista através de um artigo de opinião) deixou-o brincar aos críticos de cinema. Eram textos curtos e dominados pela dificuldade em encontrar sinónimos de “filme” além de “fita”, “película” ou “longa-metragem”. Pouca gente lia as suas críticas, embora o cronista tenha apreciado a interatividade e a ligação aos outros blogues cinéfilos integrados na ABCine, uma breve iniciativa do jornalista do Porto. Os anos dourados da blogosfera passaram rapidamente, enquanto ele via mais uns filmes e acabava por cansar-se. Tentaria um projeto mais generalista, acabando por limitar-se a transcrever pequenas notícias de jornais antigos que julgava curiosas por um motivo ou outro. Deixou-se disso e ficou à espera que José Cid gravasse finalmente o álbum Vozes do Além.
Ao longo dos anos 10, o cronista que nada escrevia reparava que os textos opinativos se tornavam uma forma barata dos diários encherem papel, ao abrirem as suas páginas a colunistas que eram remunerados apenas com publicidade aos seus nomes. Os jornais online, sem limitações de espaço, mostravam-se disponíveis para colaborações de todos os prosadores que respeitassem a sua orientação política. A crónica banalizou-se e os seus autores passaram a falar cada um para seu lado, sem ninguém com quem dialogar no meio de tanta oferta. Era nas redes sociais, onde todos podiam ser cronistas, que a discussão se reacendia. A historiadora dos resistentes, por exemplo, atingia nas redes muito mais pessoas do que aquelas que a leriam numa coluna fixa num jornal como o Público, antigo fórum da nata da opinião. As editoras também passaram a publicar cada vez menos compilações de crónicas, apesar de exceções como os livros de Ricardo Araújo Pereira, sustentáculo da Tinta da China.
Entediado após a conclusão da tese e desejoso de se juntar às discussões de café, o cronista começou a mandar umas bocas, para cedo concluir que o Facebook não servia os seus propósitos. Numa tarde em que ouviu a Banda do Casaco e se sentiu estranhamente dinâmico, ele criou um blogue apesar desses espaços terem há muito passado de moda. Sem uma orientação clara, tentou pegar em temas e perspetivas ignorados pelos opinadores profissionais. O cronista recorda agora o orgulho pueril que sentia quando os seus posts eram escolhidos pela plataforma anfitriã do blogue para receberem destaque, como aquele sobre um romance de José Rodrigues dos Santos. O autor do blogue pensou em imprimir cartões publicitários com o seu nome em cima do título “Escritor de não-ficção”, até concluir que ninguém contrataria os seus serviços. Incrivelmente, um dia recebeu uma proposta da agente do sobrinho do general, interessado na sua escrita, para biografá-lo. Aceitou, mas claro que o tempo e a pandemia impediram a concretização do sonho. Prosseguiu as crónicas entre longas pausas nas quais duvidava que alguma vez regressasse ao ativo, mas, pelo sim pelo não, recusava fechar a loja.
Num breve regresso do entusiasmo, o cronista pegou novamente na pena virtual e tentou comercializar melhor o seu produto. Não seria fácil, ainda para mais depois da Meta limitar a visibilidade de posts com links. Ainda assim, ali está ele em frente ao computador, a hesitar enquanto ouve a ruminação do frigorífico. Porque não abandona o bloguismo e persiste em juntar palavras efémeras sem recompensa? Lembra-se então da conversa que teve com o engenheiro e de como desenhar uma máquina era semelhante a escrever um texto. No seu caso, eram as frases que iam surgindo a pouco e pouco na cabeça, formando-se separadamente até ele estabelecer as ligações, descobrir outras peças vindas do fundo do armazém e juntar tudo no mesmo aparelho. Um escritor a sério, Bruno Vieira Amaral, falou do “sonho que somos” mesmo que nunca o concretizemos. Assim, se o bloguista sonha ser cronista e escritor de não-ficção, então é precisamente isso que ele é. Que remédio terá senão prosseguir na criação de prosas em breve reduzidas a fragmentos esquecidos do passado? Ele acredita, de alguma maneira, que só assim poderá regressar às águas do Douro.
1. O resultado das penúltimas eleições legislativas era, na verdade, previsível aquando do chumbo do Orçamento de Estado para 2022, antes das sondagens espalharem a confusão. Insatisfeito e surpreendido com a opção do PCP e do Bloco, o eleitorado de esquerda concentrou-se no PS, ao mesmo tempo que a direita se fragmentava, levando aos resultados conhecidos. Da mesma forma, os votos de 10 de março de 2024 foram em grande parte construídos em novembro de 2023, como as sondagens surgidas ainda nesse mês indicaram ao apontarem uma estagnação de PS e PSD e um crescimento súbito do Chega para pelo menos 15%. Nas últimas semanas de campanha, a comunicação social ficou obcecada com os indecisos e as pessoas que podiam mudar de opinião em resultado desta ou daquela frase dos líderes partidários, quando o essencial já estava definido depois do terceiro Governo Costa cair por causa de um escândalo de corrupção. É certo que a Operação Influencer pariu um Mickey a quem a Minnie nascida do desembarque do MP na Madeira viria fazer companhia, mas a impressão criada pelo 7 de Novembro era já indelével. E quando alguns comentadores falaram da desastrosa campanha de André Ventura e do resultado abaixo das expetativas deste que o Chega teria, um mau pressentimento generalizou-se.
