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Maços de títulos

Títulos para podcasts:

 

Antes de Mais, Boa Noite

Café sem Princípio

Calados Somos Poetas

Depois Disto Vou ao Cinema

Elites Mal Pensantes

Falso Nove

Os Lixos de Lisboa

Para a Semana Vem Cá a Rita Pereira

Os U2 Não Prestam

Saúde É que É Preciso

 

Rita Pereira - Após anunciar gravidez, é afastada da nova novela da TVI:  "Tinha umas implicações…" | Nova Gente

(Fonte da imagem: Nova Gente)

 

Títulos para canções:

 

Balada do Bloco de Esquerda

Os Dias Não São Meus

Elefante na Casa de Banho

Fado da Perceção

Falta-me o Rio

O Homem que Vendia Queijos de Nisa

Isso Não É do Sérgio

Já Esteve Mais Quente

Notas na Estante

Rock da Sala de Espera

 

 

Títulos para romances:

 

Amei o Teu Ódio em Évora

Camarada Falcão

Um Católico Impiedoso

Dei-te o Meu Coração, Disseste que Estava Insosso

Deus Existe, Mas Só no Intendente

Frieiras em Agosto

A Huna do Arco do Cego

O Punhal do Economista

O Segredo do Complexo Petroquímico

Sexo no Congresso do PSD

 

 

Títulos para thrillers com personagens da Disney:

 

Um Cadáver na Quinta da Vovó Donalda

Clarabela Fumou Antes de Morrer

O Corpo do Pato Donald

Gastão e a Ferradura Mortífera

A Herança do Tio Patinhas

Mickey: Os Ratos Não se Afogam no Álcool

Pateta, Assassino a Soldo

Peninha: Um Gorro Vermelho da Cor do Sangue

O Presidente Metralha

A Vingança dos Filhos de Bafo

 

2024

Há fumadores a mais neste país. Não fotografei as suásticas. João Félix a bater no poste. Toda a gente fica impressionada com o poder da minha irmã. Adeus, tio. Havia um ambiente de alegria contagiosa na Avenida da Liberdade. Comi um hambúrguer com cebola caramelizada. O router teve de ser substituído. Não sabia que José Mário Branco viveu ao lado da Calçada de Carriche. Repitam comigo: isto é tudo normal. As coisas pioraram quando o café passou a fechar mais cedo. Para Clara Ferreira Alves, tudo o que acontece fora de Lisboa é uma anedota. Sim, o ator foi bem escolhido, mas aquilo é absurdo. “O Porto é nosso e há-de ser”. Não assinei nenhum contrato. Afinal, Henrique Raposo ficou preso em 2008. Até o horror se banaliza. Ninguém recordará as negociações do Orçamento. O programa de Filomena Cautela, um penoso falhanço. À procura de agulhas no palheiro. Desta vez, não foi propriamente uma surpresa. Depois de anos complicados, o país só quer que o deixem em paz. Acabou, conseguimos, correu tudo bem. Sou repórter ou manifestante? Discordo: só com aquele final é que o Auto da Barca da Glória faz sentido. Da próxima vez, acho melhor aproveitarmos a boleia. O Verão dos nazis. Um dia tenho de ir ao banco. É bom saber que ainda há pessoas, como o chef Ljubomir Stanisic, que são exatamente aquilo que parecem. Como entrar na casa da malta do Portimonense? O meu cunhado devia falar daquilo num podcast. O medo, o alívio, a bazófia, a revolta. Fausto e Marco Paulo, exatos opostos (ou talvez não). Os meus problemas com o comando da televisão ainda não acabaram. Concretizei o meu sonho. “Se eu não mato a saudade, é ela que me mata a mim”. As decorações de Halloween na Murtosa. Adeus, tia. Sofia Afonso Ferreira aos berros de entusiasmo em cima do míssil que vai destruir Teerão. Quem são estes miúdos? Nunca tinha conhecido ninguém igual à prima Florinda. As audiências continuam baixas. Mulheres que detestam mulheres, negros que não gostam de negros, talvez até gays que odeiam gays. O meu poder é tornar-me invisível. Foi uma honra conhecer-vos. É a primeira vez que entro aqui e não vejo o homem barbudo. Porque é que o Porto é a única cidade portuguesa com uma personalidade coletiva? Cobrir a cabeça, esperar que acabe, ouvir os vizinhos que também acordaram, voltar a dormir. Se formarmos a ABCCO, teremos todos mais publicidade. Vi na televisão o fogo a aproximar-se da Casa Turco. Arquivar não sei para quem. Com o nome completo e a data de nascimento, saberemos a freguesia onde a cidadã está recenseada. Quantos descendentes dos irmãos Agria existirão por aí?

