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Saramago futebolista e outras histórias

1. A edição de 18 de Março de 1938 do jornal Os Sports noticia, na sua secção relativa a jogos particulares disputados em Lisboa, a realização no campo Francisco Lázaro de um encontro de futebol entre “o grupo representativo dos Serviços Industriais e um misto do Pessoal de Enfermagem, Raios X e Farmácia, dos Hospitais Civis de Lisboa”. A equipa dos Serviços Industriais venceu os colegas por 4-0, alinhando no 2-3-5 habitual à época com “Humberto; Porfírio e Saramago; Campos, A.A. Silva e Lourenço; A. Silva, Luís, Joaquim, Sebastião e Mangerico”.

Saramago, um dos defesas dos Serviços Industriais, seria José de Sousa Saramago, um serralheiro mecânico formado na Escola Industrial Afonso Domingues e contratado pelos Hospitais Civis de Lisboa em 1941 (esta data nem sempre coincide nas biografias do escritor)? É muito provável, mesmo que em Março de 1938 José Saramago ainda não trabalhasse formalmente para os Hospitais Civis de Lisboa. Apesar de ter então apenas 15 anos, José era já mais alto do que a maioria dos jovens portugueses da sua idade, característica física que o salvou de vestir a farda da Mocidade Portuguesa, mas seria interessante num futebolista a jogar no sector defensivo. O facto da partida espontânea entre funcionários dos HCL não se encontrar sob a alçada dos regulamentos da AFL permitiria que homens de diferentes idades coexistissem numa equipa ocasional e formada a partir das mais diversas circunstâncias do momento. Numa entrevista concedida em 1998 à revista A Bola Magazine (transcrita em Blimunda, n.º 2, 2012), Saramago recordou vagamente ter praticado um desporto “menos que amadorístico” em modalidades como o ténis, antes do jornalismo e da literatura concentrarem as suas atenções. O futebol não interessava particularmente a Saramago, que numa crónica escrita aquando do Mundial de 1986 considerou o desporto-rei um “sucedâneo da guerra”. Seria, por isso, irónica a localização num jornal desportivo da referência mais antiga na imprensa portuguesa ao autor de Memorial do Convento.

 

2. Entre as décadas de 50 e 90 do século XX, o Odivelas Futebol Clube praticou futebol no pelado do Campo Diogo José Gomes, o espaço de Odivelas (situado no actual Jardim da Música) onde conviveram gerações de adeptos “rubro-negros”. Alguns deles lembravam-se às vezes de perguntar quem tinha sido Diogo José Gomes, figura que a história oficial do OFC identificava como um guarda-redes do clube que, em data incerta, participara num jogo em Caneças interrompido por distúrbios com os adeptos locais, durante os quais Diogo fora atingido por uma pedrada cujo impacto lhe provocaria a morte e a preservação do seu nome na memória odivelense. Sabemos que esta história é um mito graças ao trabalho de Dario Ferreira Baptista, correspondente de Os Sports em Odivelas nos anos de 1931 e 1932. Nos textos sobre a actividade desportiva local que enviou então para Lisboa, Baptista referiu Diogo José Gomes, um futebolista de 18 anos do Odivelas Football Club que começara por jogar como interior direito mas destacara-se na posição de defesa direito, onde se tornou um dos melhores elementos da equipa odivelense. Gomes tinha a particularidade de, tal como Baptista, ser um dos poucos adeptos do Sporting em Odivelas, uma aldeia dominada por benfiquistas onde “a “alma vermelha” impera” (Os Sports, 16-11-1931). Em Novembro de 1931, Diogo José Gomes adoeceu com um problema de saúde não identificado, vindo a falecer semanas depois e a ser sepultado num funeral com a presença de “centenas de pessoas de todas as categorias sociais” (Os Sports, 21-12-1931). Por essa altura, a equipa infantil do Odivelas disputou em Caneças um desafio com a reserva do Clube Sportivo local no qual usou braçadeiras de luto pelo jovem Diogo, evento que terá estado na origem da lenda atrás referida.

