"Utopia"
Para lá dos numerosos cartoons e pranchas publicados na imprensa portuguesa e estrangeira entre 1974 e 1976, o 25 de Abril e o período revolucionário a que deu início foram frequentemente contados na BD. No livro Imagens de uma Revolução: O 25 de Abril e a Banda Desenhada (Levoir/A Seita, 2022), João Miguel Lameiras, João Paulo Paiva Boléo e João Ramalho-Santos enumeram alguns trabalhos nessa área, como os álbuns O País dos Cágados, de Artur Correia e António Gomes de Almeida, Operação Óscar, de José Ruy, Salgueiro Maia, O Rosto da Liberdade, de António Martins, ou A 25, Sempre a Abril!, de Geral e Derradé. Em 1999, o 25.º aniversário da democracia levou ao aparecimento de conjuntos de histórias curtas, divulgadas no Público, no Diário de Notícias e na primeira edição de O 25 de Abril e a BD, onde autores de várias gerações apresentavam perspetivas diversas do golpe do MFA, já com o distanciamento e, por vezes, o ceticismo e desencanto produzidos pela passagem dos anos. O atual movimento editorial estimulado pelo cinquentenário da queda da ditadura inclui também uma nova proposta de difusão em BD da memória da Revolução. A novela gráfica Utopia (Bertrand, 2024), nascida da colaboração da historiadora e comentadora Raquel Varela (aqui a estrear-se como argumentista) e do sociólogo e desenhador brasileiro Robson Vilalba, apresenta em cerca de 170 páginas uma visão com uma forte carga política e emocional do final do Estado Novo e do processo revolucionário, enquadrada por uma introdução e um posfácio que sublinham a mensagem do livro: “sim, há alternativa” à competição e ao capitalismo.
Assumindo-se como “uma obra de ficção” (p. 7), mas inspirada em testemunhos reais de pessoas que viveram o período em causa, Utopia segue o percurso de José, um rapaz dos subúrbios a norte de Lisboa que se politiza, de forma autodidata e através do contacto com outros jovens, durante o consulado de Marcelo Caetano e, após a festa dos cravos, participa como ativista e soldado da Polícia Militar na mobilização revolucionária promovida pela extrema-esquerda em 1974-1975. Os eventos são retratados por Robson Vilalba num traço que, apesar do seu aspeto de esboço, se revela eficaz ao surgir aliado a uma utilização primorosa do preto e branco, particularmente expressiva em desenhos de página inteira dedicados a fenómenos como nuvens de tempestade (p. 42) e uma explosão (p. 62) ou a momentos como o cerco à Assembleia Constituinte (p. 155). A opção dos autores de evitar utilizar balões ou estabelecer diálogos, combinando as imagens, várias delas baseadas em fotografias, com a narração do protagonista, funciona bem ao ponto das raras exceções (nas páginas 63 e 139, por exemplo) destoarem do conjunto sem necessidade aparente.
Tal como qualquer memória do pós-25 de Abril, este romance gráfico apresenta uma narrativa parcial e incompleta, pelo que valoriza determinados eventos e ignora outros em função do olhar pessoal e ideológico de quem conta a história. A versão dos acontecimentos dos anos 70 aqui reproduzida é necessariamente idêntica à interpretação proposta por Raquel Varela nas suas obras historiográficas, com o formato da BD a reforçar a componente subjetiva. No entanto, talvez a pensar no público do Brasil, onde Utopia também já se encontra à venda, o discurso exagera por vezes na pedagogia. Explicar que a UDP se tratava de “uma ala maoista, muito ligada ao poder popular” (p. 141), ou que o MRPP era “um partido maoista implantado nos meios operários e estudantis” (p. 143) torna a narração demasiado artificial e palavrosa sem esclarecer muito. Na verdade, a parte ficcional da obra mostra-se bastante frágil. Gostaríamos de mais informação acerca da irmã mais nova de José, mencionada na página 21 mas que nunca vemos, ou de Ana, a namorada e “primeira mulher” do narrador que tão depressa surge (pp. 81-85) como desaparece sem deixar rasto até ao fim do livro. A sensação óbvia é a de que José não possui vida própria e o jovem de Camarate serve apenas de pretexto para evocar o tempo em que “O medo mudou de lado”. A parte mais interessante da novela, referente aos meses de serviço militar da personagem na PM, termina com uma análise do 25 de Novembro ilustrada por um jogo metafórico de xadrez (pp. 164-166). Trata-se de uma solução válida, mas porque José se encontrava de licença no dia em que se verificou um dramaticamente interessante tiroteio no quartel da PM do qual resultaram três mortos? Sobre as experiências do protagonista posteriores a 1975, não ficamos a saber nada. Para quê, se o “sonho lindo” já terminara?
Num estilo visual e narrativo inédito em obras de BD sobre o 25 de Abril, Utopia vem contribuir para a transmissão de imagens do quotidiano e da iconografia da Revolução, em especial junto de públicos menos aliciados pela leitura de memórias ou investigações académicas. O trabalho de Raquel Varela e Robson Vilalba provocará reações diferentes entre quem veja em “Não fazíamos nada do que nos mandavam” (p. 154) um sinal do caos e aqueles que encontrem nessa frase um vislumbre do paraíso. Lamenta-se apenas que a política e a historiografia não sejam acompanhadas nesta novela gráfica por uma capacidade de imaginação através da qual se aproximem leitores e personagens. Mais uma vez, o raquelismo-varelismo enquadra todos os acontecimentos do passado e do presente em planos tão amplos que os indivíduos se tornam invisíveis a olho nu.