As ideias: Obviamente que a Iniciativa Liberal (IL) não é de extrema-direita. O partido mantém-se fiel aos princípios de 1820 (neste caso, de 1826, se considerarmos a Iniciativa uma herdeira dos cartistas e opositora dos setembristas), como a liberdade de expressão, a igualdade perante a lei ou a separação dos poderes, todos eles irrelevantes para o Chega. Dito isto, a fundação e desenvolvimento da IL enquadram-se na tendência de radicalização da direita posterior a 2008, bem como na crescente disponibilidade dos eleitores para aderirem a novos partidos e propostas de rutura. A IL veio também representar o setor laico da direita portuguesa, sem a tradicional influência da Igreja Católica ou as pressões recentes dos evangélicos, o que explica as suas posições nas questões de “costumes”. Centrando-se no indivíduo e não na Pátria ou no “nós” das canções de intervenção, a IL apela a um tipo especial de sentimentos. Se o Chega rega a planta do ressentimento ao lisonjear quem se sente injustiçado pelas mais diversas razões, a Iniciativa é acima de tudo o partido da autoestima. Pessoas com algum sucesso, confiantes em si próprias e libertas de heranças católicas como remorsos, sentimentos de culpa ou preocupações com o coletivo encontram na IL uma baía segura onde atracar. O otimismo antropológico dos liberais (outra exceção dentro da direita) acredita na Cristina Ferreira que existe dentro de cada um dos portugueses.
O estilo: Há muitas semelhanças entre a Iniciativa Liberal e o Bloco de Esquerda dos primeiros anos, antes da entrada dos bloquistas na adolescência. Falamos de partidos de jovens urbanos politizados e geralmente qualificados, indiferentes a autoridades tradicionais como padres, polícias ou militares, beneficiários de simpatias nas redações e adeptos de uma propaganda original e irreverente, por vezes a roçar a infantilidade. Tal como aconteceu no Bloco, os cartazes da Iniciativa foram ficando a pouco e pouco mais previsíveis e convencionais e o discurso tornou-se mais redondo de modo a conquistar eleitores para lá do núcleo inicial. Mesmo assim, o pastiche da iconografia da esquerda feito pela IL adequa-se a uma retórica revolucionária sem paralelo noutros partidos. Ao quererem criar um Homem Novo, destruir o “socialismo” e implementar mudanças profundas num Portugal sempre na cepa torta (a IL adotou a perspetiva do seu historiador preferido, Vasco Pulido Valente), os liberais apresentam uma imagem renovadora atraente para os jovens, ligada a uma certeza na vitória final só comparável à dos comunistas dos anos 70. O problema do radicalismo liberal está na futura dificuldade em estabelecer compromissos com o PSD e seguir um rumo mais gradualista depois de proclamar soluções tão arrojadas e que supostamente resultam em todo o mundo.
O público-alvo: Miguel Esteves Cardoso chamou carinhosamente “Iniciativa Betinha” à IL, da qual não é eleitor mas onde encontra um partido representativo da sua classe. De facto, tal como o Sporting, a Iniciativa possui um código genético ligado à riqueza e ao fair-play dos gentlemen, mas, à semelhança dos “leões”, cresceu ao ponto de atrair hoje em dia adeptos de todas as camadas sociais. O sucesso eleitoral obtido pelos liberais nos bairros mais finos de Lisboa, Porto, Oeiras ou Cascais ajudou à consolidação da IL, permitindo-lhe dar alguns passeios fora da sua zona de conforto. No entanto, há setores do eleitorado que, com a sua visão materialista da vida, a IL instintivamente não acredita poder conquistar. Afinal, como é que reformados e funcionários públicos poderiam apoiar um partido ansioso para emagrecer o Estado? Por esse motivo, o discurso da Iniciativa para esses grupos soa sempre pouco convicto e quase inaudível. Entretanto, apesar do seu laicismo, o partido de Carlos Guimarães Pinto encara o crescimento do liberalismo como uma evangelização. Enquanto os seguidores do Chega são incentivados a não lerem nada além do Correio da Manhã e dos posts de André Ventura nas redes sociais, a IL acredita no poder dos livros e, sobretudo através do Instituto Mais Liberdade, procura difundir as obras que contêm a palavra da salvação, bem como promover a “literacia financeira” ao fazer os novos crentes aprenderem a língua necessária para comunicar com o divino, mantida viva nas faculdades de economia.
