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Desumidificador

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Alguém protesta? Sou contra!

Na série de livros As 10 Questões…, publicada pela D. Quixote, João César das Neves resume a situação económica portuguesa em obras destinadas ao grande público. Iniciada em 2011 com As 10 Questões da Crise, a colecção prosseguiu através de As 10 Questões da Recuperação (2013) e As 10 Questões do Colapso (2016). Neste último livro, César das Neves apontou como provável a curto prazo um cenário de colapso financeiro que obrigaria o país a pedir novamente ajuda externa, formulando a chamada “teoria do Diabo”. O fracasso da previsão expôs César ao escárnio da esquerda, mas, no seu novo trabalho, As 10 Questões do Interlúdio, o professor da Universidade Católica responsabiliza os seus “avisos e sinais de alarme” de 2016 pelo facto de se ter conseguido “adiar a catástrofe” (p. 10). O académico designa por “interlúdio” o período actual, situado entre a crise de 2008 e uma futura recessão e no qual a aparência de normalidade esconde que “nada voltará ao que era” (p. 12). No conjunto da obra, César das Neves procura arrefecer o optimismo do Governo de António Costa e realçar os perigos ainda a pairar sobre a economia nacional e mundial.

 

As primeiras três “questões do interlúdio” retratam o ambiente internacional, com João César das Neves a recorrer a uma perspectiva global para mostrar que se vive um período de prosperidade, marcado nas últimas décadas por avanços significativos na redução da pobreza e na melhoria do acesso à saúde e educação. Além de contestar a ideia de decadência, César rejeita a “arrogância intelectual” daqueles que falam de mudanças radicais em curso e tentam prever o futuro. Na verdade, muitas das inovações do presente seriam meros aperfeiçoamentos de invenções passadas. Por exemplo, “o impacto real da web é muito inferior ao que a televisão, o telefone ou o automóvel tiveram nos hábitos sociais do seu tempo” (p. 29). Trata-se, na minha opinião, de um enorme erro de análise, mas a afirmação integra-se no esforço de César em mostrar que nada há de novo debaixo do Sol. O economista católico não ignora, contudo, as perturbações criadas pelo progresso da globalização e o “perigo civilizacional” resultante do descontentamento, traduzido na chegada ao poder de Donald Trump e de uma vaga de populistas na qual César inclui nomes tão díspares como Putin, Erdogan, Salvini e Catarina Martins. A principal ameaça representada por Trump está no regresso do proteccionismo e na ruptura dos acordos comerciais (pouco receoso das alterações climáticas, César das Neves não menciona a saída americana do Acordo de Paris) ligados ao capitalismo liberal. Contra o extremismo e a polarização, César propõe “o regresso à solidariedade” defendido pelo Papa Francisco.

 

 

Em contraste com a agitação lá fora, Portugal “parece ter entrado num período mágico” (p. 73) durante o qual conquistas enumeradas por César das Neves, como o Europeu, a Eurovisão ou os cargos internacionais de António Guterres e Mário Centeno, reforçaram as boas vibrações. Na economia, César admite que a Geringonça, mais moderada do que ele previra (“Em Portugal os extremistas ladram mas não mordem”, p. 223), alcançou resultados positivos no crescimento económico, na redução do défice e da dívida pública, na queda do desemprego e na recuperação do investimento, mas considera que tudo ficou aquém do desejável, representando “Um alívio, não uma cura” (p. 86), até porque as necessárias reformas na estrutura do Estado pararam. O professor da Católica associa o crescimento da economia portuguesa ao legado de Passos Coelho e à conjuntura externa favorável, além de atribuir o sucesso orçamental de Centeno ao efeito das cativações e do aumento dos impostos indirectos. Talvez por considerá-la demasiado absurda, César nunca chega a desmentir a tese governamental da existência de uma relação entre a “reposição de rendimentos” e as melhorias económicas e financeiras. Indiferente a detalhes supérfluos, o autor justifica a sua oposição ao aumento do salário mínimo destacando o efeito negativo deste na criação de emprego, sem explicar porque é que tal não aconteceu nos últimos três anos.

 

Após apresentar as estatísticas económicas, João César das Neves costuma dar grandes saltos em frente para tecer considerações morais e políticas. O que mais incomoda César na época actual é ver os cidadãos a criticarem “as regras e as instituições básicas do sistema” (p. 53), ao invés de compreenderem que “tudo o que temos e somos devemo-lo à sociedade como ela é” (p. 71). As greves e manifestações são, no caso português, a marca dos “subversivos, resmungões e contestatários” da esquerda (pp. 142-143), agora calados por estarem no poder. Na verdade, não passam de “privilegiados” insaciáveis, apesar de possuírem mais direitos que os restantes trabalhadores. César não tem nada contra os ricos ou contra os pobres, mas as classes médias, superiores em número e beneficiárias da “linha política do interlúdio” (p. 189), mantêm despesas insustentáveis para o país, numa atitude irresponsável estimulada pelos políticos nos quais votam. A ausência de autocrítica, visível na atribuição ao euro e à UE das culpas da crise, contribui para “o excesso de gastos, a falta de poupança e a escassez de capital” (p. 225), fraquezas que tornam Portugal vulnerável a um qualquer abalo externo, do qual resultará o fim do interlúdio.

 

Os livros de João César das Neves possuem informação útil e apresentam de forma sucinta e acessível a leigos os principais traços da nossa economia. No entanto, mais do que apenas um economista, César das Neves é uma das principais referências do pensamento conservador luso, dotado de uma narrativa sobre o país que deseja o regresso dos portugueses a uma certa pureza original, perdida algures durante as quatro décadas após o 25 de Abril. Embora César recuse aproximações à extrema-direita trumpista, nada tem para oferecer ao povo além de dever e resignação. Entretanto, o catedrático aguarda pelo início da próxima crise económica, altura em que poderá soltar um triunfante “Eu bem avisei”.

 

P.S. Algumas frases de As 10 Questões do Interlúdio enfermam de falta de rigor, como se verifica no anacronismo de situar a “fundação” da democracia portuguesa em 1820 (pp. 126-127), uma vez que o conceito de democracia era diferente do actual durante o século XIX, quando o liberalismo impunha limites à soberania popular e “democracia” era sinónimo de “república”. De igual forma, afirmar que “Nos tempos áureos do império, Portugal foi o povo (sic) mais rico do mundo” (p. 232) é um lugar-comum sem nenhum facto a apoiá-lo.