Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Desumidificador

Desumidificador

Fim-de-semana com o Mourão

Podia Ter Esperado por Agosto, uma comédia filmada durante o Inverno passado no Soajo (Arcos de Valdevez) e que já se encontra nos cinemas da Nos, com disponibilização futura na plataforma de streaming da SIC, ficará na memória do povo português simplesmente como O Filme do César Mourão. De facto, o humorista escreveu, produziu, realizou e protagonizou uma longa-metragem na qual o seu personagem, morador numa aldeia minhota, sofre com a ausência em Lisboa da amada (Júlia Palha) à qual nunca se declarou. No entanto, o seu melhor amigo (Kevin Dias), especialista em ideias malucas, engendra um plano para trazer a lisboeta ao Norte meses antes das habituais férias de Verão, com consequências imprevisíveis. Bem, imprevisíveis é como quem diz, porque o filme, sem pretender inventar a roda, recorre às convenções das comédias românticas, como o rapaz que faz por amor uma grande asneira, deixando furiosa uma rapariga pela qual é mais tarde perdoado (a ordem dos géneros é sempre esta), ou os amigos dos protagonistas que também se tornam um casal, só porque sim.

Fascinado pelo Soajo, César Mourão terá escolhido o cenário do filme antes de delinear em pormenor a história, e isso nota-se através das sucessivas imagens captadas por drone que mostram a aldeia e incentivam o turismo sem particular utilidade para a narrativa. O ambiente rural propicia o aparecimento de bonecos bem conseguidos, como a bisbilhoteira de Carla Vasconcelos, o alcoólico de Pedro Lacerda ou o agente funerário de Dinarte Branco. No entanto, o tom da obra, entre absurdo, romance e reflexões forçadas sobre a família, nunca parece ser o adequado. Tal como o “jovem” que interpreta, Mourão não sabe bem o que fazer depois de Palha ser atraída à velha povoação e o filme revela dificuldades em avançar rumo ao desenlace. E quando chega o final, não sabemos exatamente se aquilo que vemos é criativo ou apenas tolo e preguiçoso.

 

 

Involuntariamente, Podia Ter Esperado por Agosto faz lembrar o inesperado êxito de 1989 Fim-de-Semana com o Morto. Para lá do humor negro e da concentração do essencial da história em poucos dias, ambos os filmes possuem premissas tão irrealistas e disparatadas que se tornam interessantes, mas depois mostram-se demasiado longos para as possibilidades das suas ideias e apresentam um balanço final insatisfatório. Neste caso, é injusto dizer que César Mourão fez o filme às três pancadas, como afirma Luís Miguel Oliveira numa crítica bastante ácida, mas, entre a parvoíce dos adolescentes tardios e a respeitabilidade da família e do matrimónio, a sua estreia como realizador de cinema fica sempre a meio caminho. Uma referência/homenagem do filme ao sketch dos caixões Vilaças (“que são caros como o caraças”), criado por Herman José em Hermanias, realça que o espetador ri muito mais com os escassos minutos dessa rábula que durante as quase duas horas da fita de Mourão.

 

Moral da história: Visite o Minho e evite ir a cemitérios.

Nota: 4/10.

 

P.S. Raquel Costa (A Gaja) considera pouco credível o par romântico formado por César Mourão e Júlia Palha, tendo em conta que ele é 20 anos mais velho do que ela na vida real. Talvez, mas a persona cómica de Mourão não é a de um quarentão que se comporta como um puto? De qualquer maneira, a diferença de idades obtém maior aceitação social se o elemento mais idoso do casal for do sexo masculino. Uma mulher de 45 anos ligada a um rapaz de 25, fazendo lembrar os Macron, seria considerada verdadeiramente bizarra.

Política nas paredes

(Para a avó Clotilde)

 

Quando eu era miúdo, as ruas de localidades como Odivelas, Pontinha e Olival Basto constituíam autênticos museus ao ar livre. Graffitis do tempo da Revolução e dos primeiros governos constitucionais eram legíveis em numerosas paredes, sem grande qualidade gráfica (não se fala aqui exatamente de arte urbana) mas com mensagens veementes a favor ou contra partidos e personalidades dessa fase histórica. Os “viva”, “vota” e “rua” chamavam a atenção porque já pertenciam a outra época, dando a entender que o hábito de fazer pichagens políticas estagnara por volta de 1985, como se uma ordem de Cavaco Silva tivesse reservado o espaço urbano para tags, desenhos obscenos e declarações de amor. Na década de 90, a própria ideia de alguém se interessar pela política ao ponto de escrever numa parede a sua opinião parecia absurda. Entretanto, a propaganda das campanhas eleitorais sofria alterações como o progressivo desaparecimento dos autocolantes e dos pequenos cartazes afixados em postes ou paredes, utilizados apenas pelos partidos com menos recursos, até porque uma maior consciência ecológica reforçara a preocupação com a limpeza das ruas. A comunicação política passou a centrar-se em outdoors removíveis colocados em pontos estratégicos, sobretudo nas agora numerosas rotundas. No século XXI, a expansão das redes sociais pareceu transformar a Internet na arena por excelência do combate entre diferentes projetos ideológicos, restringindo as mensagens partidárias aos ecrãs de telemóveis e computadores. Definitivamente, a política já não estava na rua.