E ainda não chegou o momento de deixar de escrever à mão.

 

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Origens do futebol em Odivelas

De acordo com a documentação conhecida, o primeiro desafio de futebol organizado (ou seja, disputado de acordo com as regras oficiais da modalidade e sob a vigilância de um árbitro) que se registou no território do atual município de Odivelas ocorreu em 12 de junho de 1922 e assinalou a inauguração do campo de jogos da Escola Agrícola da Paiã, fundada cinco anos antes. Decorria então em Lisboa o Congresso Nacional Municipalista, com delegados oriundos de numerosos concelhos do país e cujos trabalhos foram encerrados com uma visita dos congressistas ao estabelecimento de ensino profissional localizado na futura freguesia da Pontinha. Nesse dia, o então chefe do Governo, António Maria da Silva, deu o pontapé de saída, fotografado para a posteridade (O Século, 13-06-1922), da partida entre as equipas dos alunos da Escola Agrícola e da Casa Pia de Lisboa, com os experientes “gansos”, que apresentaram provavelmente António Roquete na baliza, a vencerem os “charruas”. Estes formaram nesse ano o Paiã Sport Clube e disputaram o campeonato escolar da AFL, onde obtiveram resultados geralmente modestos. Nas décadas seguintes, a Escola Agrícola aproveitaria as suas instalações desportivas, de qualidade rara na região, para formar equipas de várias modalidades.

Em 2 de junho de 1924, numa localidade que atraía então numerosos veraneantes lisboetas, foi fundado o Clube Sportivo de Caneças, cuja fusão em 1973 com a Sociedade Musical da mesma vila daria origem à atual Sociedade Musical e Desportiva de Caneças. A dedicação do capitão do Sportivo, Armando Mateus dos Santos, favoreceu a atividade do clube, que disputou em 1925 16 jogos de futebol contra 12 adversários diferentes (o CSC obteve então 5 vitórias, 6 empates e 5 derrotas) e realizou em janeiro de 1926 a sua primeira assembleia-geral ordinária, na qual foram eleitos os corpos gerentes, com Joaquim Diniz Morgado a presidir à direção (O Sport de Lisboa, 27-01-1926). Através do esforço dos seus sócios, o CSC ergueu o Campo da Lapa, um terreno pelado inaugurado em setembro de 1927 pelo qual passariam sucessivas gerações de futebolistas ao serviço de um emblema que se tornou presença habitual nos torneios particulares organizados por clubes do município de Loures. O CSC estava igualmente envolvido em modalidades como o ciclismo e o atletismo, tendo o corredor canecense Evaristo Bento obtido o título de campeão concelhio da légua em 1927 e 1930. Escasseiam, contudo, as informações sobre a atividade desportiva surgida nesta época nas localidades próximas de Caneças.

