Aí vamos nós outra vez (4)
20) Num aparente crescendo de otimismo, o Chega faz campanha afirmando avançar “rumo à vitória” (reutiliza-se assim o título de um livro de Álvaro Cunhal escrito em 1964) e apresentando André Ventura como candidato a primeiro-ministro. Obviamente que a hipótese do partido de extrema-direita atingir o primeiro lugar em 18 de maio é muito improvável… mas não impossível. Repare-se que as sondagens mais recentes estimam o eleitorado do Chega em cerca de 20%, valor impensável há apenas três anos, e consideram verosímil uma vitória cheguista nos círculos de Lisboa e Setúbal. Claro que apenas se as coisas corressem muito bem a André Ventura e muito mal a Luís Montenegro e Pedro Nuno Santos seria admissível que a contagem dos votos apurasse, por exemplo, 24,8% para o Chega, 24,4% para a AD e 23,9% destinados ao PS. Mesmo se, por caprichos do método de Hondt, o PSD formasse um grupo parlamentar com mais deputados que o do Chega, uma votação superior deste permitiria a Ventura proclamar-se primeiro-ministro eleito, colocando Marcelo Rebelo de Sousa numa situação embaraçosa. Viabilizaria o PSD um Governo liderado pelo seu antigo militante? Na verdade, um cenário deste tipo assemelhar-se-ia a um apagão que interrompesse as comunicações e o fornecimento de eletricidade em todo o país: poderíamos imaginá-lo de forma teórica, mas só na prática se conheceriam as suas consequências.
21) Na terça-feira que se seguiu ao Dia do Apagão, enquanto as reações online se dividiam entre a malta do caos e a malta da festa, tornava-se nítido que o blackout não deverá ajudar nem prejudicar a AD nas eleições legislativas, até porque o retomar em cerca de 10 horas do abastecimento de eletricidade não era considerado um feito do Governo. A tradicional unidade nacional em torno dos líderes verificada num cenário de calamidade poderia ter dado a Luís Montenegro uma imagem de estadista, reforçando-o politicamente à semelhança de António Costa em 2020, no início da pandemia. De resto, o Governo pouco mais poderia fazer durante a crise do que aquilo que fez, ou seja, manter-se em reunião permanente enquanto monitorizava a situação no país. Haveriam decerto, porém, alternativas à centralização da comunicação, ligada à habitual preocupação de Montenegro em ser o único a falar. Pensando bem, depois de ouvirmos Manuel Castro Almeida narrar com orgulho o plano governamental para abastecer a Maternidade Alfredo da Costa através de jerricans de gasolina, compreendemos melhor o desejo do primeiro-ministro de protagonismo exclusivo.
22) Interrogado por uma jornalista da RTP sobre a ausência de um comunicado relativo ao apagão por parte da ministra da Administração Interna, Castro Almeida perguntou porque deveria existir tal mensagem. Chegou, realmente, o momento de dizer a verdade: a ministra da Administração Interna não existe. Trata-se de uma lenda sem qualquer fundamento histórico. A sério, alguém acredita que há mesmo uma pessoa de carne e osso chamada Margarida Blasco? As poucas imagens dela disponíveis foram claramente produzidas por Inteligência Artificial. Mitos deste tipo são importantes na definição da identidade nacional, mas a dada altura os historiadores não podem tolerar mais a difusão de narrativas fantasiosas aceites pelo povo como se fossem verídicas. Margarida Blasco é o nada que é nada.
23) No seu julgamento político a propósito do caso Spinumviva, Luís Montenegro tem usado como trunfo a inexistência de uma arma fumegante, ou seja, de uma decisão do primeiro-ministro que possa ser apontada como um favor feito ao grupo Solverde ou a qualquer outro dos seus clientes. Durante a sessão realizada em Carcavelos, Pedro Nuno Santos surpreendeu ao pegar num lenço para manusear uma pistola na qual, segundo ele, Montenegro deixara as impressões digitais da sua inação, suficiente para garantir à Solverde a manutenção da concessão estatal do jogo. Foi um gesto arrojado que, apesar de gerar um “ah!” na plateia, revelou-se insuficiente por si só para obter a condenação do réu, o qual afirmou estar a ver o revólver em causa pela primeira vez. No fim de contas, trata-se de um julgamento com jurados portugueses onde, à falta de provas inequívocas de ilícitos, o veredito depende da opinião do júri sobre aquilo que é mais verosímil à luz do senso comum. Os atos provados em tribunal e admitidos a pouco e pouco pelo arguido foram, como a defesa afirma, normais, inocentes e católicos? Ou a acusação, ao destacar os vários comportamentos suspeitos do réu, construiu um caso suficientemente forte para obter uma vitória? Enquanto os jurados não votam para chegarem a uma decisão, alguns deles pensam sobretudo nas senhas de refeição e no tempo gasto com estes julgamentos à americana, avessos ao costume luso de confiar todas as decisões judiciais à direção do Correio da Manhã.
24) O crescimento nas legislativas de 2024 do número de votos na Alternativa Democrática Nacional, ou, como todos lhe chamam, o ADN, foi atribuído à confusão de siglas feita por muitos eleitores que pretenderiam colocar a sua cruz no quadrado da AD. Contudo, as eleições europeias mostraram que o fenómeno ia além desse epifenómeno e existia em Portugal um (pequeno) nicho eleitoral para o chalupismo. O crescimento do ADN passa despercebido por não ocorrer na televisão, registando-se sobretudo através da Internet e de algumas igrejas evangélicas, ligadas ao setor mais à direita da comunidade brasileira. A mistura entre religião e política e a defesa dos valores familiares tradicionais, supostamente ameaçados pela “ideologia de género”, começam a germinar no solo português, até aqui pouco favorável ao conservadorismo nos costumes (os ventos vindos dos EUA também ajudam). Se Bruno Fialho e outros dirigentes do ADN fazem os deputados do Chega parecerem portugueses comuns, a profissional da indignação Joana Amaral Dias possui a experiência mediática e a influência nas redes sociais adequadas para dar visibilidade ao antigo PDR quer nas legislativas quer nas presidenciais. O provável regresso de Amaral Dias à Assembleia da República reforçará a fragmentação do hemiciclo, mas contribuirá para fornecer alguma animação aos debates parlamentares, que se tornaram um pouco aborrecidos com os excessos de moderação, seriedade e boa educação verificados nos últimos anos.
(Membros da Juventude Chega apoiam André Ventura após o debate deste com Luís Montenegro. Fonte da imagem: Rita Matias)