No entanto, uma inversão de tendência tem sido detetada pelos levantamentos feitos por entidades como o Ephemera. Num modelo semelhante ao de um serviço de informações, este organismo possui um líder cujo rosto representa a corporação nos media, um grupo de operacionais vindos a público, de forma discreta, para montar exposições ou recolher documentação e uma rede de informadores ligados às chefias por meios digitais e que constituem os olhos e ouvidos de José Pacheco Pereira em todo o país. As fotografias enviadas pelos agentes do Ephemera, das quais apenas uma pequena parte é publicada online, mostram o retorno às ruas dos meios tradicionais de propaganda política ocorrido ao longo dos anos 20. Abundantes pichagens, sejam pinturas murais ou simples rabiscos feitos a caneta ou marcador, reproduzem-se nas paredes das cidades, juntamente com faixas, stencils, bandeiras, autocolantes, cartazes em papel ou cartão, etc. Ao contrário do que acontecia na minha infância, quando os vários suportes aguardavam durante anos o desgaste natural trazido pelos elementos, estes materiais são realmente efémeros, com a sua rápida desaparição a ser imposta pela limpeza autárquica, pelo aparecimento de outros conteúdos ou pela renovação das mensagens trazida por eleições e pelas reviravoltas da atualidade. De resto, para lá da política, a publicidade de pequena escala a diferentes produtos e serviços também regressou aos espaços urbanos, pelo que a concorrência alastra e as paredes não permanecem nuas por muito tempo.

 

Paredes188.JPG

Vários fatores podem ser associados a esta repolitização das áreas de utilização coletiva. Em primeiro lugar, o PCP e o Bloco de Esquerda tornaram-se dois dos partidos com menos recursos, condição que estimulou essas organizações a dar uma nova atenção a meios baratos como folhetos, graffitis e mini-cartazes. Desenvolveram-se também novas formas de ativismo não necessariamente ligadas aos partidos e cuja expressão ocorre muitas vezes através de mensagens anónimas nas ruas. Ao mesmo tempo, as redes sociais revelaram as suas limitações ao contribuírem para a multiplicação de bolhas onde os conteúdos políticos se repetem em círculo fechado para audiências restritas, enquanto a lógica dos reality-shows ganha um relevo digital cada vez maior em detrimento dos comentários sobre as últimas notícias. Nesse sentido, afixar ou escrever mensagens em locais de grande afluência, nomeadamente os pontos de partida e chegada dos transportes públicos, representa um esforço para chegar a pessoas inatingíveis de outra forma com o objetivo de divulgar manifestações e outras iniciativas fomentadas pela agitação social dos últimos anos. Verificam-se ainda influências do futebol, quer no ambiente de revalorização dos autocolantes promovido pelas claques (a diversidade dos materiais deste tipo produzidos por adeptos é impressionante) quer pela tradição de colocar bandeiras nas varandas, aproveitada por alguns cidadãos para manifestar a sua solidariedade com países como Israel, Ucrânia ou Palestina. Pode ainda referir-se o mero desejo de marcação de território e ocupação simbólica do espaço público, visível nos milhares de cartazes contra os “tachos” e a corrupção espalhados pelo Chega à margem do calendário eleitoral.

 

Paredes280.JPG

Permanece por esclarecer se este fenómeno em que a política esquece o conforto do lar e reclama novamente as ruas perdurará nos próximos anos. Como tudo o resto, dependerá das circunstâncias. O desanuviamento do ambiente nacional e internacional, acompanhado pela despolarização do discurso político, contribuiria para uma privatização dos sentimentos dos portugueses idêntica à ocorrida durante o cavaquismo. As autarquias e outras entidades públicas poderiam também tentar disciplinar a transmissão das opiniões da população no espaço comunitário através da criação de áreas específicas para tal, reservadas a cartazes ou pichagens, à semelhança do que tem acontecido com a arte urbana. No entanto, a lógica de expressão individual ou de divulgação do pensamento de pequenos grupos que se encontra ligada à tendência atual, em contraste com o predomínio das orientações dos partidos durante os anos 70 e 80, atribui-lhe uma espontaneidade dificilmente compatível com esse tipo de resposta. Enquanto o futuro não se clarifica, importa registar e valorizar a presença de temas políticos (ou sociais, religiosos, desportivos...) nos prédios e no mobiliário urbano, observando-a não como vandalismo mas antes como um sinal de vitalidade do espaço público e uma quebra na monotonia de cidades onde a construção se tornou asséptica e indiferenciada.

 

Paredes228.JPG