2. A partir das autárquicas de 2017, começou a notar-se um declínio estrutural do PSD que ia além dos efeitos do estilo deste ou daquele líder. A perda de autarquias, a ruralização do eleitorado laranja ou a dificuldade em penetrar a sul do Mondego, acompanhadas pelo surgimento de novos partidos à direita, indiciavam que a futura desgraça do PS não implicaria o sucesso automático do PSD, como Rui Rio ainda acreditava no início de 2020. O partido não conseguia expandir-se significativamente nos grandes centros urbanos, numa tendência disfarçada pelo caso particular do triunfo de Carlos Moedas em Lisboa. Esses bloqueios conduziram à vitória pírrica da AD, cujo resultado correspondeu, basicamente, à soma das percentagens obtidas por PSD e CDS há dois anos. É natural assumir que o PSD não voltará a ultrapassar um terço dos votos durante muito tempo. No entanto, o PS também apresenta sintomas de enfraquecimento, que uma maioria absoluta ligada ao contexto específico do final da pandemia apenas adiou. O envelhecimento dos eleitores e militantes socialistas (em 2020, mais de metade dos filiados no PS superava os 50 anos de idade), associado à conotação do partido com o suculento mas limitado nicho eleitoral dos pensionistas, dificulta a renovação. No fundo, trata-se do mercado a funcionar: PS e PSD são marcas antigas, com imagens desgastadas e consumidores que se resumem praticamente apenas a uma clientela fidelizada nos tempos de lucros que os fabricantes de ambos os produtos julgavam ser eternos. Fazer um rebranding aos dois principais partidos nacionais não será fácil.
3. Enquanto AD e PS empataram (ou algo do género) entre si e o Chega explodiu, nenhum dos restantes partidos sofreu uma derrota esmagadora. A IL e o BE também registaram empates, mantendo os mesmos números de deputados, ao passo que o Livre cresceu para aquele que poderá ser o seu espaço natural. O PCP prosseguiu o caminho heroico para a irrelevância, embora existisse o receio de um resultado ainda pior, e o PAN, sem conseguir subir, evitou uma saída de S. Bento da qual resultaria o fim do partido. Por seu turno, o CDS arrendou a custo acessível um quartinho no palacete do PSD. A tendência para a fragmentação, só aparentemente interrompida em 2022, reforçou-se para compor uma Assembleia da República heterogénea. A questão é saber até que ponto esse novo Parlamento não será o espelho perfeito da fragmentação e compartimentação da sociedade que representa, dividida em nichos com interesses e linguagens próprios. Os resultados das legislativas ainda serão esmiuçados em pormenor, mas as sondagens pré-eleitorais já indicavam clivagens nítidas entre sexos, regiões, classes ou grupos etários. As idosas de esquerda, assustadas com um país que julgam ter enlouquecido, pouco têm de comum com os rapazes educados para exterminar o “socialismo”. Nenhum dos grupos possui uma força esmagadora nem é suficientemente fraco para ser varrido do mapa. Depois da recomposição, virá uma cristalização das divisões?
4. Quando Donald Trump foi eleito presidente dos EUA, em 2016, Miguel Vale de Almeida afastou culpas da esquerda ao escrever no Facebook que “não fomos longe demais porra nenhuma”. No mesmo tom agastado, podemos dizer agora que não precisamos de compreender porra nenhuma. Desde logo, porque é que só se fala em “compreender” quem vota na extrema-direita, enquanto a opção pelos restantes setores políticos surge como natural e sem necessidade de explicação? E, nesta altura do campeonato, o que é afinal o “voto de protesto”? “Vou votar no Ventura para mostrar àquela malta que estou muito chateado. Felizmente, ele não vai ganhar, Deus me livre.” Se houver um em cem portugueses a pensar assim, já é muito. Claro que não há em Portugal mais de um milhão de racistas, mas pelos vistos essas pessoas não se importam muito de apoiar um partido que recorre a um discurso xenófobo. Nem existe um milhão de saudosistas do Estado Novo, embora muita gente queira agora uma “verdadeira democracia” e o fim da “ditadura de esquerda”. O melhor que podemos fazer é tratar os eleitores do Chega como adultos responsáveis e não como crianças (“diz ao senhor doutor onde é que te dói”).
5. Os resultados no concelho de Odivelas não foram muito diferentes dos totais nacionais, com o PS a vencer com cerca de 30,6%, a AD a ficar-se pelos 22,8% e o Chega nos 20,1%. Verifica-se, no entanto, que há áreas do município, como Famões ou a Ramada, onde o Chega tem mais implantação que noutras. Já na minha aldeia natal de Arroios, uma terra Livre (o partido de Rui Tavares ficou em terceiro lugar na freguesia, atrás de AD e PS), o Chega não atingiu os 9%, o que é curioso. Num lugar tão multicultural, não deveria haver choques violentos mas inevitáveis entre as diferentes religiões e comunidades? Os arroienses de bem não podem deixar de se sentir ofendidos por tantas lojas pertencentes a invasores asiáticos.
