Aí vamos nós outra vez (3)
14) Há um poema de Isidoro Augusto publicado em A Importância da Luz (2008) que parece ter sido escrito a pensar nos apoiantes do Chega: “moldam-se por ventura/às mais simples esferas/o esse outro compasso/de um obtuso surgir/a crença ela mergulha/mesmo antes da cônscia/escolha”.
15) “É a economia, estúpido”? A ideia de que os eleitores votam sobretudo “com a carteira” tem tido boa imprensa, mas torna-se cada vez mais duvidosa. Quando era colunista do Público, Rui Tavares dedicou-se a mostrar a liberais e marxistas que muitas vezes as pessoas tomam opções de voto conflituantes com os seus interesses materiais e até sem qualquer explicação racional. Em vários países, o voto parece ser cada vez mais “identitário”, resultando de uma dada maneira de ver o mundo ou pelo menos da rejeição da perspetiva que se abomina. Na atual conjuntura eleitoral portuguesa, é ainda uma incógnita até que ponto o povo lusitano valoriza a situação económica favorável, com dívida, défice e desemprego controlados, de que Joaquim Miranda Sarmento se apresenta como o rosto público. Curiosamente, Miranda Sarmento destaca-se no Governo AD pelos seus problemas de comunicação, ao transmitir sempre a ideia de que recebeu o guião há poucos minutos e ainda não teve tempo de estudá-lo, situação que o leva a falar demais para o gosto de Luís Montenegro. Por várias vezes, o ministro das Finanças tem sido mantido nos bastidores enquanto os colegas mais politicamente tarimbados ocupam o palco. Na verdade, Sarmento reuniu no seu gabinete uma equipa formada por alguns dos melhores economistas nascidos depois do 25 de Abril, mas ignora-se se o trabalho feito no Terreiro do Paço dá nas vistas num ambiente onde os temas económicos, mediaticamente esmagadores antes da pandemia, vão perdendo espaço para as “perceções”. Ainda se lembram de quando aquilo que os portugueses pensavam sobre a realidade era igual ao litro? Bem, hoje o que importa aparentemente não é a frieza dos números, mas sim o calor da eterna chama das emoções.
16) Quando Luís Montenegro ainda estava na oposição, referiu-se a um Orçamento de Estado socialista como “orçamento pipi”. Interrogado por um jornalista a propósito da expressão plebeia, o líder do PSD afirmou que “as pessoas” gostavam dessa linguagem e estavam fartas do discurso “politicamente correto”. Ou seja, Luís Montenegro é um daqueles políticos que baixam propositadamente o nível por acharem que assim serão mais populares. Mais tarde, já com Montenegro no Governo, percebeu-se que manter reduzidas as expetativas dos cidadãos é a verdadeira “montenegrização” (neologismo criado agora por Luís). Sem ir tão longe como a venturização, que baixa o mais possível a exigência dos indivíduos acerca de si próprios, a montenegrização visa sobretudo aumentar a tolerância ou a indiferença dos eleitores no que respeita à classe política. Essa já era, de resto, a tendência predominante há muito tempo. Depois de assumir a liderança do PSD em 2022, Montenegro não despertou entusiasmo mesmo entre os comentadores de direita, ainda embeiçados por Passos Coelho. Mas pronto, era o espinhense quem lá estava, ver-se-ia no que aquilo ia dar. Ao longo do ano de governação da AD, a reação mais comum à atuação do executivo, de acordo com as sondagens, foi um encolher de ombros. De facto, mesmo entre os apoiantes da coligação, os ombros continuam a encolher-se depois da eclosão da crise política e da antecipação das legislativas. Alguém compraria uma bicicleta usada a Luís Montenegro? Claro que não, mas a montenegrização em curso torna tudo irrelevante. Mesmo que os nossos não se portem bem, os outros certamente fariam igual ou pior. O PSD usa meios do Governo em iniciativas de campanha? O programa da AD é demasiado otimista e ninguém acredita que seja cumprido? As conferências de imprensa não incluem o direito a perguntas dos jornalistas? Tudo isso é normal, tépido, pacífico, indiferente. Verifica-se a transposição para a política daquilo que Os Três Duques, a série preferida do primeiro-ministro, fez na televisão. Sim, poderia haver histórias complexas e personagens profundos, mas para quê se toda a gente se entretém com perseguições automóveis, cenas de porrada, polícias idiotas, um cacique obeso e uma gaja boa decotada? Preservar o controlo das expetativas faz o carro laranja voar.