 

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(Equipa de futebol do CS Caneças, por volta da década de 1920. Fonte da imagem: António Serra)

 

Nas décadas de 20 e 30 do século XX, a povoação de Odivelas era conhecida sobretudo pela qualidade da sua pastelaria e pelo estabelecimento de ensino destinado às filhas de militares, designado oficialmente a partir de 1911 por Instituto Feminino de Educação e Trabalho e onde a prática desportiva, valorizada no quadro da formação das jovens, centrava-se na ginástica e no ensino da natação. Fora do antigo mosteiro, o desporto não possuía, aparentemente, uma dinâmica regular em Odivelas, onde existiam já desde o século anterior duas associações, os Bombeiros Voluntários locais e a Sociedade Musical Odivelense (SMO). Entre 1928 e 1929, a Sociedade utilizava para ensaios da banda e armazenamento de instrumentos uma sala cedida por uma coletividade referida nas atas da direção da SMO como “Odivelas Club Os Passarinheiros” ou “Clube dos Passarinhos”, dotada de instalações suficientemente amplas para acolherem espetáculos de teatro e cinema (Moroso, Fernanda, Sociedade Musical Odivelense, 160 Anos (1863-2023), Odivelas, Câmara Municipal de Odivelas, 2023, pp. 30-32 e 89-90). Ignora-se por enquanto se “Os Passarinheiros” desenvolviam atividades desportivas, além de fornecerem o espaço usado para representações pelo grupo de teatro da SMO. Uma das atrizes deste, a enfermeira Maria Gomes da Silva Santos, casou em dezembro de 1927 com Marcelino Francisco dos Santos, um homem então com 22 anos que viria a ser presidente da SMO e da Junta de Freguesia odivelense.

Marcelino dos Santos é uma das 23 pessoas referidas num texto escrito em Abril de 1930 pelo correspondente em Odivelas do diário O Século e que vale a pena transcrever na íntegra: “Para disputa de uma taça, realiza-se amanhã (domingo), um encontro de “football” entre jogadores solteiros e casados de Odivelas. No encontro, que começa às 15 horas e se efectua no campo do Olival Basto, tomam parte os seguintes jogadores: Raul dos Santos, Bernardino Pedro, Manuel Gonçalves, Joaquim, Abílio Varela, Marcelino Santos, António Santos, Jaime Neves, António Pereira, Henrique Dias, Manuel Oliveira, José de Freitas, Justiniano Marques, Diogo Gomes, José Simões, João David, João Ferreira, João Francisco, Ernesto Barroso, Manuel Cardoso, Rodrigo Barroso, Dario Baptista e Jaime Luz” (O Século, 12-04-1930). Os casados ergueriam a taça ao vencerem com justiça por 2-1 uma partida na qual os solteiros se preocuparam sobretudo em defender. Além da presença de Marcelino dos Santos no conjunto dos casados, sabe-se que José de Freitas foi o guarda-redes dos celibatários. Apesar do carácter informal do desafio de 13 de abril, este atraiu ao Olival Basto um público numeroso no qual se incluíam pessoas “de categoria” como Bernardo da Costa Mesquitela, um oficial monárquico que desempenhava as funções de comandante-geral da Armada. Depois do jogo, os futebolistas conviveram num jantar onde um dos brindes, dirigido a O Século, ficou a cargo de João Francisco (O Século, 15-04-1930). Natural de Póvoa da Galega mas residente em Odivelas, Francisco era então um dos ciclistas mais famosos do país, dono de uma popularidade merecedora do interesse da imprensa e do orgulho dos seus conterrâneos, que lhe prestariam uma sessão de homenagem em dezembro de 1931. O grupo que disputou o jogo do Olival Basto incluía, além de Marcelino dos Santos e João Francisco, outras personalidades que, segundo os registos paroquiais de Odivelas (conservados no Arquivo Nacional da Torre do Tombo), se encontravam em abril de 1930 na casa dos vinte, como Ernesto Barroso (22 anos), Jaime Luz (22) ou José de Freitas (23).