O Odivelas Football Club vivia, tal como outras colectividades da periferia de Lisboa, em condições muito precárias, a começar pela falta de campo próprio, para o qual nenhum dos proprietários rurais da freguesia de Odivelas cedia um terreno. O clube depressa caiu num marasmo do qual procurou sair em Fevereiro de 1932 com a formação de duas comissões de sócios que tentariam recrutar novos jogadores e impulsionar a actividade desportiva. O último esforço terá falhado, a avaliar pela ausência de referências em Os Sports à prática do futebol em Odivelas nos anos seguintes, à excepção de uma breve notícia de Junho de 1937 que menciona duas partidas em Sacavém entre a colectividade dos operários da Fábrica de Loiça e o “Odivelas Sport Clube”, derrotado pelos sacavenenses quer em reservas quer em primeiras categorias (Os Sports, 28-06-1937). Em 28 de Maio de 1939, um grupo de rapazes (ainda muito novos, de acordo com a única fotografia conhecida da sua equipa) fundou o Odivelas Foot-Ball Club “Os Gatinhos”, uma nova associação que partilharia apenas parte do nome com o emblema activo no início da década. No entanto, a memória da morte precoce de Diogo José Gomes não se perdeu no reduzido meio desportivo odivelense e, embora com pormenores diluídos pelo tempo, perdurava ainda em 1952, quando o OFC, que possuía desde 1945 a designação e as características básicas mantidas até ao início do século XXI, construiu e inaugurou o recinto ao qual foi atribuído o nome do malogrado futebolista.

 

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3. A 12 de Abril de 1934, o jornal regional A Voz do Concelho, então publicado em Loures, registou a ocorrência no campo do Grupo Sportivo da vila de um curioso desafio de futebol entre o “Grupo Desportivo” de Olival Basto e um conjunto de “rapazes de cor” naturais da cidade angolana de Moçâmedes (a actual Namibe). Com receita de bilheteira a reverter para os Bombeiros de Loures, o jogo tinha sido promovido por Alberto Matos Perdigão, antigo director de A Voz do Concelho e ligado quer ao Sportivo quer à corporação. Alguns meses depois, o encontro disputado em Loures foi referido em termos jocosos num artigo de um jornal de Moçâmedes cujo autor, A. Mota, teria afirmado “baboseiras sobre o povo saloio” que levaram Matos Perdigão a escrever sobre o contexto no qual decorrera a partida.

Perdigão ocupava o cargo de fiel do Matadouro Municipal (cujo edifício seria transformado meio século mais tarde no Centro Cultural da Malaposta), junto à Calçada de Carriche, onde fora abordado por um grupo de jovens de “entre 15 a 18 anos de idade” do povoado local que lhe pediram para obter junto dos dirigentes do GS Loures a cedência do campo de futebol. O objectivo dos rapazes era realizar um jogo “a título de brincadeira” com angolanos condutores de gado que “se encontravam alojados nuns barracões da firma V. Reis & C.ª, Lda.”. O recinto lourense estava vago na data pretendida devido a uma deslocação do GSL a Mafra, pelo que os jovens do Olival Basto se apresentaram na sede do concelho e cederam equipamentos aos adversários. Um número reduzido de pessoas assistiu ao “pseudo desafio”, motivo de risota pela inabilidade dos praticantes e após o qual o “Grupo de Carriche” ofereceu aos angolanos um cabaz com vinho e pão com chouriço. Em Moçâmedes, A. Mota revoltara-se com a ideia de que uma equipa de “cozinheiros” negros fora tomada como representante de uma cidade onde o desporto se encontrava já desenvolvido, ao que Perdigão respondeu com o carácter informal e caricato do jogo e a memória dos momentos em que convivera com os futebolistas ocasionais de Angola, por ele considerados, “apesar de vadios e selvagens”, mais educados que muitos brancos (A Voz do Concelho, 30-09-1934).

Este episódio levanta várias questões, a começar pelo seu efeito na prática futebolística no Olival Basto. Poderia tratar-se da origem do ainda activo Grupo Recreativo do Olival Basto (mais conhecido pela sigla GROB), fundado em Junho de 1937, mas sabe-se que, enquanto o GROB se dedicava nas suas primeiras décadas de vida sobretudo a actividades culturais e recreativas como um grupo de teatro e a exibição de cinema, existiu paralelamente um clube chamado Grupo Desportivo de Olival Basto, dissolvido antes de 1968 e cujos antigos membros cederam os respectivos bens ao GROB quando este se iniciou no futebol (Boletim GROB, Agosto de 1968). Por outro lado, quem eram Cambuta, Canivete, Saparalo e os outros pastores angolanos que jogaram futebol em Loures e em que circunstâncias vieram para a então Metrópole? Como viviam e trabalhavam nas proximidades da Calçada de Carriche? Fixaram-se por cá ou regressaram a Moçâmedes? Tantas dúvidas e mistérios por esclarecer a partir de um simples desafio de futebol que provocou gargalhadas em 1934.