17) O site da campanha do PS (sob o lema “O futuro é já”) apela à mobilização dos visitantes, de modo a que as redes sociais sejam inundadas por conteúdos favoráveis ao projeto liderado por Pedro Nuno Santos. Para tal, disponibiliza um conjunto de autocolantes digitais com fotografias do secretário-geral e de apoiantes do PS, tiradas sobretudo em eventos partidários recentes e acompanhadas por mensagens expondo as ideias essenciais da campanha (“Pronto para Portugal”, “Quando o PS governa, a vida melhora”, “Junta-te a quem defende Portugal”, “Somos milhões a querer um futuro melhor”, “Portugal é feito de quem acorda cedo e luta”, “Orgulho nas mangas arregaçadas”, “Por um Portugal com amor e empatia”, etc.). Contudo, as palavras raramente combinam com as fotos escolhidas. Por exemplo, a frase “Com o PS, as pensões cresceram” surge como título de uma fotografia em que, durante o lançamento da candidatura autárquica de Manuel Pizarro, Pedro Nuno Santos cumprimenta Tiago Barbosa Ribeiro e outros dirigentes do PS-Porto ainda distantes da idade da reforma. Noutro autocolante, sucede o inverso: os socialistas garantem que “Queremos o melhor para os nossos jovens”, mas, a avaliar pela imagem, não é nos comícios do PS que esses jovens estão.
18) Procuro infrutiferamente estabelecer uma comparação entre as retóricas de Nuno Melo e André Ventura. Dizer o que o primeiro constitui uma versão beta do segundo, além de demasiado óbvio, é inexato: o estilo de Melo não é o de Cascais, antes está ligado a uma certa maneira de ser da gente rica do Norte. Nuno Melo é certamente uma personagem de Camilo, mas não li o romance onde o líder do CDS aparece. Por outro lado, embora ignoremos se os antepassados de Melo combateram por D. Miguel, sente-se que o ministro da Defesa ainda não digeriu bem o resultado da guerra civil concluída em 1834. Certo é que, até há seis anos, a truculência de Nuno Melo era o ponto máximo que o discurso da direita podia atingir, mas, a avaliar pelas europeias de 2019, já nessa altura o registo não obtinha grande popularidade. Digamos que, sempre que entra num povoado, Melo exige de imediato a pousada devida a um fidalgo e evita dialogar com gente da plebe, enquanto André Ventura desce do cavalo, aproxima-se dos “ventres ao sol”, imita a maneira deles de falar, bebe com eles nas tabernas e concorda com tudo o que dizem. Como um aristocrata do Antigo Regime, Nuno Melo está disposto a conduzir a populaça rumo ao campo de batalha, mas usa sempre uma vistosa cabeleira para deixar claro quem manda ali.
19) Para lá daquelas pessoas que se gabam de não assistirem a um único debate televisivo entre os líderes partidários, a maioria dos portugueses já se habituou ao formato agora vigente. Até as notas atribuídas aos políticos pelos comentadores de alguns canais noticiosos são consideradas parte do folclore. Resta saber se as audiências dos debates representam um sinal do interesse dos cidadãos pelo processo eleitoral. Esse tipo de afirmação faz recordar a convicção dos programadores de que os portugueses adoram telejornais com mais de uma hora de duração. Afinal, ter a televisão ligada à hora do jantar não é o mesmo que prestar atenção contínua àquilo que se passa no ecrã, muitas vezes transformado em ruído de fundo. Seja como for, os debates são valiosos sobretudo para os partidos mais pequenos, com o PAN e o Livre a aproveitarem para divulgar o seu trabalho parlamentar, geralmente pouco conhecido. Rui Tavares e Inês Sousa Real revelam-se, aliás, mais combativos e empenhados nos despiques verbais do que se previa. Quanto aos outros candidatos, não têm apresentado nada de muito surpreendente, incluindo a habitual peixeirada de Ventura. Falta agora um mês para as eleições. Até ao lavar dos cestos é vindima, pois claro. No entanto, se excetuarmos a saída do PPM da AD, o que aconteceu de verdadeiramente relevante desde a queda do Governo em 11 de março? Apesar do ruído, a política parece hibernar durante as campanhas eleitorais.