Destruir depois de ouvir
O programa da Rádio Observador E o Resto É História, disponível em podcast nos meios do jornal digital, tem sido desde 2019 um formato importante na divulgação do conhecimento historiográfico. Os autores do espaço, o historiador Rui Ramos e o jornalista João Miguel Tavares, procuram transmitir uma perspetiva viva, aliciante e polémica do passado, abordando numa linguagem acessível temas geográfica e cronologicamente variados, embora a especialização de Ramos conduza a um maior destaque conferido à Europa e ao período contemporâneo. Entre os inúmeros eventos da história portuguesa referidos no programa, o 25 de Abril, tal como os seus antecedentes e consequências, constitui um alvo privilegiado da atenção da dupla radiofónica. Ao longo dos anos, houve momentos nos quais Ramos afirmou que não existem provas do envolvimento do PCP no “caso República”, mas toda a gente sabe que foram os comunistas, ou onde o biógrafo de D. Carlos conseguiu tornar o 25 de Novembro ainda mais confuso do que realmente foi. Para lá dos estímulos da atualidade, as efemérides são a origem habitual da seleção dos temas históricos recordados no estúdio da Rádio Observador, pelo que o cinquentenário da Revolução dos Cravos já influenciou vários dos episódios de E o Resto É História emitidos em 2024. Depois de programas sobre o discurso de 27 de julho de 1974 no qual o então Presidente da República António de Spínola reconheceu o direito à autodeterminação das colónias portuguesas e acerca da revolta ocorrida em 7 de setembro desse ano na cidade de Lourenço Marques, o episódio emitido no passado dia 25 de setembro focou as razões da demissão de Spínola após poucos meses na chefia do Estado.
O vocabulário utilizado por Rui Ramos no relato dos acontecimentos de 1974 não é neutro e assético, como de resto não seria o discurso de qualquer historiador. Por exemplo, Ramos evita ao máximo pronunciar a palavra “colónias” e o conflito de 1961-1974 é referido simplesmente como “a guerra”, na qual os adversários das Forças Armadas portuguesas eram “movimentos marxistas” ou “partidos independentistas armados”. Tal como foi feita, a descolonização teria sido uma “entrega” dos territórios ultramarinos a essas organizações pró-soviéticas, realizada pela “clique” dos membros do MFA, ou seja, a “esquerda militar”. Uma vez definido o léxico, Ramos apresenta uma história muito consistente dos eventos de Agosto e Setembro de 1974 perante um espantado João Miguel Tavares. Enumeremos apenas alguns dos factos e interpretações apontados pelo autor do sexto volume da História de Portugal dirigida pelo seu mestre José Mattoso.
Assim, António de Spínola era contra os desvios da promessa de democracia feita aos portugueses que estavam a ser cometidos pelo II Governo Provisório (como a criação do salário mínimo), pelo que propôs o adiamento da eleição da Assembleia Constituinte e a escrita à pressa de uma Constituição provisória sujeita a referendo. Poderosos empresários apoiavam Spínola, pelo simples motivo de que frequentavam os mesmos meios e partilhavam o sonho de uma “sociedade democrática ocidental”. PPD e CDS demarcaram-se do general devido a algumas dúvidas sobre o projeto presidencialista de Spínola, que buscou então a ajuda de entidades “fora do Governo”, como o Partido Liberal e o Partido do Progresso, para promover uma manifestação pacífica a seu favor. Os oficiais do MFA eram um “grupo relativamente pequeno” comparado com o dos spinolistas, formado por “muita gente” que via o Presidente como “o pai deles”, apesar de Spínola não controlar uma única unidade da Região Militar de Lisboa no 28 de Setembro. Durante esse dia, barricadas erguidas nas entradas de Lisboa devido à “paranoia” do PCP e da “esquerda militar” impediram a manifestação da “maioria silenciosa” (preparada aliás de forma “bastante profissional”), ocorreram em Belém umas reuniões com gente nervosa, yada, yada, yada, e