Notas sobre o futuro
1. Os comentários da direita sobre o fim do CDS têm sido semelhantes aos efeitos do fecho de uma loja antiga à qual não se vai há muito tempo. Lamentamos o facto, relembramos as compras que fizemos na loja e a malta que por lá passava e depois entramos no novo centro comercial onde tudo parece mais moderno.
2. Os primeiros resultados conhecidos das legislativas confirmaram a impressão surgida nas presidenciais e autárquicas de que parte do eleitorado tradicional do PSD e do CDS no país rural aderiu ao Chega. Em círculos como Leiria, o PSD perdeu por causa do Chega, um partido implantado em quase todo o território. Já no distrito de Lisboa, os “laranjas” ficaram abaixo dos 25%, enquanto Chega e Iniciativa Liberal registaram em conjunto mais de metade desse valor. Prossegue assim uma tendência iniciada ainda antes de Rui Rio e temporariamente disfarçada por Carlos Moedas: o PSD tem cada vez menos sucesso nos grandes centros urbanos e, nos antigos bastiões do Interior, já não são favas contadas. A direita cresce, sim, mas através das novas marcas lançadas no mercado. Qualquer futuro líder social-democrata terá um problema bicudo para resolver.
3. O voto útil no PS constituiu uma ameaça terrível para o Livre, mas Rui Tavares conseguiu o fundamental, ser eleito deputado. Uma câmara da ARTV apontada para o historiador, cujas capacidades oratórias melhoraram nos últimos anos, é suficiente para dar relevância política ao Livre, que apela insistentemente à entrada de novos militantes de modo a fazer crescer um partido ainda minúsculo e limitado às sete colinas de Lisboa. O enfraquecimento do Bloco representa uma oportunidade para os livres/livristas/verdinhos/tavaristas/papoilas saltitantes (têm de escolher um nome) ocuparem dentro da esquerda um terreno necessariamente reduzido, mas produtivo.
4. A substituição de Jerónimo de Sousa por um dos Joões acontecerá mais cedo ou mais tarde, mas o problema do PCP é bem mais profundo e resulta da inadaptação do centenário partido de Cunhal a uma época em que há cada vez menos operários e camponeses e o individualismo triunfa sobre o colectivismo. Claro que o PCP não vai desaparecer, mas tornou-se apenas um dos muitos partidos de nicho dotados de uma base fiel mas incapazes de atrair gente nova e diferente. No caso do Bloco de Esquerda, se Catarina Martins abandonar a coordenação, o que se seguirá? A oposição interna é mais radical e nostálgica do PREC que o establishment do Bloco, enquanto uma aclamação de Mariana Mortágua ou outra figura do grupo próximo de Francisco Louçã pouco mudará na prática. Desde o empate nas legislativas de 2019 que a direcção do BE hesita quanto ao caminho a escolher e comete erros de cálculo e discurso com consequências desastrosas. O resultado do BE em 30 de Janeiro foi tão mau que será difícil não fazer melhor da próxima vez, mas o contexto é muito diferente do de 2011. Depois da Iniciativa Liberal imitar o Bloco, como é que o BE poderá imitar a IL?
5. É arriscado fazer prognósticos sobre o futuro dos partidos dos novos grupos parlamentares. O Chega e a Iniciativa Liberal parecem ter tudo a seu favor, mas perder o efeito novidade e começar a fazer compromissos com vista a uma aproximação ao poder já deu cabo do PAN. Por enquanto, André Ventura alcançou o objectivo de transformar o Chega num imenso calhau colocado no meio da rua e impossível de contornar ao qual a direita tem de trepar para subir, enquanto João Cotrim de Figueiredo deu à IL uma imagem de força e dinamismo essencial para atrair os antigos quadros do CDS e jovens “talentosos” saídos das faculdades de economia. Apesar da líder da oposição ao terceiro Governo Costa ser Sandra Felgueiras, não faltará ruído no hemiciclo de S. Bento em torno dos múltiplos casos que certamente surgirão.
6. Se nenhum deles tiver um problema grave de saúde, Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa ficarão juntos no poder durante uma década completa, à imagem da história bem diferente de Mário Soares e Cavaco Silva. Serão os dois rostos principais de uma época da história portuguesa com características específicas, marcada por fenómenos como a recuperação económica do pós-troika, o impacto das redes sociais na política, os primeiros efeitos visíveis das alterações climáticas, a pandemia de covid-19 e todas as suas consequências com dimensões ainda por avaliar ou os eventos desconhecidos a ocorrer até 2026. Em resumo, dez anos repletos de coisas que nunca tinham acontecido. Voltando ao cavaquismo, é possível estabelecer outro paralelo. Antes de se tornar um anacronismo ambulante na sua fase presidencial, Cavaco foi entre 1985 e 1995 um líder popular em perfeita sintonia com o espírito do tempo (até gostava da série MacGyver). Da mesma forma, António Costa, com as suas qualidades e defeitos, será recordado como o primeiro-ministro que a maioria dos portugueses do período de 2015-2025 queria ou pelo menos tolerava, enquanto uma minoria o detestava com todas as forças. Nos anos 30, as preferências dos cidadãos poderão já ser completamente diferentes.
P.S. Comecei este blogue há cinco anos. Acertei quando compreendi que Rui Ramos tinha aberto a caixa de Pandora ao criar André Ventura. Errei ao achar que o PAN seria o partido do futuro. Pouco importa, o importante é continuar a dizer coisas, apesar da humidade.