Os dois breves artigos de O Século que noticiaram um supostamente banal desafio de futebol entre equipas de casados e solteiros de uma povoação rural dos arredores de Lisboa levantam inúmeras questões. Parece óbvio que o encontro foi o ponto de partida da primeira coletividade designada por Odivelas Futebol Clube (ou Odivelas Football Club, como era referido na imprensa da época), até porque vários dos participantes integraram as comissões técnica e administrativa nomeadas em fevereiro de 1932 para tentar fazer o emblema sair do marasmo em que já tinha caído (Os Sports, 12-02-1932). O autor das notícias talvez fosse Dario Ferreira Baptista, mais tarde correspondente de Os Sports e que permaneceria ligado ao associativismo odivelense até aos anos 70. Contudo, permanecem muitos pontos por esclarecer. Onde ficava exatamente o campo situado no Olival Basto? E quem mais o utilizou, tendo em conta que o GROB só surgiria em 1937 e uma das limitações do primeiro OFC foi a ausência de campo próprio para jogar? Por que motivo uma partida informal atraiu tantos espetadores e, em particular, Bernardo Mesquitela, o aristocrata então à frente da Armada? Existiram antes de 1930 no território do atual município odivelense clubes hoje desconhecidos? E, além da forma como nasceu, como acabou o Odivelas FC desses jovens de 1930, deixando um vazio que só seria preenchido em 1939 por uma nova geração, fundadora de “Os Gatinhos”? Só nos resta continuar a procurar, no meio da torrente de informação que era O Século no início da década de 30, pistas acerca da atividade dos homens que há quase 100 anos foram os pioneiros do futebol em Odivelas.

Memórias da Revolução

A memória da Revolução esteve presente na Assembleia da República nas últimas semanas a propósito do 25 de Novembro, do centenário de Mário Soares ou dos votos de pesar pelas mortes de Celeste Caeiro e Camilo Mortágua. Os discursos dos diferentes partidos têm transmitido perspetivas variadas dos acontecimentos históricos registados entre 1974 e 1975, mas verifica-se uma tendência para a aproximação das direitas no âmbito da memória e das suas manifestações públicas, visível em momentos como a rejeição do texto de homenagem a Mortágua aprovado pela esquerda (com abstenções de PSD e Iniciativa Liberal e votos contra de CDS e Chega) ou o inédito acordo da maioria parlamentar de direita para consagrar ao 25 de Novembro uma cerimónia semelhante à do 25 de Abril. Numa época em que, depois da omnipresença da economia no debate político durante os anos 10, as clivagens passaram a ocorrer frequentemente em torno de temas “culturais”, ligados a uma dada maneira de observar o mundo e que incluem narrativas do passado nacional, a celebração de eventos históricos ganhou um crescente simbolismo. Por exemplo, a forte participação nas manifestações comemorativas do cinquentenário do 25 de Abril foi em grande medida uma resposta da esquerda aos 50 deputados eleitos pelo Chega nas legislativas do mês anterior.

Ao nível das políticas de memória, a mais relevante mudança verificada nos últimos anos residiu nos esteroides que o 25 de Novembro tomou. Num passado não muito distante, os festejos do fim da Revolução eram a causa por excelência do CDS, promotor de eventos anuais na Amadora, enquanto o PSD revelava uma indiferença fatigada pela evocação dos anos dos cravos, à imagem do tédio de Cavaco Silva com os “maçudos discursos”, habitualmente “centrados no passado”, da sessão parlamentar comemorativa do 21.º aniversário do golpe do MFA, que o então primeiro-ministro teve de suportar na véspera da inauguração da Autoeuropa, quando se pôde enfim dedicar ao “futuro do País” (Silva, Aníbal Cavaco, Uma Experiência de Social-Democracia Moderna, Porto, Porto Editora, 2020, p. 133). Pedro Passos Coelho também não demonstrou grande interesse em recordar os primórdios do atual regime, apesar da formação da Geringonça ter reavivado fantasmas do PREC.