Spínola demitiu-se. Poderia, no entanto, ter continuado na presidência se assim o desejasse, mas anteviu sabiamente o rápido desgaste político dos seus adversários. O homem do monóculo quisera apenas uma manifestação demonstrativa do seu prestígio de “chefe popular”, embora tivesse preparado um discurso justificativo da eventual declaração do estado de sítio. Havia nessa época muitas pessoas nas ruas de Lisboa, metidas lá pelo PCP, enquanto no país anti-comunista tudo era espontâneo. Pelo meio, o relevante grupo de socialistas próximos do PCP foi derrotado no primeiro congresso do PS porque não dispunha de uma força interna semelhante à da fação comunista do PPD. O partido de Álvaro Cunhal não era “distraído” ao ponto de achar que teria muitos votos nas futuras eleições, mas avançou no “endoutrinamento” dos militares para instaurar um “regime de intimidação” e fazer os portugueses “pensarem duas vezes” antes de falar. Misteriosamente, isso não impediria as manifestações do Verão de 1975, quando se verificou uma revolta contra a “esquerda militar” na qual participou Melo Antunes, um dos protagonistas da “esquerda militar” no Verão de 1974. Entretanto, Spínola, que apesar de ser um conservador tinha ideias “muito parecidas com as do Partido Socialista”, mantinha a iniciativa política, com a esquerda “sempre em reação” aos passos do general, cujo único erro fora não acreditar que o “totalitarismo” para o qual alertara se podia realmente concretizar. As derrotas sofridas pelo De Gaulle português em 1974 não o impediriam de somar novas derrotas em 1975.
A narrativa de Rui Ramos é bastante cinematográfica, fazendo lembrar um filme dos irmãos Coen, Destruir Depois de Ler. De facto, trata-se de uma História onde toda a gente é idiota. Isto já não é “outra opinião”, mas sim desinformação. Uma desonestidade intelectual tão pueril e descarada, através da qual são omitidos ou deturpados quaisquer factos que ponham em causa a verdade indiscutível de que os comunas malvados foram responsáveis por tudo, exige uma intervenção enérgica por parte da administração do Observador… da qual Rui Ramos é membro. Pois, é verdade. De qualquer maneira, nos tempos que correm, nenhum historiador de esquerda, centro ou direita “fofinha” vai gastar tempo a ouvir o programa de Ramos e Tavares, em mais um exemplo da crescente fragmentação da nossa sociedade. Repare-se que a Revolução, evento plural por natureza, durante o qual o caos para uns foi o paraíso para outros, originou memórias muito diferentes e, obviamente, análises historiográficas com perspetivas diversas. Existia, contudo, um espaço comum onde essas visões opostas podiam cruzar-se e contradizer-se, através de polémicas propícias a um melhor conhecimento da complexidade do período revolucionário. Atualmente, corremos o risco de não só a memória, mas também a historiografia do 25 de Abril ficar presa em bolhas nas quais se produzem versões simplistas que não coincidem entre si nem nos factos mais básicos. Ao contrário do que ingenuamente se acreditava, o distanciamento temporal não traz avaliações mais serenas e informadas dos eventos do passado, mas sim a possibilidade de adaptar as diferentes narrativas aos interesses políticos do presente e remeter elementos dissonantes para as profundezas do esquecimento. Claro que ninguém pretende limitar a liberdade de Rui Ramos ou qualquer outro investigador para dizer o que lhe apeteça. Não comecem já a formar a fila para mártires. O problema está na escassez de debate, contraditório e diversidade de pontos de vista, sem os quais os discursos mais absurdos tornam-se verosímeis por interessarem à nossa tribo.
P.S. Importa esclarecer que, ao nível da historiografia, Rui Ramos joga na Champions enquanto eu me mantenho nos distritais (que até têm o seu interesse). É sempre constrangedor, no entanto, quando os nossos heróis da juventude se transformam em caricaturas de si próprios.