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Notas sobre a Geringonça

O nome: Vasco Pulido Valente terá usado numa crónica a expressão “geringonça” para descrever o estado do PS, muito antes de Paulo Portas colar a palavra à aliança parlamentar formada no Outono de 2015. Lançado pelo então líder do CDS com intuito pejorativo, o termo depressa foi adoptado pela comunicação social, sendo escrito nos jornais primeiro entre aspas e depois sem elas, uma vez que o novo significado do vocábulo supostamente já se banalizara na linguagem popular. À medida que o tempo avançava e a coligação resistia, alguns sectores da esquerda resolveram neutralizar o desdém contido na expressão fazendo-a sua e escrevendo orgulhosamente “Geringonça” com maiúscula. A nomenclatura acabou por perder a carga emocional e ser aplicada a qualquer coligação interpartidária formada num dado país europeu. Presente nos títulos de vários livros, incluindo o segundo volume das memórias presidenciais de Cavaco Silva, a palavra “geringonça” será, de acordo com os jornalistas, a designação pela qual o Governo de António Costa ficará conhecido nos livros de história. Pensar que tudo isto começou com Portas e Pulido Valente faz-nos perceber como Portugal funciona, ou seja, um pouco ao acaso.

 

As vantagens: A formação e estabilidade do XXI Governo Constitucional acabaram por beneficiar quase todos os partidos. O PS voltou ao Governo e evitou a “pasokização” que arrasou um a um os seus congéneres estrangeiros. BE e PCP “normalizaram-se” dentro do sistema, ganharam o estatuto de parceiros confiáveis e acentuaram o fracasso do discurso anticomunista (insucesso também estimulado pela fraqueza actual do marxismo, mas isso é outro tema). O PAN viu aprovadas várias das suas iniciativas e aproveitou bem o pouco espaço concedido a André Silva. Finalmente desamarrado do PSD, o CDS reforçou a sua identidade própria e alimentou sonhos de grandeza. O descrédito do “voto útil” e o estabelecimento do objectivo de uma maioria multipartidária de esquerda ou direita, sem necessidade de um partido hegemónico, estimularam o aparecimento de novas forças direitistas. Apenas o PSD, depois de dois anos sem perceber o que estava a acontecer, entrou numa crise de identidade potencialmente dilacerante. A seta que Sofia Vala Rocha queria cravar no coração da Geringonça mudou de trajectória e atingiu os “laranjas”.

 

Clientelas e eleitoralismo: A “reposição de rendimentos” contrariou uma atitude hoje menos frequente, mas asfixiante em 2015, quando qualquer medida governativa que deixasse alguém contente era considerada perigosa, despesista, demagógica e até eticamente condenável. Nessa perspectiva, o povo português tinha de ser salvo de si próprio por uma vanguarda revolucionária e uma reforma só seria eficaz se incomodasse toda a gente enquanto era conduzida com “coragem política”. Os funcionários públicos eram descritos com verdadeiro ódio de classe e a generalidade dos dependentes do Estado censurados implicitamente pela sua falta de empreendedorismo. A política contra-revolucionária da Geringonça, aliada ao sorriso de Marcelo Rebelo de Sousa, veio dizer aos portugueses que afinal não viviam em pecado e, depois do regresso dos feriados de 5 de Outubro e 1 de Dezembro não ter causado o fim do país, mostrou haver condições materiais para afrouxar um pouco o cinto.

 

 

O centenismo: A estratégia orçamental de Mário Centeno foi essencial ao sucesso da Geringonça, apesar de evitar que esta fosse tão longe quanto parte da esquerda e parte da direita gostariam. Na verdade, era a única via para conseguir a quadratura do círculo julgada impossível há três anos, através da conciliação das preocupações de Bruxelas com as exigências dos parceiros do Governo. Depois de tanto tempo passado a realçar a importância de um défice baixo e a alertar para o esbanjamento inato da esquerda e do PS em particular, a direita viu-se encurralada no seu próprio discurso. Se espremermos as reacções de PSD e CDS aos orçamentos de Centeno, o sumo obtido é muito pouco, entre as críticas simultâneas ao “eleitoralismo” e à “austeridade de esquerda” (só Assunção Cristas é capaz de dizer sem se rir que o CDS gosta do investimento público). Ainda por cima, a doutrinação liberal acabou por levar muitas pessoas a apreciarem a cautela de Centeno na gestão das despesas estatais. Ao mesmo tempo, comunistas e bloquistas obtiveram concessões suficientes para os impedir de lançar ataques nocivos para si próprios. Centeno seguiu um caminho definido por si como uma via alternativa quer ao despesismo quer à austeridade. Quando se diz que Centeno poderia ser ministro do PSD, importa esclarecer de qual PSD estamos a falar. Certamente que Mário poderia integrar um governo do PSD-RR, mas não um do PPC/PSD. Apesar dos dois frequentarem a Luz, Centeno não é Vítor Gaspar.

 

A bola de cristal: Além de concretizar o sonho de infância de Rui Tavares e Daniel Oliveira, a aliança entre PS, BE e PCP destruiu o horrendo “arco da governação” e provou a capacidade da esquerda se entender em matérias essenciais, apesar das diferenças entre os seus vários sectores. A Geringonça anulou por enquanto (tudo pode mudar de repente) o risco de uma deriva populista semelhante às que vão acontecendo por todo o lado, deixando Portugal invulgarmente sereno e fazendo José Manuel Fernandes perguntar-se porque tinha ele de nascer num país de idiotas. Muito alternaram os comentadores entre dizer que Costa levou o BE e o PCP ao bolso e denunciar a esquerdização de um PS preso aos radicais, mas o maquinismo funcionou devido ao alinhamento eficaz das peças, sem nenhuma delas perder as suas características. Arrumado o último OGE, cada partido fará uma campanha própria na qual procurará recolher os louros daquilo que correu bem e empurrar o resto para a borda do prato. O resultado das legislativas ditará o novo cenário político, embora seja seguro dizer que, caso o PS não alcance a maioria absoluta, um novo acordo PS/PCP/BE, ou apenas PS/BE, é bem mais provável que a reedição do Bloco Central ou o “Guterres II” (um frágil governo minoritário sustentado por acordos ocasionais) previsto por Marques Mendes. Em 2015, quem tinha medo de uma aliança entre o PS e os partidos à sua esquerda votou na PAF, não foi “traído” pela estratégia de António Costa. Na actualidade, depois de ouvir tocar esta banda, a maior parte dos fãs quer um encore, não uma mudança de formação ou um espectáculo a solo.