Os líderes: É necessário ter em conta o contexto de 2019, marcado pela formação de partidos totalmente centrados nos respetivos líderes (Chega, Aliança), para compreender a vontade desde então manifestada pela IL de se distinguir como um “partido de ideias” cujo presidente parece sempre algo desconfortável no cargo. O primeiro líder liberal, Miguel Ferreira da Silva, exerceu a presidência durante pouco tempo e foi o seu sucessor Carlos Guimarães Pinto quem levou a Iniciativa do quase nada até ao Parlamento, além de atribuir à organização a identidade que ainda mantém. Dotado de inteligência e sentido de humor, mas também de desprezo pelo lado mais pragmático da política, Carlos deu um passo à direita ao ceder o lugar a João Cotrim de Figueiredo, o primeiro deputado da IL, inevitavelmente ligado ao crescimento do partido nas legislativas de 2022. No entanto, Cotrim também celebrou a vitória abandonando a presidência, num ato acompanhado pelo apoio a Rui Rocha, que, após derrotar Carla Castro numa convenção que deixou feridas no partido, seguiu um estilo político mais “popular” (tradução: menos culto e inteligente). Na verdade, Rocha nunca deixou de parecer um homem que tinha chegado a líder partidário por escrever umas larachas no então Twitter, além de revelar uma habilidade digna de um Chicão nos contactos com a oposição interna. Nas legislativas de março de 2024, a IL sentiu o sabor estranho do empate familiar aos seus homólogos do BE, mas nas europeias de junho foi praticamente o único partido que obteve um resultado sem “mas” (o outro foi o PAN, esse por maus motivos). Na convenção a realizar pela Iniciativa em julho, o antigo candidato presidencial Tiago Mayan tentará tornar-se o quinto presidente do partido em seis anos. Ignora-se se Mayan conseguirá derrotar a influência de Cotrim, o Louçã liberal, mas o mais relevante será compreender se a IL já se afirmou de vez como uma marca dotada das caraterísticas atrás apontadas e procurada por consumidores fiéis ou ainda depende muito dos rostos e da música que apresenta nas suas campanhas publicitárias.
O Jogo de Salazar (Casa das Letras, 2009): Quando conheci Ricardo Serrado, no primeiro ano do mestrado em História Contemporânea da FCSH, ele já pensava em ligar a futura dissertação à sua paixão pelo futebol, por sugestão de António Matos Ferreira, um dos professores de Serrado durante a licenciatura deste na FLUL. De facto, Ricardo analisou o lugar-comum dos “três efes” e a suposta instrumentalização do futebol efetuada pelo Estado Novo, concluindo que ela tivera mais de mito que de realidade. Afinal, não existira qualquer estratégia planeada pela ditadura para estimular o futebol profissional ou capitalizar os êxitos internacionais das equipas portuguesas. Com a sua expansão e popularidade, o futebol impusera-se ao regime de Salazar e até representara um contrapoder notável em momentos como a crise académica de 1969. Trata-se de uma teoria evidentemente discutível, mas defendida com rigor e habilidade por Serrado na tese editada em livro em finais de 2009. Os argumentos de então foram retomados pelo autor numa entrevista para o recente documentário da RTP Salazar Não Ia à Bola.
História do Futebol Português. Uma análise social e cultural (Prime Books, 2010; 2.ª edição, 2014): Era difícil imaginar no momento em que Ricardo Serrado me convidou, sabe-se lá porquê, para trabalhar com ele no projeto de uma história dos mais de 100 anos de vida do futebol em Portugal que cerca de dois anos depois estaríamos na Covilhã (onde a seleção nacional estagiava para o Mundial de 2010), rodeados de vuvuzelas, a lançar uma obra em boa parte concebida numa cave repleta de livros, revistas e fotocópias. Nada teria sido possível sem o entusiasmo, a capacidade de trabalho e o conhecimento do futebol de Serrado, que, ainda insatisfeito com o resultado final, reorganizou a estrutura da História do Futebol Português de modo a incluir uma nova edição dos dois volumes, em versão revista e atualizada, nas comemorações do centenário da FPF. É uma síntese necessariamente incompleta, mas gosto de pensar que foi útil aos autores da vasta bibliografia sobre o futebol português surgida nos anos seguintes.
Cosme Damião: O homem que sonhou o Benfica (Zebra, 2010): A convite do então editor Rui Pedro Braz e recorrendo a fontes como o ainda pouco explorado acervo da Biblioteca-Museu Luz Soriano, Ricardo contou a vida de Cosme Damião, a alma dos primeiros anos do Sport Lisboa e Benfica, emblema no qual o casapiano constituiu uma figura equivalente às de José Alvalade (Sporting) e José Monteiro da Costa (FC Porto). Em Portugal, as biografias de personalidades do futebol eram até aí sobretudo trabalhos de adeptos ou jornalistas, mas Ricardo Serrado conferiu um tratamento historiográfico ao percurso de Cosme Damião, abrindo um precedente para estudos posteriores, além de abordar pela primeira vez aquilo que Serrado designou por “código genético” dos três “grandes”, ou seja, determinadas características presentes em FCP, SCP e SLB desde as respetivas origens.