Os novos partidos, nomeadamente o Chega e a Iniciativa Liberal, trouxeram um protagonismo reforçado à memória de 1974-1975. Enquanto a organização de André Ventura apontou o 25 de Novembro como a origem da “verdadeira democracia”, os liberais quiseram distinguir-se do resto da direita ao celebrarem o 25 de Abril integrando a manifestação anual na Avenida da Liberdade, mas também apontaram os holofotes para Novembro. Mais especificamente, para o 25 de Novembro de Jaime Neves, glorificado em cartazes da IL, e não para o de Melo Antunes e dos restantes membros do Grupo dos Nove. O novembrismo ganhou cada vez mais peso no discurso da direita, quer no Parlamento quer em artigos de opinião na imprensa, e tornou-se um elemento identitário do “espaço não socialista”. De pouco serve lembrar que os acontecimentos de 1975 foram mais complexos do que se diz e entre os “vencedores” e “vencidos” do 25 de Novembro havia gente com agendas diversas. A partir de 2022, a exposição do Instituto Mais Liberdade sobre o “25N” fixou a “história que não te contaram” da Revolução e do seu desfecho. Curiosamente, os painéis ignoram a descolonização, dando a entender uma das nuances que ainda persistem: a memória do Império e do “retorno” abriga-se sobretudo no CDS e no Chega, enquanto os liberais estão mais virados para a Europa, inclusive na descrição dos eventos pretéritos.

 

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(Fonte da imagem: Daniel Oliveira)

 

Se a direita uniformiza no essencial o seu discurso memorialístico, permanecem dentro da esquerda fraturas associadas a diferentes visões do PREC. O PS privilegia, como é óbvio, a memória de Mário Soares e do percurso deste nas vias da “Europa connosco” e do “socialismo em liberdade”. Acusados de renegarem o seu passado novembrista por recearem ofender os antigos e potenciais futuros aliados BE e PCP, os socialistas sabem que se entrassem no comboio do 25 de Novembro nunca poderiam ser os maquinistas, função reservada aos setores mais à direita. Já o PCP recorda com saudade a “Aliança Povo-MFA”, representada pela figura de Vasco Gonçalves e pela atividade legislativa dos Governos Provisórios. A extrema-esquerda apresenta uma versão centrada nas comissões de moradores e trabalhadores, embrião do “poder popular”, que não está isenta de divergências. Ao passo que o Bloco é dominado pela análise de Fernando Rosas, segundo a qual o 25 de Novembro foi uma “contenção pactuada” da Revolução que assegurou a presença na Constituição de 1976 das conquistas obtidas pela luta popular a partir do 25 de Abril, grupos minoritários como o raquelismo-varelismo, o TU (Trabalhadores Unidos) ou o CCR (Coletivo Comunista Revolucionário) não hesitam em ver em Novembro um golpe da direita e da “burguesia” contra o período “mais democrático” da História portuguesa. A unir as esquerdas, encontra-se apenas a preocupação com uma possível hegemonia da narrativa histórica formulada pelas direitas.

Este fenómeno de convivência de memórias opostas sobre períodos recentes, com a situação política no presente a ditar quais delas se tornam dominantes ou subalternas, não representa uma situação nova, tendo já sido estudado em Portugal por historiadores como Manuel Loff e Miguel Cardina. O problema relaciona-se com a acentuada fragmentação da política, traduzida no confronto de interesses cada vez mais particulares e heterogéneos que se baseiam não só em opiniões, mas em realidades diferentes criadas a partir dos eventos valorizados, silenciados ou até inventados por cada “perceção”. A memória do 25 de Abril e do processo revolucionário que desencadeou é necessariamente plural, mas a multiplicação de memórias de grupo pode inviabilizar um consenso em torno dos factos mais básicos, criando bolhas que nunca se tocam e impossibilitando o debate. Neste contexto, enquanto aguardamos pelo trabalho da comissão comemorativa dos 50 anos do 25 de Novembro anunciada por Nuno Melo, a historiografia deve recolher e cruzar documentos e testemunhos de origens diversificadas, sem tentar estabelecer uma “versão oficial” e alertando para a dificuldade no esclarecimento de questões ainda em aberto. Afinal, já se percebeu que, no que respeita à memória, o distanciamento temporal não fornece uma maior objetividade, como afirma o mito. Pelo contrário, facilita a difusão de narrativas simplistas onde se ignora qualquer informação que não encaixe na mensagem delas.

