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As palavras

“As palavras são importantes”, diz Nanni Moretti no filme Palombella Rossa. Quais palavras? Todas. Eis alguns exemplos:

 

O “olá” da minha sobrinha. As piadas da malta da BD sobre o ódio do Mário Freitas pela fonte Comic Sans. O ruído contínuo quando só queria um pouco de silêncio. “Partiram para o Oriente Eterno”, um belo eufemismo para a morte. O caminho difícil entre “Sempre a merda do futuro” e “Contai com isto de mim”. O talento oratório do prof. Rosas. Os “eh pás” da prof. Rollo. “Portugal é campeão da Europa!” O meu primeiro pedido de água. O nome de Jesus repetido sem cessar. Orwell e a coisa magnífica que é a destruição de palavras. Nomes de sítios como Pombais, Arroja, Serradinho, Aldeia da Cruz, Várzea, Covais, Veiros, Arroios ou Boavista. Um verso de Sérgio Godinho para cada ocasião da vida. O valor da simpatia de um “Que bom que você veio” (descansa em paz, Luciana). Os nomes dos mortos a fazerem-nos voltar por um segundo. A Palavra da salvação. As homilias moles. Há tanta beleza no mundo. “Quem te deu aquela rosa, meu amor?” Os velhos abutres cujos discursos tornam as almas mais pequenas. As palavras que consegui não dizer, mas custou tanto. Camões a sofrer por amor. Os palavrões que podem ser ditos nas novelas, e aqueles que nem pensar. O discurso de Chaplin no final de O Grande Ditador. O nome completo dela. As cartas que originaram tabefes e cortes de relações. A honra de ser designado por um dos meus ídolos como “este gajo”. Despedidas em duas palavras. Os nomes de pessoas que viveram há cem anos riscados pelo lápis azul. “As democracias não temem o terrorismo”. Eça, Saramago, Lobo Antunes. O mail com o qual alterei sem querer o curso da História. Guardar no arquivo as frases manuscritas dos meus familiares. O empenho com que o dr. Ventura degrada a linguagem. As palavras que ganharam novos significados, como “troika”, “geringonça” e “Pedrógão Grande”. O mesmo pedido de sempre no café. O “povo” e as “elites”, demasiado gastos e elásticos. Os miúdos que passaram a ter nomes estranhos como Martim, Sancha ou Santiago. Viajar nos jornais antigos para Lourenço Marques e outras cidades desaparecidas. O latim dos economistas. O vocabulário do PREC. As pessoas “talentosas” que votam na Iniciativa Liberal. O meu nome na ficha técnica do museu do Benfica. O momento não identificado em que começámos a “sair da zona de conforto” e a passar “muitos anos a virar frangos”. A defesa da tese que fui buscar sei lá onde. A época em que só compreendia metade dos diálogos dos sketches de Herman José. O estranho apreço dos mais velhos por aquilo que eu escrevia nos cartões de parabéns. Notícias de países devastados pela guerra. O medo da neoplasia. Os slogans dos anos 70 ainda escritos nas ruas da cidade. Conhecer o mundo pelos balões das revistas de banda desenhada. “Correios, boa tarde”. Os períodos de compensação infindáveis. Jorge Amado e o seu amor pela vida e pela liberdade. Um SMS a ameaçar o pior. A letra da canção de Marco Paulo num casamento. O prof. Oliveira a falar sobre o Holocausto na aula das oito e eu com demasiado sono para distinguir as palavras. Uma mensagem anti-racista dentro da espiral. O letreiro do cinema Oceano a anunciar o Batman de Tim Burton. Os trocadilhos das manchetes de O Independente. O top dos melhores álbuns portugueses do século XX. Porque tu és como o sol. Ouvir “tio” pela primeira vez.

 

 

As palavras são uma arma poderosa. Manuseiem-nas sempre com cuidado.