Futebol: A Magia para Além do Jogo (Zebra, 2011): Naquele que é talvez o mais autobiográfico dos seus livros, Ricardo Serrado analisou figuras do Olimpo do futebol como Pelé, Messi, Zidane, Maradona ou Roberto Baggio (desenhados por Pedro Pereira), uma lista elaborada a partir das obras de arte que esses atletas produziram nos relvados. Não se trata exatamente de textos biográficos, mas de breves ensaios sobre “génios” com estilos únicos cujo virtuosismo e criatividade os distinguiram da tendência para a uniformização identificada por Ricardo no futebol globalizado e transformado em produto do capitalismo. Para lá da enumeração dos factos, o historiador revelava já uma sensibilidade invulgar para a beleza e uma constante atenção a outras formas de compreender o fenómeno desportivo.
O Estado Novo e o Futebol (Prime Books, 2012): Uma nova versão de O Jogo de Salazar, enriquecida com imagens e informação apresentada para desmentir a ideia de que o Benfica foi o “clube do regime” sob a ditadura.
Mitos do Futebol Português (Plátano, 2015): Como é sabido, Ricardo Serrado integrou a equipa que concebeu o Museu Cosme Damião, antes de sair do Benfica em conflito com a direção de Luís Filipe Vieira, avessa à publicação de alterações à versão oficial da génese do clube. Neste livro, que promete na capa “toda a verdade sobre as origens do Benfica, do FC Porto e do Sporting”, Serrado partilhou as suas descobertas e interpretações acerca dos eventos da primeira década do século XX, beneficiando da colaboração de João Cardoso. Também dei um pequeno contributo para o estudo ao descrever a velha “polémica 1893/1906” em torno da fundação do FCP. O nosso esforço valeu a pena pela intenção, mas os mitos, além de serem o nada que é tudo, também são grandalhões e difíceis de derrubar. Já em 2016, Ricardo orientou uma remodelação do museu do Sporting que, na prática, significou criar em Alvalade um museu novo, mais moderno e atrativo para o visitante.
Lionel Messi: O futebolista que joga no futuro (Edições Vieira da Silva, 2015; 2.ª edição, 2024): A capa e o título deste volume podem induzir em erro pessoas que o considerem apenas mais uma biografia do craque argentino. Na verdade, Messi é o caso particular apresentado já quase no final do livro para demonstrar a teoria do autor, que se apoia nos trabalhos de António Damásio e outros cientistas ao abordar questões como a relação entre corpo e mente, o debate Natureza/meio ou a consciência e o livre-arbítrio. Ao longo do caminho, Ricardo Serrado explica porque não é cristão nem marxista e guia o leitor até às caraterísticas especiais de Messi numa escrita depurada e cativante. Uma edição aperfeiçoada do melhor livro de Serrado (traduzido para castelhano) será lançada em 9 de junho na Feira do Livro de Lisboa.
O problema corpo-mente no Portugal Contemporâneo: para uma epistemologia do desporto (1870-1910) (tese de doutoramento, 2021): De regresso à vida académica, Serrado delineou objetivos ambiciosos para o seu projeto de doutoramento. Para explicar o sucesso mundial do desporto moderno, o historiador começaria por enquadrar o aparecimento deste no contexto ideológico de finais do século XIX, marcado pela revalorização do corpo e pela obsessão com a decadência da “raça”, tendo em conta os estudos de neurociência de autores da época como Júlio de Matos e Miguel Bombarda. Em seguida, criticaria a “busca da excitação” definida por Norbert Elias, uma visão do desporto sobretudo na ótica do espetador, e argumentaria a favor do desporto como homeostasia sociocultural. Para o antigo futebolista e treinador de futsal amador Ricardo Serrado, praticar desporto é uma forma elaborada de assegurar a sobrevivência e expressar a criatividade do ser humano, um homo athleta. Se bem pensou, melhor o fez. Ao defender a tese em provas públicas realizadas por Zoom, Ricardo concluiu com sucesso o seu primeiro doutoramento e carimbou um marco dos estudos sobre o desporto (e não só) em Portugal.
A Pessoa Altamente Sensível (Plátano, 2023): Depois de descobrir, já durante a pandemia, que as caraterísticas psicológicas que lhe permitiram escrever os títulos anteriores se deviam ao facto de ser uma Pessoa Altamente Sensível (PAS), Ricardo mergulhou na leitura da bibliografia sobre o tema. Os dados científicos revelados em centenas de estudos disponíveis online foram sintetizados por Serrado num valioso livro de divulgação. Embora por vezes um pouco árido para quem não esteja familiarizado com os conceitos da neurociência, A Pessoa Altamente Sensível demonstra às “orquídeas” que não há nada de errado com elas e, ao sentirem tudo mais intensamente do que a maioria dos indivíduos, obtêm importantes vantagens caso vivam em ambientes estimulantes. Arrumada por várias livrarias na estante da autoajuda, a obra constitui, como assinalou o ator Heitor Lourenço, uma manifestação de crença na ciência e nas possibilidades desta de compreender melhor o ser humano.