 

P.S. Ainda a propósito de Cavaco Silva, a sua ausência na sessão parlamentar dedicada a Mário Soares pareceu uma saudável recusa da hipocrisia que seria fingir que os dois políticos eram amigos. No entanto, Cavaco apareceria mais tarde na homenagem a Soares realizada na Gulbenkian, falando aos jornalistas das relações cordiais que, apesar das divergências, manteve com o seu antecessor em Belém. O nosso bom Aníbal é assim.

 

Odivelas 2025: uma antevisão

Numa altura em que cresce o burburinho acerca das eleições presidenciais, importa lembrar que falta menos de um ano para as autárquicas, já em fase de planeamento nas estruturas partidárias. Apesar da sua relevância estratégica e demográfica, o concelho de Odivelas não costuma despertar grande atenção aquando da escolha dos edis, inclusive entre os próprios munícipes. Muitas pessoas que se dedicam ao queixe-queixe no Facebook ficam em casa no dia das autárquicas, contribuindo para as elevadas taxas de abstenção verificadas em Odivelas neste tipo de sufrágio. Assim, como os eleitores que votam são praticamente sempre os mesmos, gera-se uma dinâmica da inércia favorável a quem está no poder há muito tempo, neste caso o PS, cujos autarcas têm dominado os 26 anos de existência de Odivelas enquanto município autónomo. Na prática, o PSD já desistiu de conquistar o território, como Marco Pina confirmou implicitamente ao tentar vencer a descrença “laranja” em 2021, quando chamou à sua coligação de direita “Odivelas: A Mudança É Agora”. Na verdade, não foi, com o PS a renovar a sua maioria absoluta e as poucas novidades dessa eleição a centrarem-se no declínio da CDU e na irrupção do Chega, que elegeu o vereador Nuno Beirão. Sem que se conheça ainda o nome de qualquer candidato odivelense às autárquicas de 2025 (os cabeças de lista só deverão ser anunciados lá para Abril ou Maio), podemos arriscar o exercício de analisar as possibilidades em jogo no ato eleitoral do início do próximo Outono.

Após 10 anos de gestão de Hugo Martins, deverá ser eleito em 2025 o quarto presidente da Câmara Municipal de Odivelas (CMO), função para a qual o PS proporá certamente o novo líder da concelhia socialista, Nuno Gaudêncio. Maçon e católico, Gaudêncio encontra-se no final do seu terceiro mandato à frente da junta da sede do concelho e a subida da Alameda do Poder Local para a Quinta da Memória constitui a opção mais natural para o filho do bairro das Patameiras, cuja sucessão na JFO será confiada ao vogal Ricardo Oliveira. Para além das mudanças de rostos no PS, não se deverão registar grandes inovações à esquerda, com o PCP a tentar segurar o seu vereador, enquanto BE e PAN procuram permanecer na Assembleia Municipal. Resta saber se o Livre, com implantação embrionária na periferia da capital, conseguirá apresentar pela primeira vez listas às autarquias odivelenses.