Um artigo jornalístico refere que Paulo Raimundo está à vontade a fazer campanha na rua, junto das “pessoas comuns”. O crítico de televisão Eduardo Cintra Torres acha que Isto É Gozar com Quem Trabalha tornou-se menos engraçado desde que Ricardo Araújo Pereira começou a “achincalhar pessoas comuns” e não apenas os políticos. De facto, as “pessoas comuns” que vivem em Portugal dominam o discurso político e mediático há vários anos. Partidos, jornalistas, comentadores, todos partem em demanda dos portugueses comuns, certos de que ao descobri-los encontrarão a verdade pura e redentora. Numa época em que a palavra “povo” vai caindo em desuso e as classes sociais possuem fronteiras e designações pouco nítidas, a “pessoa comum” tornou-se o novo motor da História. Mas, afinal, o que carateriza um português comum (PC)?
Os especialistas têm definido os PC sobretudo através da exclusão de quem não pertence a esse conjunto. Por exemplo, nem sempre são claras as atividades profissionais que os PC desempenham, mas é um facto consensual que nenhum deles faz comentário político na televisão ou na imprensa. Também existem diferentes descrições do tipo de habitação em que um PC mora, sendo apenas certo que não vivem na “bolha”. Os moradores desta, os bolhões, distinguem-se por falarem de assuntos supérfluos que em nada interessam aos PC. O típico bolhão passa horas a discutir, geralmente com um microfone à frente, situações teóricas sem qualquer ligação à realidade. Já os PC não precisam de discutir a realidade porque vivem nela e portanto conhecem-na perfeitamente. O bolhão é um privilegiado com rendimentos oriundos de fonte incerta, embora certamente retirados de forma ilegítima aos PC. O PC é sempre vítima de uma injustiça e nunca recebe a recompensa (não se trata apenas de dinheiro, mas sobretudo de atenção) que merece. É fácil encontrar um bolhão porque quase todos eles têm casa na zona do Príncipe Real, em Lisboa, e raramente saem de lá. Quanto aos PC, podem ser detetados, como se viu, quando percorrem ruas a pé, mas há outros espaços, como mercados, estádios ou transportes públicos, onde eles costumam abundar. O PC detesta coisas complicadas e, na televisão, gosta de ver futebol, novelas e reality-shows. Por natureza, o PC possui fraca instrução, um vocabulário reduzido e até um certo desprezo pelos livros, mas o que não tem em cultura sobra-lhe em autenticidade. O sovaco do PC tresanda a suor porque, seja lá o que for que ele faça, só ele sabe, ele luta, ele vive, ele sofre, ele sente. Só encostando o nariz ao sovaco do PC é que o bolhão sentirá o verdadeiro odor de Portugal vindo das entranhas da pátria.
Não sei como dizer isto, mas as “pessoas comuns” são iguais aos outros seres humanos. Os PC também vivem em bolhas e a maior parte deles conhece o país tão bem como Clara Ferreira Alves, uma pessoa sem nada de comum que acha que o “povinho” (sinónimo de “pessoas comuns”) não lê nada, quando nunca tantos portugueses leram livros. Muitos PC detestam os outros PC. Ser um PC não significa ser uma pessoa interessante, como o próprio Paulo Raimundo demonstra, e, na verdade, os PC não querem ser representados por políticos iguais a eles, mas sim por quem pareça ser uma versão mais firme e corajosa dos PC. Antigamente, um candidato que conversasse com um PC durante a campanha dizia-lhe (ou deveria dizer-lhe): “Desculpe, mas a sua opinião é estúpida e você não sabe do que está a falar”. Até que um dia surgiram criaturas a lisonjear os PC: “Claro, tem toda a razão, afinal o senhor é um português comum. Os políticos que dizem que está errado são uns bolhões do caraças. Vote em mim para darmos cabo deles”. Trata-se, obviamente, de mera bajulação lançada por quem gosta tanto de PC como os machistas gostam de mulheres. Depois de darem ao bajulador aquilo que ele quer, os PC devem permanecer quietinhos e obedientes enquanto ele faz as coisas mais repugnantes justificando-se com o bem deles.
Há cinco décadas, as “pessoas comuns” eram o “povo”, os “trabalhadores” ou a “classe operária”. Constituíam uma muralha de aço que, quando estava unida, jamais era vencida e todos queriam estar sempre, sempre, ao lado delas. Também existiam hipocrisia e bajulação nessa época, mas pelo menos o discurso oficial não olhava o “povo” de cima para baixo, através da perspetiva de indivíduos incomuns que vendem produtos de baixa qualidade porque supostamente é esse o desejo do público. Em vez de mero consumidor, o “povo” era um sujeito ativo que à força do seu braço transformava as fábricas e as terras que eram suas. Na verdade, a mensagem mobilizadora de um político da atualidade deveria ser: “Hoje somos portugueses comuns, mas nada nos impede de melhorarmos e um dia sermos portugueses extraordinários”.