Na direita, as incógnitas multiplicam-se, até porque resultados concelhios semelhantes aos obtidos pelo Chega nas últimas legislativas ou pela Iniciativa Liberal nas europeias alterariam a distribuição dos vereadores. Para atacar a CMO sem grandes esperanças, a AD pode nomear uma figura do aparelho local (Marco Pina, Pedro Martins, Sandra Pereira, etc.) ou, como aconteceu em 2017 com Fernando Seara, recorrer a uma “estrela” vinda de fora. No que respeita aos liberais, a personalidade do candidato a presidente da Câmara não será tão decisiva, dada a prioridade de afirmar a marca IL e o seu discurso nos órgãos autárquicos. Sob o lema “Odivelas com Iniciativa”, o núcleo local da IL está já a efetuar a tradicional romaria às associações. O caso do Chega, num município onde o partido de extrema-direita pode atingir resultados importantes na noite eleitoral, apresenta particularidades. Longe do improviso de 2021, André Ventura deverá escolher um dos deputados do Chega para cabeça de lista a Odivelas, à semelhança da provável candidatura do youtuber Bruno Nunes em Loures. Um golpe publicitário eficaz seria apresentar Hernâni Carvalho como candidato independente apoiado pelo Chega, mas ignora-se se o jornalista odivelense (que ficou perto da vitória em 2009, quando foi lançado pelo PSD) estaria disponível para aceitar o desafio. Será interessante verificar a posição nas futuras listas cheguistas em Odivelas do atual deputado municipal Ricardo Reis. O jovem assessor parlamentar, celebrizado por um tweet sobre a morte de Odair Moniz, acaba de regressar às redes sociais após um mês de exílio e constitui uma figura em ascensão dentro da corte de Rita Matias.

 

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Quais serão os principais temas discutidos durante o final do Verão, quando militantes com bandeiras percorrerem as ruas do concelho de Odivelas para tentar angariar votos? Em conjunto com as ervas nos passeios, o lixo será decerto um elemento focado, sobretudo em imagens partilhadas online. Afinal, enormes monturos de tralha surgem diariamente junto aos contentores de lixo de Odivelas, sem que os meios dos SIMAR e das juntas de freguesia possam responder a tantos monos. Tornou-se já um hábito dos odivelenses aproveitar o passeio dos respetivos cães para examinar as imediações dos ecopontos em busca de algum objeto velho mas reutilizável aí depositado. O destino dos antigos terrenos do Instituto de Odivelas, para os quais Hugo Martins apresentou o projeto do Parque da Cidade, representará outro tópico em análise, tendo em conta o plano alternativo do PCP. Contudo, a presença da imigração e do discurso securitário na campanha será provavelmente inevitável. O rápido aumento da população imigrante verificado no concelho depois de 2021 tem gerado reações xenófobas que o Chega aproveitará, além de explorar (ou inventar) as notícias da criminalidade local. A questão está em saber até que ponto essas temáticas entrarão no vocabulário dos partidos tradicionais. Depois do caso “sem dó nem piedade” do lourense Ricardo Leão, com quem outros autarcas socialistas do distrito de Lisboa se solidarizaram, o assunto ficou na ordem do dia e pode modificar o aspeto e a visibilidade das habitualmente plácidas campanhas autárquicas em Odivelas.

A terra da marmelada já não é a mesma do final do século XX, quando o crescimento urbano e demográfico favoreceu a rejeição da tutela de Loures. Os agora idosos moradores instalados em Odivelas nas décadas de 60 e 70 e que preencheram os agora envelhecidos prédios construídos por empreiteiros como Tomás José Olaio viram desde então chegar gentes muito diversas, enquanto os seus filhos, com crescente formação universitária, partiam para outros concelhos ou reforçavam a qualificação da população odivelense, com um perfil atual mais distanciado do estereótipo suburbano. Novos bairros, como o Jardim da Amoreira ou as Colinas do Cruzeiro, atraíram pessoas de maiores recursos, enquanto a construção para a classe média-baixa passou a rarear. A pluralidade étnica, social, etária e religiosa do município acentuou-se com os vários movimentos migratórios, estimulando a vida associativa, apesar da dependência económica de Odivelas em relação a Lisboa não se ter alterado no essencial. Todas estas mudanças produzirão inevitáveis efeitos políticos que até agora, devido em parte à forte abstenção nas eleições locais, não têm sido visíveis a olho nu. As autárquicas de 2025, com o destaque que os partidos mais recentes nelas ganharão, poderão ser um barómetro das transformações em curso no território onde foi descoberta a espada de D. Dinis.